sexta-feira, 15 de novembro de 2024

J.R. Guzzo - Cinco cenas do Brasil

Os presos por Alexandre de Moraes | Montagem: Revista Oeste/Reprodução 

Esses fatos revelam decisões judiciais que violam a Constituição, a lógica comum e o entendimento básico do conceito de senso moral


As afirmações listadas abaixo, sem nenhuma exceção, são fatos objetivos, públicos e confirmados — fatos, única e exclusivamente ouça este conteúdo readme 1.0x 15/11/2024, 15:45 Cinco cenas do Brasil - Revista Oeste https://revistaoeste.com/revista/edicao-243/cinco-cenas-do-brasil/ 1/14 A fatos, sem nenhum tipo de opinião ou de julgamento. Todos eles ocorreram por decisão do ministro Alexandre de Moraes, com a concordância e o apoio do Supremo Tribunal Federal, a máxima Corte de Justiça em funcionamento no Brasil. Esses fatos, também sem exceção, revelam decisões judiciais que violam a Constituição, a lógica comum e o entendimento básico do conceito de senso moral. Não se trata de uma lista fechada. Há outros fatos de natureza idêntica, cuja prática é igualmente proibida por toda a legislação penal brasileira. 

Os que serão relatados a seguir, de qualquer modo, fornecem um retrato suficiente do que está ocorrendo no Brasil de 2024, à frente de todos e com a aprovação formal das lideranças da Câmara e do Senado, da maior parte da mídia e das classes culturais. São considerados por todas elas como sendo ações indispensáveis para a democracia, as instituições nacionais e o Estado de Direito. Sustentam-se na crença de que houve uma tentativa de “golpe de Estado” em 8 de janeiro de 2023, e de que há uma ameaça permanente da extrema direita contra a nação. 

Os acontecimentos em questão são os que se seguem

1. O autista Jean de Brito, de 27 anos, está condenado pelo ministro Moraes a usar tornozeleira eletrônica desde o dia 18 de julho do ano passado, sob a suspeita de ter cometido os crimes de “golpe de Estado” e “abolição violenta do Estado democrático de Direito”, em “movimento armado”. Brito nunca teve uma arma de fogo, ou qualquer outra que lhe possibilitasse vencer as três Forças Armadas do Brasil, a máquina estatal e a realidade concreta para derrubar o governo do presidente Lula — e, mesmo que tivesse, não dispõe de condições mentais para fazer isso. 

Brito mora em Juara, em Mato Grosso, a pouco mais de 650 quilômetros de Cuiabá, num casebre de madeira no meio de um lixão (leia a reportagem de capa desta edição). Não há até agora nenhuma informação coerente, por parte do ministro, da Procuradoria-Geral da República ou da polícia para manter Brito há quase um ano e meio com tornozeleira, no meio do mato, sem comunicação, sem dinheiro e sem nenhum conhecido influente, em nenhuma área. 



O catador de material reciclado Jean de Brito, de 28 anos | Foto: Reprodução


Jean de Brito não tem condições materiais de fugir para Londres, Paris ou Nova York, digamos, onde se colocaria fora das decisões de Moraes — não consegue nem ir a Cuiabá. Como um autista que mora numa maloca dentro de um lixão, numa localidade remota nas vizinhanças da reserva indígena Apiaka-Kayabi, mal consegue se alimentar e tem problemas sérios de saúde, pode ser uma ameaça ao Estado Democrático de Direito? Mas é isso que o Supremo Tribunal Federal do Brasil está dizendo, sob o aplauso da esquerda nacional, do deputado Lira e do senador Pacheco, da Ordem dos Advogados e das organizações de defesa dos direitos humanos. Todos eles, mais a maior parte dos jornalistas, dos bilionários e da elite brasileira em geral, consideram que não pode, em nenhuma hipótese, haver uma anistia para cidadãos como Jean de Brito. 

Ele, e todos os demais na sua situação, são oficialmente classificados como criminosos que ameaçam a democracia brasileira.  A cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, de 38 anos, moradora de Paulínia, no interior de São Paulo, está presa desde março de 2023. As acusações são semelhantes às feitas contra o autista de Juara: golpe de Estado, abolição violenta do Estado de Direito e uso de armas durante a baderna do 8 de janeiro em Brasília. Débora, na ocasião, escreveu “perdeu, mané” na estátua da Justiça que fica em frente ao prédio do STF, usando um batom. Repetiu, aí, a mesma frase dita pelo presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, ao responder ao assédio de um brasileiro numa visita a Nova York, pouco após a eleição presidencial de 2022.

Delatada à polícia por uma jornalista da Folha de S.Paulo, Débora está há 20 meses numa prisão paulista a 250 quilômetros, ida e volta, da casa de sua família em Paulínia. Todos os recursos dos seus advogados foram negados por Moraes e seus colegas de Turma e de plenário; ela enfrenta, agora, a possibilidade de uma condenação a 17 anos em regime fechado. Débora tem dois filhos, de 9 e de 6 anos, mas não recebeu o mesmo tratamento dado à mulher do ex-governador Sérgio Cabral, condenado a 400 anos de prisão por corrupção confessa — a sra. Cabral foi solta para acompanhar a criação de seus filhos. Débora, ao contrário, foi transferida para uma cadeia distante da sua cidade, o que dificulta a visita das crianças.

Débora Rodrigues dos Santos, durante o ato do 8 de Janeiro | Foto: Reprodução 

O ministro Moraes definiu o batom da cabeleireira como “arma com substância inflamável”, o que agrava as circunstâncias dos crimes de que é acusada. Ele também escreveu em seus despachos que Débora não pode ser solta, nem com tornozeleira, porque ela apresenta, em seu entendimento, “periculosidade social”, embora nunca tenha sido condenada em sua vida por qualquer tipo de delito. A PGR ficou mais de um ano sem apresentar nenhuma denúncia oficial contra a ré — o que significa, perante a lei brasileira, prisão ilegal, no caso sustentada pelas instâncias supremas da Justiça. Os vídeos gravados por seus filhos, implorando a prisão domiciliar da mãe, foram ignorados por Moraes. 

Na definição de que o batom é uma “substância inflamável”, algo que tecnicamente pode vir a fazer parte da jurisprudência da nossa “suprema corte” (como o presidente Lula se refere ao STF), também parece ter sido incluída a descrição de estilingues e bolinhas de gude como “armas brancas”. Não há registro de nada parecido em nenhum outro sistema judicial daquilo que se considera o mundo civilizado. Também não existe registro de que tanto o batom como os estilingues  já tenham sido considerados, em qualquer época ou país, como armas para a execução de um golpe de Estado. 

3. O ex-assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro, Filipe Martins, de 40 anos, foi preso no dia 8 de fevereiro de 2024 sob a acusação de ter viajado para os Estados Unidos em 30 de dezembro de 2022. Ali, segundo as suspeitas da Polícia Federal e do ministro Moraes, teria ido encontrar-se com Bolsonaro para tratarem, pelo que foi possível entender, do “golpe de Estado” que seria dado no mesmo dia 8 de janeiro de 2023, por eles e por outros. Martins ficou trancado seis meses na cadeia em Curitiba sem que a Polícia Federal, Moraes ou qualquer outra autoridade tenham apresentado nenhum indício da acusação que lhe era feita. Em nenhum momento, também, o Ministério Público fez qualquer tipo de denúncia legal contra ele.\

A lei proíbe que um cidadão fique preso durante seis meses seguidos sem que a polícia apresente provas de suas suspeitas, ou que o MP ofereça uma denúncia legal. No caso de Martins, Moraes prorrogou sucessivamente os prazos previstos na legislação penal para a prisão temporária, e manteve o suspeito atrás das grades enquanto a PF procurava achar, e nunca achou, alguma coisa que comprovasse a viagem sob suspeita. Desde o início, o STF, por meio de seu ministro, inverteu o ônus da prova. Era Martins que teria de provar a sua inocência, e não as autoridades públicas que teriam, em toda e qualquer circunstância, de provar a sua culpa.


Filipe Martins, ex-assessor de Jair Bolsonaro, preso em 8 de fevereiro de 2024 | Foto: Reprodução/Redes sociais

É princípio elementar do Direito Universal — e a sua violação foi agravada pela circunstância de que o acusado, mesmo sem ter a obrigação de fazer isso, provou materialmente que não tinha ido para os Estados Unidos no dia 30 de dezembro de 2022. Com o bilhete da companhia aérea, recibos do Uber e a localização por satélite do seu celular, Martins comprovou que tinha ido para Curitiba, e dali para Ponta Grossa, quando, segundo a PF, estava na Flórida com Bolsonaro. Mesmo assim, foi mantido na prisão por ordem de Moraes; seus advogados não receberam até hoje nenhuma explicação lógica para a decisão. Martins também foi delatado à polícia por um jornalista, este de Brasília; alguns dias atrás, ele escreveu que estava se demitindo do veículo com o qual colaborava. 

Outro elemento da história, de acordo com investigações preliminares abertas nos Estados Unidos, é a denúncia de que um funcionário do Departamento de Imigração falsificou um registro de entrada de Martins em território americano, para mostrar que ele foi para a Flórida na data incriminada — a base, supostamente, da acusação feita pela PF. Falsificar documento oficial é crime de natureza gravíssima nos Estados Unidos. Os superiores do funcionário do governo Joe Biden não pressionaram na apuração das suspeitas levantadas contra ele. 

O novo chefe da Imigração americana, um ex-policial conhecido por pregar “tolerância zero” contra irregularidades no serviço que vai comandar a partir de janeiro de 2025, é descrito como homem de “direita”, ou “extrema direita”, e faz parte do círculo íntimo do novo presidente Donald Trump. Há a expectativa de que ele retome as investigações sobre o caso. Quanto a Filipe Martins, foi solto por Moraes em 9 de setembro último, seis meses depois de ser encarcerado, com a obrigação de usar tornozeleira eletrônica — embora o MP tenha declarado formalmente que não havia, nem há, razão para ele ficar preso. 

Seus advogados também não receberam informação nenhuma sobre o motivo da tornozeleira, quando o próprio Moraes afirmou que não há provas contra ele. 4. O ministro acusou o empresário Roberto Mantovani, de Santa Bárbara d’Oeste, no interior de São Paulo, e dois membros da sua família de terem agredido fisicamente seu filho no Aeroporto de Roma, ao embarcar de volta para o Brasil numa viagem com o pai à Itália. O episódio aconteceu no dia 15 de julho de 2023. 

A agressão, segundo o ministro, teria sido um tapa na nuca que deslocou os óculos do filho. Em seu entender, e no entender do STF, foi cometido um atentado contra “o Estado de Direito”. Depois de 17 meses completos de investigação, que mobilizaram a Polícia Federal, a máquina de Justiça da República e o próprio tribunal, não há nenhuma prova da acusação — mas Mantovani continua a ser processado, em sigilo, pelo ministro Dias Toffoli, e não há perspectiva de um final para o caso. O episódio foi todo filmado pelas câmeras de segurança do Aeroporto de Roma, e as imagens foram enviadas pelo governo da Itália ao Brasil há mais de um ano. 

Desde então têm estado sob investigação da Polícia Federal — e, até agora, não revelaram nada sobre a agressão denunciada por Moraes. Os advogados do empresário não entendem por que seu cliente tem de permanecer à disposição do STF quando as fitas não provam a acusação — se provassem, ele já teria sido denunciado pelo MP, ou por Toffoli, ou por alguém, e até hoje não há nenhuma denúncia formal. Também não está claro por que as imagens são mantidas pelo STF como um segredo de Estado. 


Roberto Mantovani, preso por suporta agressão que continua sem nenhuma prova divulgada | Foto: Reprodução 

A primeira fase das investigações se encerrou com um ofício do delegado encarregado do caso na PF pedindo que o inquérito fosse arquivado. Segundo o seu próprio relatório, teria havido uma “aparente agressão” — mas como o crime de agressão aparente não existe no Código Penal brasileiro, e como as fitas não continham prova de qualquer natureza, sugeriu o término do caso. Esse delegado foi afastado do inquérito e substituído por outro que chegou à conclusão contrária — o que faz o caso continuar aberto. O último problema do episódio é que os peritos indicados por Mantovani afirmam que as imagens mostram o inverso do que Moraes alega — foi o seu filho quem agrediu o empresário, como ele diz desde o começo. 

Resulta, no momento, que ficou impossível saber o que de fato aconteceu, pois Toffoli mantém o sigilo do material probatório. Nunca se sabe por que um caso de porte limitado como esse, onde há imagens físicas, mas não há provas, está fazendo no supremo tribunal de Justiça do Brasil — e envolvendo um acusado que não tem o foro especial exigido para julgamentos penais no STF. O complicador final foi um acordo proposto oficialmente pela PGR a Mantovani dois meses  atrás: encerrariam a “persecução penal” se ele fizesse uma confissão de culpa, por calúnia e injúria, contra Moraes e seu filho. O empresário considerou incompreensível a proposta da PGR. Sua pergunta é: como ele poderia confessar crimes que não cometeu em troca de um favor que não pediu? É onde estamos no momento.

5. O quinto caso da lista é o que acabou pior para um dos presos do “8 de janeiro” — a maior tragédia de todas as que marcaram os processos de Brasília até agora. Cleriston da Cunha, um pequeno comerciante de 46 anos da periferia de Brasília, preso no quebra-quebra contra os edifícios dos Três Poderes, morreu por falta de atendimento médico adequado no pátio da Penitenciária da Papuda. “Clezão do Ramalho”, como ele se apresentava em seu perfil nas redes sociais, sofria de doenças graves e seu estado se agravou durante os nove meses em que esteve nos cárceres do STF: teve desmaios, crises de vômito e outras crises, até morrer, em 20 de novembro do ano passado, quando tomava banho de sol.

Cleriston da Cunha sofria de problemas de saúde graves, e sua condição piorou ao longo dos nove meses que passou detido sob custódia do STF. Ele morreu na prisão | Foto: Reproduç

Atestados médicos, devidamente assinados, certificaram que Cleriston corria risco de morte e precisava ser transferido com urgência do presídio para um hospital. O próprio MP pediu formalmente a Moraes a sua internação — que já havia sido solicitada antes por seus advogados. O ministro nunca deu resposta a nenhuma das petições que recebeu. O resultado é que o acusado morreu na prisão, sem nunca ter sido denunciado por crime algum, sem julgamento e sem a assistência médica a que todo preso tem direito legal. Morreu sob a guarda e sob a responsabilidade do Estado brasileiro — no caso, o STF. Nenhuma organização de defesa dos direitos humanos disse até hoje uma palavra sobre sua morte. *** Estes são cinco casos concretos. Poderiam ser 50, ou 500, conforme se queira abrir o leque dos mais de mil cidadãos que se viram sob as acusações do STF sobre o “golpe do 8 de janeiro”. 

A esquerda, a maioria da mídia e os brasileiros que se declaram equilibrados continuam fiéis à crença de que todos são criminosos que quiseram dar um golpe de Estado contra o governo Lula e representam um perigo real e ininterrupto para a democracia. Sua anistia, por crimes que não praticaram e nem tinham a possibilidade racional de praticar, é considerada inadmissível. Não há, entre todos eles, um único cidadão com um mínimo de influência, posição social ou fortuna. 

O texto abre aqui, e só aqui, uma exceção em seu compromisso de tratar unicamente de fatos e não se envolver com questões de opinião. O ministro Alexandre de Moraes, pelo que mostra em tudo o que faz e não faz, continua afirmando em público que não vê nada de irregular nos atos descritos acima — ao contrário, dá a impressão de se considerar o principal salvador da democracia no Brasil e o homem mais forte do país. Nem ele, talvez, saiba exatamente aonde quer chegar. 

Aparenta a certeza de que tem o apoio maciço da imprensa, dos generais e de todas as elites econômicas, políticas e intelectuais. Mais que tudo, parece estar convencido de que o presidente Lula e o seu governo vão continuar condenados, pelo resto da vida, a ser sócios de todas as suas decisões e assumir todos os custos do apoio que dão a ele.

Ministro Alexandre de Moraes, principal responsável pelas prisões irregulares | Foto: Ton Molina/Fotoarena/Estadão Conteúdo 

A realidade dos fatos vai contar como será o fim dessa história. Lula, numa declaração recente, disse sobre si mesmo: “Tô f...”. Não se sabe até agora ao que estava se referindo quando falou isso. Se pensou em Alexandre de Moraes, pode ter dito aí a maior, ou a única, verdade dos seus dois anos de governo. 

 

J.R. Guzzo, Revista Oeste