sexta-feira, 13 de junho de 2025

'O crime impossível', por Sílvio Navarro

Fase de interrogatórios conduzida por Alexandre de Moraes escancara a falta de provas da trama golpista do 8 de janeiro e confirma que o Supremo trocou definitivamente a lei pela política


Paulo Gonet, Jair Bolsonaro e Alexandre de Moraes, durante interrogatório dos réus da Ação Penal nº 2.668, em Brasília, DF (10/6/2025) | Foto: Antonio Augusto/STF

N a tarde de terça-feira, 10, naquele que poderia ser um dos momentos cruciais do interrogatório dos réus sobre o tumulto de 8 de janeiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes deixou escapar a seguinte expressão: “Segundo a narrativa”. Ele questionava o general Walter Braga Netto, que está preso. É um resumo do que restou do processo do golpe de Estado depois desta semana: uma “narrativa”, sem provas, confissões nem nexo. 




Esse trecho da fala de Moraes, precedido de um “supostamente” na frase, é um exemplo de como nada foi comprovado na denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, que, aliás, estava completamente perdido no seu papel de promotor da ação penal. Gonet assumiu o cargo quase um ano depois da baderna de janeiro e não acrescentou nada ao relatório cinematográfico da Polícia Federal. Nesta semana, deixou a impressão de que nem sequer leu o material.


Paulo Gonet, procurador-geral da República, nos interrogatórios dos réus da Ação Penal nº 2.668, em Brasília, DF (9/6/2025) | Foto: Ton Molina/STF

O general Braga Netto foi indagado se teria entregado uma sacola de vinhos cheia de dinheiro ao coronel Mauro Cid, que, por sua vez, pagaria os “kids pretos” — militares treinados para operações especiais — para sequestrar e enforcar Moraes, e depois envenenar o presidente Lula da Silva e seu vice, Geraldo Alckmin. O interrogatório transcorreu assim: 

“Essa reunião teria sido, segundo a narrativa desenvolvida na denúncia, teria sido o início do que depois deflagrou o financiamento da operação Punhal Verde Amarelo e Copa 2022. O senhor teve conhecimento?”, perguntou o ministro. O general respondeu: “Eu só ouvi esses nomes quando a mídia publicou”. Resumindo: ninguém nunca viu a sacola, Mauro Cid disse que havia dinheiro, mas não sabia quanto, não há uma única foto.


Jair Bolsonaro observa o general Walter Souza Braga Netto, durante interrogatório dos réus da Ação Penal nº 2.668, em Brasília, DF (10/6/2025) | Foto: Antonio Augusto/STF 

É evidente que ninguém espera que, em qualquer julgamento, um réu faça confissões nessa fase do processo — se alguém pretende assumir crimes, uma delação é mais vantajosa. Mas o que o país viu nesta semana foram depoimentos de militares, como o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, o almirante Almir Garnier, o general Augusto Heleno e o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, absolutamente serenos diante de uma peça acusatória fabricada com recortes de conversas de WhatsApp. 

Esses militares, junto com Jair Bolsonaro, aparecem no “núcleo crucial da organização criminosa”, segundo a denúncia. No entanto, quando Mauro Cid foi interpelado sobre quem nesse núcleo era — e se havia — o responsável por tratar com os manifestantes acampados em frente aos quartéis, a resposta foi devastadora para a PGR: “Nunca houve esse contato”


Mauro Cid durante interrogatório dos réus da Ação Penal nº 2.668, em Brasília, DF (10/6/2025) | Foto: Ton Molina/STF


Contra Almir Garnier, por exemplo, pesa a acusação de que teria “colocado tropas à disposição” do ex-presidente Jair Bolsonaro durante uma reunião no Palácio do Planalto. Esse encontro é tratado como a grande reunião do golpe de Estado — nela, diz a denúncia, foi apresentada a “minuta” da virada de mesa. O almirante derrubou a acusação em uma linha: “Eu nunca usei essa expressão [colocar as tropas à disposição]”. Outra pergunta: E a minuta? “Eu não vi minuta”, respondeu. Nesse ponto, o militar recorreu a um dado concreto: “Quando o senhor fala ‘minuta’, eu penso em papel. Não recebi esse tipo de documento”. 

De fato, a única informação sobre a existência dessa minuta surgiu depois de uma operação de busca e apreensão na casa de Anderson Torres. Ele disse que o papel chegou a ele num envelope por acaso. “Na verdade, ministro, não é ‘minuta do golpe’. Eu brinco que é a ‘minuta do Google’ [porque estava disponível na internet]. Eu levava duas pastas para minha residência, uma delas contendo a agenda do dia seguinte, preparação de discurso, e outra com documentos gerais que chegavam ao ministério”, disse. “O documento era muito mal escrito, cheio de erros de português, de concordâncias, até o nome do tribunal estava escrito errado. Então, não é da minha lavra, não sei quem fez, não sei quem mandou fazer e nunca discuti esse tipo de assunto.”




A minuta, aliás, passou a ser chamada pelo termo técnico “considerandos” depois de ter virado piada nas redes sociais. O general Paulo Sérgio Nogueira também foi questionado por Moraes. “Simplesmente, até hoje eu não sei do que se trata esse documento”, disse. 

Bolsonaro também negou a existência do documento. “Não escrevi, não alterei, não digitei nada. Não tenho responsabilidade sobre essa minuta”, disse. “Foi abandonada qualquer possibilidade de ação constitucional.”


Jair Bolsonaro durante interrogatório dos réus da Ação Penal nº 2.668, em Brasília, DF (10/6/2025) | Foto: Antonio Augusto/STF


Bolsonaro O interrogatório de Jair Bolsonaro frustrou grande parte da imprensa que apoia o consórcio de poder STF-PT e os próprios políticos de esquerda. Eles esperavam um embate duro entre o ex-presidente e Moraes, o que não aconteceu. Bolsonaro fez até o que chamou de brincadeira ao sugerir se o ministro queria ser seu vice na chapa de 2026.




Mas quem protagonizou o maior vexame foi novamente o despreparado Paulo Gonet. O procurador citou uma mensagem enviada ao ex-presidente pelo WhatsApp por um major brigadeiro que falava em desmobilizar tropas. Na resposta, porém, Bolsonaro disse que não tinha mais contatos no seu celular desde que saiu do país, na virada de 2023. Mas estranhou o nome do militar Mauricio Pazini Brandão. Então, lembrou o procurador-geral da República de que sua equipe não fez o dever de casa: o militar estava aposentado, é professor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e, portanto, não poderia dar ordens a nenhum pelotão por razões óbvias. A reação de Gonet é constrangedora.

A única negativa entre Moraes e Bolsonaro ocorreu quando o togado vetou a exibição de vídeos pela defesa do ex-presidente, que mostrariam, entre outros, políticos como Flávio Dino questionando o modelo eleitoral brasileiro. Talvez tenha sido um raro tema em que Moraes, claramente, demonstrou desconforto: falas sobre o sistema eleitoral — de fato, virou um tema proibido. 

Num interrogatório no qual as frases mais utilizadas foram “não sei”, “não vi”, “não lembro” e “se não me engano”, especialmente ditas por Mauro Cid (leia artigo de J.R. Guzzo nesta edição), quem parecia solitário em busca de respostas no STF era o ministro Luiz Fux. 

Semanas antes, o magistrado havia pedido para acompanhar presencialmente essa fase da instrução criminal porque estranhou o fato de o delator ter prestado 11 depoimentos à Polícia Federal — nove foram utilizados —, e todo o processo permanecer ancorado somente no que foi dito por ele. Único juiz genuinamente de carreira na Corte, Fux queria desempenhar o papel que ninguém cumpriu: fazer aos réus as perguntas que realmente importam.

Foi Luiz Fux quem questionou, por exemplo, se a “minuta do golpe” tinha sido assinada por alguém — principalmente por Jair Bolsonaro. O ministro também indagou Cid sobre quem havia gravado a conversa na qual ele conta ter sido coagido pela Polícia Federal, segundo a revista Veja publicou; ou, ainda, quantas vezes ele foi chamado para ajustar trechos de sua delação na PF, se uma ou 11. Ficou claro o cuidado do ministro, que a Procuradoria-Geral da República não teve, se a cada novo depoimento de Cid a história era moldada. 

Um detalhe importante: o delator foi preso numa investigação sobre fraude de carteirinha de vacinação contra a covid-19, que deixou de ser assunto porque o alvo sempre foi o seu celular — e o que ele poderia ajudar num mosaico do golpe de Estado.


Ministro Luiz Fux durante interrogatórios dos réus da Ação Penal nº 2.668, em Brasília, DF (9/6/2025) | Foto: Fellipe Sampaio/STF

Bolsonaro se pronunciou nas redes sociais depois da rodada de interrogatórios. Disse que a etapa serviu para colocar um ponto final em duas “narrativas absurdas”: a primeira é a minuta do golpe; a segunda é a prisão do ex-assessor Filipe Martins, que cuidava de relações internacionais. “Ele passou mais de seis meses preso [segue com tornozeleira] em um presídio junto com criminosos comuns, acusado injustamente de ter embarcado comigo em um voo presidencial. Durante todo esse tempo, nem a Polícia Federal nem a Procuradoria me perguntaram se ele estava nesse voo, pois sabiam que a resposta seria negativa e que a prisão se baseava numa falsidade”, afirmou. 

O governo americano abriu uma investigação para saber quem fraudou o registro de entrada de Martins no país, já que ele não embarcou no voo, o que ainda pode acarretar consequências graves se comprovado. 

“Até quando vão continuar com essas injustiças? Até quando vão sustentar essas mentiras? Essas narrativas foram fabricadas para sustentar acusações sem provas, sem fatos e sem qualquer vínculo com a realidade”, disse. 

Bolsonaro está certo. O que restou dessa fase do processo é o retrato de um tribunal sem a presença de juízes de verdade — Fux tenta ser a exceção —, com um procurador que parece ter entrado na sala errada, e um delator que não se lembra de nada. Infelizmente, todos eles estão decidindo o futuro de muita gente, a maioria anônima, acusada de um crime impossível

Sílvio Navarro - Reviata Oeste