Depois de anos, uma CPI pode retomar o combate à corrupção no país, descobrir quem roubou aposentados e produzir estragos no governo Lula — mas só se o Supremo deixar
S empre que passa pelo poder, o PT carrega a marca de um grande escândalo de corrupção. O pagador de impostos brasileiro já assistiu a esquemas de compra de votos, desvios milionários de estatais e bancos públicos, roubo de ambulâncias, conluio com empreiteiras, caixa 2 e, desta vez, está diante de uma nova modalidade, ainda mais cruel: a praga chegou ao bolso dos aposentados. O caminho para descobrir o tamanho do rombo, o destino do dinheiro surrupiado e quem mandava no esquema começa a ser percorrido pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do INSS.
Como tudo isso começou? O propinoduto da vez é um desvio de ao menos R$ 6,3 bilhões da Previdência Social por meio de sindicatos e associações. Ao contrário das eras do Mensalão, Petrolão e outros escândalos aumentativos, a pilhagem atual não tem nenhuma sofisticação. Os sindicatos eram usados para falsificar assinaturas de aposentados ou conseguir, de alguma forma, a autorização deles para descontar valores mensais no contracheque.
Segundo dados da Controladoria-Geral da União (CGU), há casos de entidades que usaram fotos de idosos postadas em redes sociais ou copiaram assinaturas eletrônicas encontradas na internet. Outra forma de enganar os beneficiários era por meio de telefonemas enigmáticos: uma pessoa falava apressadamente frases desconexas, com ruídos ao fundo, e buscava apenas um “sim” do idoso que estava do outro lado da linha. Resultado: “desconto autorizado”.
Como o esquema foi descoberto? Ainda não se sabe quando esses bandoleiros começaram a atuar, mas as cifras desviadas explodiram logo que Lula da Silva reassumiu o poder. Com isso, também aumentaram reclamações em diversas partes do país, inclusive em juízo, de pensionistas que não entendiam por que estavam colaborando com determinado sindicato — por exemplo, uma aposentada do Distrito Federal descobriu que repassava R$ 70 mensais para uma entidade de pesca no Nordeste. A CGU acionou a Polícia Federal e o Ministério Público. Foi o início da Operação Sem Desconto.
Ao bater à porta dos sindicatos picaretas, os investigadores perceberam que a encrenca era muito maior. Perguntas básicas precisavam ser respondidas: quem inseriu esses dados falsos nos sistemas de Brasília? Quem permitiu que o dinheiro fosse liberado sem um pente-fino nos dados? Foi aí que apareceu uma quadrilha instalada no coração da Previdência Social, formada pelos clássicos lobistas de Brasília, advogados que enriqueceram do dia para a noite e engravatados só conhecidos por apelidos nos corredores — como o “Careca do INSS”, alcunha de Antônio Carlos Camilo Antunes, o principal operador.
“Há uma foto do senhor Careca do INSS mostrando que, quinze dias depois que esse governo tomou posse, já estavam no INSS”, afirmou o presidente da CPMI, senador Carlos Viana. “Essa quadrilha tinha liberdade de acesso ao Senado e à Câmara, fazia doações em campanhas políticas e tinha tanta tranquilidade que permaneceria oculta.”
A Operação Sem Desconto, liderada pela CGU, rastreou 29 entidades que atuavam no INSS. O primeiro susto foi a constatação de que 70% delas não tinham entregue a documentação exigida para efetuar os descontos. Depois, outro problema: não tinham estrutura operacional para prestar os serviços que ofereciam aos beneficiários — por exemplo, planos de saúde mais baratos, ofertas em farmácias, seguro de vida etc. Inicialmente, a CGU fez uma amostragem com 1,3 mil aposentados.
A enquete dizia: “O senhor autorizou esse desconto no seu contracheque?” Resposta: 97% dos entrevistados disseram que não. E não parava por aí: aqueles que identificavam a cobrança não conseguiam cancelá-la por telefone, mal sabiam operar o aplicativo no celular (ou nem tinham celular) ou, ainda, moravam a quilômetros de distância de um posto de atendimento.
A quadrilha
Onde entra o Careca do INSS nessa história? Trata-se daqueles trambiqueiros típicos de Brasília, que começam a percorrer gabinetes e fazer amizades com políticos, até conseguir corromper funcionários da máquina estatal. O próximo passo é abrir empresas de fachada para roubar — ele criou 22, segundo a Polícia Federal, todas com o mesmo endereço, número de telefone e valor de capital social. O Careca do INSS embolsou R$ 53 milhões desviados.
Oficialmente, contudo, o lobista declarou às autoridades ter o cargo de gerente e uma renda mensal de R$ 24 mil. Qualquer cidadão com o ensino médio sabe que é impossível, com essa renda, ter na garagem uma coleção de Porsches, BMWs, um Jaguar, imóveis e patrimônio imobilizado de R$ 14 milhões.
Quando os investigadores começaram a vasculhar as empresas, não foi difícil descobrir que ele não atuava sozinho. Elas, aliás, foram criadas em modelo de Sociedade de Propósito Específico (SPE), as quais detêm personalidade jurídica própria, mas eram utilizadas para blindar os sócios controladores. Como sempre acontece em propinodutos, surgiu uma of shore nas Ilhas Virgens Britânicas. Resumindo: o Careca do INSS era uma peça importante na engrenagem corrupta, mas não ficou milionário sozinho.
Alguns nomes passaram pelos radares dos investigadores. O primeiro deles é o do empresário Maurício Camisotti, preso pela polícia com o Careca. Ele controlava três entidades que faturaram bilhões com o esquema. Mais: fez transações de lavagem de dinheiro com uma fintech e uma casa de câmbio suspeitas de ligação com o Primeiro Comando da Capital (PCC). O principal papel de Camisotti no esquema é a lavagem do dinheiro roubado.
Outros dois nomes caíram na malha fina da operação anticorrupção: o advogado Nelson Wilians e seu ex-sócio, o empresário Fernando Cavalcanti. O primeiro é dono de um famoso escritório de advocacia — atuou, por exemplo, na partilha da herança do apresentador Gugu Liberato. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apura movimentações de R$ 4,3 bilhões do advogado, que ostenta uma vida de luxo nas redes sociais — gosta de relógios, obras de arte e tem um Rolls-Royce avaliado em R$ 11 milhões.
Na casa de Cavalcanti, os agentes apreenderam dez motos, uma Ferrari, carros de luxo, R$ 10 milhões em garrafas de vinho, obras de arte e uma réplica da McLaren de Ayrton Senna — que a PF deixou na garagem porque não sabia como rebocá-la. Os negócios de Cavalcanti são um fenômeno. Ele trabalhou na Assembleia Legislativa de São Paulo e na prefeitura paulistana. À época, declarava ter R$ 100 mil em patrimônio. Quando questionado sobre os bens milionários que adquiriu, respondeu: “O escritório cresceu muito nos últimos anos. Com isso, eu cresci juntamente com o Nelson.” Para os investigadores, Cavalcanti é o “laranja” de Nelson Wilians.
Na ocasião, o relator da comissão, deputado Alfredo Gaspar, ironizou: “Olha, é o primeiro caso que eu vejo em que o dono do escritório está com uma dívida tremenda, pelo que o senhor fala, e o senhor, que é um funcionário dele, está voando, cada vez com um patrimônio maior”, disse. “Não sei se o senhor organizou a vida do Nelson Wilians, mas, pelo jeito, o senhor organizou a sua vida.”
Todos eles foram convocados pela CPMI no Congresso Nacional, mas se recusaram a colaborar com as investigações. O motivo do silêncio: entraram na sala para prestar depoimento com habeas corpus preventivo concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para não saírem presos.
Os corruptos no poder
Há uma longa estrada pela frente até que a CPMI descubra quantas pessoas participaram do assalto ao INSS — e se elas estão dentro do governo ou têm mandatos no Congresso. No caso do Legislativo, um dado importante: a comissão só começou a funcionar em agosto, justamente porque, ao contrário das tradicionais CPIs, ela tem um “M”, de mista. Isso significa que o pedido de abertura reuniu as assinaturas necessárias de deputados e senadores. Nesse caso, o Regimento do Congresso impede que o presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre, arquive ou deixe o pedido numa fila eterna de espera, como fez com as demais.
No campo político, o então ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, dono do PDT, acabou demitido. O presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, foi colocado no cargo por Lupi, também. Mas é impossível que um desvio de mais de R$ 6 bilhões tenha passado pelas mãos de poucas pessoas.
Nesta semana, o portal Metrópoles revelou que o ex-procurador do órgão, Virgílio Filho, também ficou rico de repente. Ele negociou um apartamento em Balneário Camboriú (SC), no Senna Tower (torre mais alta do país), avaliado em R$ 28 milhões. Com salário de R$ 30 mil, registrou salto patrimonial de R$ 18 milhões. O período coincide com o que passou a atuar para desbloquear recursos para a Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag). A família comprou três imóveis à vista no ano passado, em Brasília e Curitiba, além de carros que somam R$ 2 milhões.
Com tantos milhões voando, operadores, lobistas, funcionários bandidos, a farra do INSS parece completa, não fosse um fator: ela ocorre no coração do poder. Desde que Brasília existe, quando o assalto começa na capital federal, aparece um político. Foi o que começou a acontecer desde a semana passada. Os documentos de quebras de sigilos bancários, fiscais e os relatórios do Coaf sobre movimentações financeiras já produziram resultados.
Por exemplo: o ex-ministro José Sarney Filho, o Zequinha Sarney, recebeu R$ 7,5 milhões do esquema do INSS. Ele afirma que prestou consultoria a Maurício Camisotti (o “laranja”, leia acima). Consultoria sobre o quê? “É uma consultoria de assuntos administrativos, de muitas coisas, bem legal”, disse.
Outro caso: o Careca repassou R$ 5 milhões de reais para uma publicitária que ficou famosa nas campanhas de Dilma Rousseff em 2010 e 2014, e do então governador da Bahia, Rui Costa, hoje chefe da Casa Civil. A agência Pepper foi alvo da Operação Lava Jato por receber dinheiro de empreiteiras no exterior. Mas por que a agência recebeu dinheiro surrupiado agora, uma década depois? A publicitária disse que, desta vez, não há relação com política: ela negociou uma casa em Trancoso (BA) com o lobista.
Surgiu ainda uma daquelas coincidências que só acontecem no Congresso: o senador Weverton Rocha, do Maranhão, compartilha um jatinho com o Careca. A aeronave está no nome do advogado Erik Marinho, que, por sua vez, defende o Careca. A comissão deve ouvir o piloto e pediu acesso ao plano de voo do jato.
No Senado, quando a CPI começou a esquentar, o presidente da Casa, Davi Alcolumbre, decidiu tomar uma decisão de ofício: colocou sigilo de 100 anos nos registros de entrada e saída dos investigados em gabinetes. O ex-chefe de gabinete dele, Paulo Boudens, recebeu dinheiro de uma das empresas do esquema do Careca do INSS. Alcolumbre está acuado. Questionado pelos próprios parlamentares, ele reagiu: “O senador recebe quem ele quiser”. Disse que a divulgação dos dados “fere o direito à intimidade e à vida privada”.
Nessa hora, Alcolumbre esqueceu que os senadores são figuras públicas e que a Casa Legislativa não é privada. Fato é que a CPMI do INSS é uma raridade em Brasília: funciona bem porque o governo perdeu o comando — presidência e relatoria. O presidente, Carlos Viana, aposta tudo na comissão para se reeleger. O relator saiu de desconhecido para um nome elogiado nas redes sociais — embora a velha imprensa finja que a comissão não existe. Como as reuniões são marcadas às segundas-feiras, o PT vacila com frequência e não comparece. Mais: ocorre num momento em que os partidos do Centrão desembarcaram da gestão Lula por cálculo eleitoral. E ainda tem o calendário a favor: pode ser prorrogada até maio do ano que vem.
O cenário parece promissor para quem está interessado em descobrir quem assaltou aposentados e se políticos ou partidos entraram nessa ciranda corrupta — há doações da quadrilha nas últimas eleições. Então, qual é a pedra no caminho da CPMI?
Na quinta-feira, 9, a comissão se preparou para ouvir Milton Baptista de Souza Filho, conhecido como Milton Cavalo. Ele é presidente do Sindnapi, sindicato acusado de desviar milhões de aposentados, que tem como vice-presidente o irmão de Lula, José Ferreira da Silva, conhecido como Frei Chico. “Cavalo” chegou com um habeas corpus na mão para ficar em silêncio, concedido pelo ministro do STF Flávio Dino.
Com a palavra, o senador Carlos Viana: “Estamos diante de uma blindagem de pessoas próximas ao governo”.
Giovanni Cherlini - O presidente da CPMI do INSS, Carlos Viana, foi direto: O sindicato ligado ao irmão de Lula movimentou R$1,2 bilhão e sacou R$8 milhões em dinheiro vivo. E agora, com decisão do ministro Flávio Dino, tentam blindar quem deve explicações ao povo brasileiro!
De novo, o Supremo vai atrapalhar.
Sílvio Navarro - Revista Oeste