sexta-feira, 18 de outubro de 2024

'O agente da CIA', por J.R. Guzzo

O Estado só considera lícitos os atos que derivam das ficções criadas por ele próprio. Fora disso, é atentado à 'democracia'


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A ocorre nos estados clínicos de psicose, a única realidade desse tipo de regime é, justamente, o rompimento radical com a realidade. Saem os fatos. Entra a ficção oficial. Sai o raciocínio lógico. Entra o Alcorão do governo e dos seus sistemas de propaganda. O pensamento racional passa a ser um “tipo penal”, como dizem os advogados criminalistas — pode dar, e tem dado, inquérito policial, processo e cadeia. O Estado só considera lícitos os atos que derivam das ficções criadas por ele próprio. 

Fora disso, é atentado à “democracia”, “desinformação” e fake news, mais discurso do ódio. Assunto encerrado. Causa finita. Escolha a sua ficção — o que não falta na atual política brasileira é variedade de miragens à disposição do público em geral, e todas elas têm força de lei. Que tal, para começar, a tentativa de golpe armado do dia 8 de janeiro de 2023, no qual as armas mais potentes eram dois estilingues? Você também pode ficar, se quiser, com as “minutas do golpe” do coronel Cid, que nem o ministro Alexandre de Moraes está conseguindo usar como prova de nada. 

Pode ser, como dizem os jornalistas, o “roubo de joias” do qual acusam Jair Bolsonaro até hoje, a falsificação de atestados de vacina e a própria prisão do expresidente — que foi anunciada várias vezes pela mídia como sendo para “esta noite”.

E as urnas eletrônicas do TSE e de seus padroeiros no STF, então? Você é obrigado a acreditar que elas são um orgulho do Brasil perante o resto do mundo, imunes a qualquer ação humana sobre o seu funcionamento — e, mais do que tudo, atingiram um nível de perfeição tecnológico tão espetacular que a ciência mundial não pode mais, simplesmente, sugerir nenhum tipo de melhoria para elas. Essa crença é obrigatória, legalmente, no Brasil da realidade irreal. Se você duvidar dela numa palestra a embaixadores estrangeiros, por exemplo, pode ser declarado “inelegível” até o ano de 2030. Se for presidente do PL, e pedir uma recontagem dos votos, pode levar uma multa de R$ 22 mi no lombo. Se escrever no X, o ministro te pega. 

A fantasia do momento, uma das mais metidas a besta da coleção toda, é que a Câmara dos Deputados está discutindo um “pacote anti-STF”. Pela cólera que despertou nos ministros, no governo Lula e na maioria da mídia, trata-se de uma ameaça tão grave quanto a insurreição dos motoboys, manicures e encanadores que tentaram dar o “golpe do 8 de janeiro”. É um atentado contra o princípio constitucional da “separação de Poderes”, dizem eles. É uma vendeta contra a coragem do STF em perdoar as multas de bilionários corruptos, viajar pelo Primeiro Mundo às custas do “empresariado” e definir batom como “substância inflamável”, para efeitos de defesa da democracia. 

É também uma “pressão inaceitável” contra um tribunal que mantém aberto há cinco anos e meio um inquérito policial vetado por lei, que anula seguidamente decisões do Congresso e que criou o flagrante perpétuo, o crime de acampar na porta de quartel e a prisão preventiva por tempo indeterminado. 

O Congresso, nesse Brasil em que a realidade é criminalizada, está fazendo justamente o contrário — tenta, isto sim, salvar o STF de sua corrida rumo ao suicídio. A Câmara de Deputados, através de quatro projetos, pretende colocar certos limites aos poderes absolutos, ilícitos e irracionais que o Supremo deu a si próprio, com apoio do governo Lula, das Forças Armadas e dos grandes veículos de comunicação. É um esforço, na verdade, em defesa da Constituição Federal: protege as instituições brasileiras da situação de ilegalidade que o STF criou neste país de 2018 para cá, e do regime de exceção imposto pelos ministros. Mais precisamente, defende a população de uma ditadura disfarçada de “ciência jurídica”, ou obra de “recivilização” da sociedade, como diz o ministro Luís Roberto Barroso. 

O que pretendem, na realidade real, os projetos aprovados na Comissão de Justiça da Câmara? Pelos relatos, versões e análises que saem dos serviços de relações públicas do Supremo, o objetivo dos deputados é eliminar o Poder Judiciário na sua instância mais alta. É obviamente um disparate, como o “golpe do dia 8 de janeiro” ou o “atentado” contra o ministro Moraes no Aeroporto de Roma. Um dos projetos, por exemplo, prevê que decisões do Congresso Nacional não podem mais ser anuladas pelo voto de um único ministro — “monocrático”, como eles dizem e a imprensa repete. Teria de ser, no mínimo, pela maioria dos 11 ministros. O que pode haver de mais lógico, moderado e simples do que isso? Nada — mas o fim do voto do “eu sozinho” está sendo denunciado como um tiro de morte na democracia. 

É esse tipo de aberração que permite ao ministro Dias Toffoli anular, sem prestar contas a ninguém, e em aberto desrespeito à lei, os R$ 10 bilhões que a J&F dos amigos de Lula se comprometeu a pagar para seus diretores saírem da cadeia pelo crime de corrupção ativa. Foi o que permitiu ao ministro Edson Fachin anular todas as condenações de Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, sem o exame de uma única e escassa prova — ele decidiu, num ato de pura vontade pessoal, que o endereço do processo estava errado, e Lula saiu da cadeia para ser colocado na Presidência da República. É o que permite ao ministro Flávio Dino proibir que as vítimas da tragédia de Sobradinho contratem e paguem advogados na Inglaterra para defender seus interesses no caso. É uma lista que não acaba mais — e tem teores de imoralidade de 100%.

É claro por que os ministros do STF não querem mudar nada disso, não é mesmo? Nem eles e nem os interesses a que servem, e pelos quais são por sua vez servidos, num arco-íris que vai de Lula aos irmãos Batista, do Psol à Odebrecht. O restante das mudanças em estudo vai na mesma direção. Tratam, basicamente, de limitar os poderes ilegais que o STF atribuiu a si mesmo e que são uma afronta direta ao que está estabelecido na Constituição em vigor no Brasil. Qual é o problema em tratar dessas questões? É alguma loucura — como as que o STF tem feito há mais de cinco anos? Quem enlouqueceu foi a nossa “suprema corte”, como diz Lula. O que os deputados da oposição estão fazendo é chamar a ambulância do Samu para levar o surtado até o hospício mais próximo. Os projetos de reforma do STF são perfeitos? 

É claro que não. Talvez até não sejam bons. Certamente têm de ser discutidos. Mas é justo aí que está o ovo da cobra: os ministros, as classes que não produzem e a mídia não querem, de jeito nenhum, que qualquer reforma seja sequer debatida no Congresso. Onde seria permitido falar do assunto, então? Nos eventos internacionais do Gilmarpalooza? Em Roma, sob o patrocínio da JBS, ou em Londres, sob o patrocínio da British American Tobacco? Nas reuniões do Diretório Nacional do PT? É uma farsa tamanho XXX-extra-máximo. Acusam a Câmara, a oposição de direita e “os bolsonaristas” de quererem dar um golpe de Estado “atacando” o STF. Mas se os deputados forem proibidos de discutir uma lei, qualquer lei, para que diabo serviria esse Congresso?

Quem, se não os parlamentares eleitos, tem o direito de discutir mudanças no Supremo? Onde está escrito na Constituição que o STF não pode ser mudado? Onde estão listadas as leis que a Câmara e o Senado podem aprovar — e quais seriam as que não podem? E de onde vem a extraordinária ideia de que o Congresso Nacional tem de respeitar um padrão de qualidade ISO 9000 nas leis que discute? Pior que isso: quem autorizou o STF, a mídia e o Lord Protector do Brasil, seja ele Barroso ou Moraes, a decidirem que a Câmara não tem qualificação para tratar do assunto — por acharem que os eleitores brasileiros são mais desqualificados ainda? 

A cereja do bolo, no caso, é que o pedido para o STF julgar inconstitucionais os projetos vem justo de um deputado de circunstância — na verdade, um prontuário policial ambulante, metido em processo na Justiça por ladroagem  grossa, e hoje plenamente integrado ao “projeto de país” de Lula. Quer dizer: a Câmara não tem o direito de contestar o STF, mas um deputado tem o direito de contestar a Câmara. 

Ele corre o risco de virar mais um herói instantâneo dos jornalistas, que, de qualquer forma, já anunciam que o STF “tem munição” para fazer o presidente da Câmara e outros gatos gordos do pedaço correrem se esconder na toalete com medo da Justiça Penal. É assim que funciona, na prática, a “defesa da democracia” no Brasil recivilizado pelo ministro Barroso. A lei tem de ser rejeitada não pelo voto livre, depois de debate livre, por parlamentares livres. Também não vêm ao caso os seus méritos e os seus deméritos. A única coisa que se leva em conta, e se considera uma notável virtude cívica, é tocar terror nos congressistas. Foram colocados lá por uma massa de eleitores ignorantes, fascistas e incivilizados — mas não tem problema, porque o STF está aí para resolver essas coisas. 

O fato é que a sociedade por cotas que governa o Brasil de 2024, como se vê neste caso, considera que o país atingiu um estágio superior de civilização por conseguir algo jamais tentado pelas melhores democracias do planeta: tem um ordenamento jurídico tão perfeito, mas tão perfeito, que o STF vai vetar uma lei antes de saber o que foi aprovado. É onde acaba por desaguar, inevitavelmente, o culto à estupidez de terno e gravata. No caso brasileiro, uma das manifestações mais extremas dessa religião é a ideia de que “decisão do STF não se discute, se cumpre”. 

Pois é. Na Venezuela do companheiro Nicolás Maduro a ditadura está dizendo precisamente a mesma coisa. O STF deles decidiu que a eleição não foi roubada — e, como isso é uma ordem judicial suprema, ninguém tem de ficar discutindo nada. Nem Lula. Como disse em público o procurador-geral de Maduro, cada vez mais impaciente com a hesitação de Lula em reconhecer a honestidade da eleição na Venezuela (ele continua esperando as “atas”, quase três meses depois), o processo eleitoral lá foi exatamente igual ao daqui. No Brasil o STF-TSE apresentou números dizendo que Lula ganhou em 2022. Na Venezuela o STF-TSE local apresentou números dizendo que Maduro ganhou em 2024. E então: qual seria a diferença? Na opinião do PGR de lá, aí tem coisa — Lula, disse ele na frente de todo mundo, é um agente da CIA disfarçado de esquerdista. Só pode ser 

J.R. Guzzo, Revista Oeste