Uma década depois de vir ao Brasil para denunciar a ditadura venezuelana, Maria Corina recebeu o Prêmio Nobel da Paz
Em 7 de abril de 2014, uma venezuelana destemida entrou no estúdio do programa Roda Viva, em São Paulo, para ser entrevistada por Augusto Nunes e por uma bancada de jornalistas brasileiros. Naquela noite, Maria Corina Machado — deputada cassada pela Assembleia Nacional da Venezuela — falava como quem voltaria ao campo de batalha no dia seguinte. E, de fato, voltaria. Às vésperas de regressar a Caracas, a parlamentar sabia que corria risco de prisão. O regime de Nicolás Maduro já a havia marcado como traidora da pátria.
Onze anos depois, a parlamentar perseguida e silenciada tornou-se Prêmio Nobel da Paz. A mulher que entrou no estúdio da TV Cultura como símbolo da resistência venezuelana sai agora dos anais da história como uma das vozes mais poderosas contra o autoritarismo na América Latina. Mas, para quem assistiu àquela entrevista — e especialmente para quem a conduziu, Augusto Nunes —, o desfecho não surpreende. “Durante 90 minutos, Maria Corina deu uma aula de clareza, coerência, coragem e sensatez”, comentou o jornalista, na época. “A parlamentar cassada e perseguida pelos mastins do governo Nicolás Maduro exibiu a altivez dos que jamais saberão o que é uma rendição humilhante. A entrevista mostra o que é uma oposicionista de verdade.”
Maria Corina já havia sido agredida fisicamente no plenário, cassada sem direito de defesa e impedida de entrar em seu gabinete. “Em meu país há um golpe de Estado”, afirmou, ao definir o regime chavista como “uma guerra contra os civis, conduzida por militares e por cubanos infiltrados em todas as instituições da Venezuela”.
Ela não media palavras. Dizia, por exemplo, que Maduro havia cruzado a linha vermelha ao ordenar a repressão sangrenta dos protestos estudantis, que já somavam dezenas de mortos. Apontava a indiferença cúmplice de governos latino-americanos, inclusive o brasileiro, e denunciava a presença cubana até mesmo em organismos de segurança venezuelanos.
No auge do chavismo, Maria Corina compreendia a engrenagem do totalitarismo populista: a erosão institucional, o aparelhamento das Forças Armadas, a censura à imprensa e a conversão da pobreza em instrumento de controle social.
“O Estado se tornou dono de tudo, e o cidadão, dependente de tudo”, disse a parlamentar cassada. “O desafio é devolver às pessoas a confiança — confiança nas instituições, na lei e umas nas outras. Sem isso, não há reconstrução possível.”
A lição de Maria Corina
Naquele 7 de abril de 2014, enquanto respondia a perguntas sobre o risco de intervenção externa, o racha da oposição e o futuro da Venezuela, Maria Corina demonstrava a disciplina de quem dominava tanto o diagnóstico quanto o discurso. “Não estamos diante de um confronto entre direita e esquerda”, advertiu. “É uma luta entre civis e um grupo armado que tomou o Estado.”
As declarações de Maria Corina tinham o tom profético de quem antevia uma longa travessia. “Podem prender alguns, podem nos anular por um tempo”, disse. “Mas o movimento continuará até que conquistemos a democracia e a liberdade.”
O tempo provou que Maria Corina tinha razão. Ao longo da década seguinte, a líder venezuelana enfrentou perseguição, isolamento político, processos judiciais e ameaças à vida. Foi proibida de concorrer à Presidência, expulsa do Parlamento, espionada e difamada por um regime brutal. Mas jamais deixou de percorrer o país.
O espelho de uma região
O programa conduzido por Augusto Nunes é lembrado, entre os Roda Viva marcantes, como um retrato precoce da deterioração venezuelana. Ao mesmo tempo, serve de alerta para os riscos que rondam outras democracias do continente. A entrevistada falava da confabulação dos poderes públicos em seu país; descrevia juízes substituídos por leais ao regime; e citava os casos de deputados agredidos por exigirem o cumprimento da Constituição.
Para o público brasileiro de 2014, aquelas cenas pareciam distantes. Mas quem assistiu à entrevista captou que ali se delineava algo maior: o laboratório de um autoritarismo de novo tipo, legitimado pelo voto, sustentado por propaganda e blindado pela conivência internacional.
A pedagogia da coragem
No Roda Viva, Maria Corina revelou como enfrentara, dentro do plenário, a deputada que a agredira fisicamente e o então presidente da Assembleia, Diosdado Cabello, que ria enquanto ela sangrava. Falava sem ódio, mas com um senso ético quase litúrgico.
“Não senti dor”, disse. “Levantei e fui exigir que suspendessem a sessão.”
Esse tipo de resposta é o que a distingue de tantos líderes que sucumbem ao ressentimento. Maria Corina não fez carreira na vitimização. Fez na resiliência racional, ancorada na ideia de que a democracia é uma responsabilidade, não um direito automático.
\Na entrevista, Maria Corina sintetizou o dilema de sua geração: “Se nos asfixiam com censura e autocensura, restam duas opções: sucumbir ou insurgir pacificamente”.
A frase condensava uma ética cívica — a mesma que agora, onze anos depois, o Comitê do Nobel reconhece como um gesto em defesa da paz.
Sem arrependimentos
Um dos momentos mais fortes da conversa com Augusto Nunes e os demais jornalistas ocorreu quando Maria Corina recordou a sua ida à Organização dos Estados Americanos (OEA), em 2014. Por ter denunciado a repressão na Venezuela, foi acusada de traição e sumariamente cassada. O episódio, que a transformou em pária política, também a projetou como voz global dos direitos humanos.
“Se soubesse o que viria, teria feito tudo de novo”, disse. “Porque esse não é apenas o meu direito como deputada; é o meu dever como venezuelana.”
Essa insistência em falar, mesmo quando a palavra custa a liberdade, é o que a transformou em símbolo. Maria Corina não pediu permissão para exercer a diplomacia da verdade. Falou diretamente ao povo brasileiro, apelou à consciência latino-americana e, mais de uma vez, arriscou a vida ao regressar a Caracas.
Ao longo dos anos seguintes, enfrentou censura e campanhas de difamação. Mas continuou a falar — nos fóruns internacionais, nas praças e nas redes — com o mesmo timbre do Roda Viva: firme, racional e esperançoso.
A coerência de Maria Corina
O que mais impressionou Augusto Nunes na entrevista, segundo relataria depois, foi a coerência de Maria Corina. Ela respondia a perguntas complexas sobre economia, geopolítica e ética. Falava de políticas de transferência de renda sem populismo, de economia de mercado sem dogmatismo e sempre voltava ao ponto essencial: a dignidade humana.
“Em toda mulher venezuelana há o desejo de que seus filhos cresçam livres, não dependentes do que o governo lhes dá”, disse a agora Prêmio Nobel da Paz. “A dependência é humilhante.”
Esse argumento, que combina liberdade individual e justiça social, desmontava os clichês ideológicos da época. Enquanto parte da esquerda latino-americana romantizava o chavismo, Maria Corina expunha, com dados e princípios, o preço da submissão. Ao voltar a Caracas, Maria Corina enfrentou tribunais de exceção e campanhas de ódio.
Foi impedida de sair do país, teve aliados presos, viu o exílio ou o silêncio de muitos colegas. E manteve-se em pé, fiel à frase que dissera no estúdio da TV Cultura:
“Os democratas não pedem permissão para existir”
A consagração do Prêmio Nobel
O Nobel da Paz, raramente concedido a figuras latino-americanas, assume, no caso de Maria Corina, um valor simbólico que transcende fronteiras. Representa a vitória da coragem civil sobre o medo político. Reafirma que a resistência pacífica, mesmo quando isolada e aparentemente inútil, é a semente das transformações duradouras.
Em Oslo, onde ocorre a cerimônia do Prêmio Nobel, Maria Corina foi destacada como uma voz em “defesa intransigente da democracia, dos direitos humanos e da soberania popular em condições de opressão e risco pessoal”.
É a formulação institucional de uma história humana: a mulher que enfrentou a ditadura e não se curvou. Para o Brasil, o prêmio tem também um significado próprio. Porque foi neste país, em 2014, que María Corina encontrou um espaço para falar. Na época, parte do continente ainda a tratava como persona non grata.
O legado de Maria Corina
Durante anos, Maria Corina viveu em uma espécie de exílio interno — proibida de concorrer, impedida de viajar, isolada pela censura e pela propaganda oficial. Mesmo assim, organizou movimentos cívicos, formou novas lideranças, percorreu cidades esquecidas, multiplicou esperança. Enquanto outros opositores optaram pelo exílio real,
Maria Corina permaneceu na Venezuela. “Minha luta é aqui”, dizia. “Não quero ser heroína, quero ser útil.”
Essa recusa em fugir do país é, talvez, a razão profunda de seu prestígio atual. A Maria Corina que recebe o Nobel é a mesma que disse, ao fim do Roda Viva: “Todos os venezuelanos temos medo. Mas temos mais medo ainda de viver sem esperança”.
Revista Oeste