sexta-feira, 4 de outubro de 2024

'Liberdade algemada', por Cristyan Costa

'Cartel Lula-STF' persegue de forma implacável quem é contra a corrupção e atrocidades da ditadura - Reprodução



Torres, Vasques e Martins são vítimas de um novo elemento criado por Moraes no Direito, além do flagrante perpétuo, da inversão do ônus da prova e de outras aberrações estabelecidas no ordenamento jurídico: a meia liberdade. Mesmo sem ter cometido crime algum, o trio é atormentado diariamente por cautelares absurdas determinadas pelo ministro do STF. Sem prazo para o inferno pessoal de cada um terminar, eles aguardam impacientes a incerta chegada da justiça


I magine alguém ir para a cadeia sem ter cometido crime algum. E que, mesmo ao apresentar provas de sua inocência, ficou em um presídio, sem qualquer possibilidade de deixá-lo. Pense, agora, que meses depois essa pessoa conseguiu finalmente sair de trás das grades. O pesadelo acabou, certo? Errado. Isso porque, a partir de agora, ela vai ter de cumprir uma série de “medidas restritivas” que transformam a própria casa em um cárcere e acorrentam a uma tornozeleira eletrônica o pouco de liberdade que restou. 

Essa é a situação do ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Silvinei Vasques, do ex-secretário de Justiça do Distrito Federal (DF) Anderson Torres e do ex-assessor da Presidência para Assuntos Internacionais Filipe Martins. Todos foram integrantes do governo Bolsonaro e são vítimas do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Do céu ao inferno sem escalas Dos três, Torres é o que está há mais tempo no purgatório dos inocentes. Ele deixou o 19º Batalhão da Polícia Militar do Distrito Federal em 11 de maio de 2023, quase quatro meses desde a prisão por supostamente ser omisso quanto ao 8 de janeiro. 

O então secretário da capital federal curtia as férias com a família na Disney quando uma minoria de vândalos destruiu a Praça dos Três Poderes. Torres precisou interromper o descanso para se apresentar à Polícia Federal (PF), da qual foi imediatamente afastado, assim como do cargo de secretário. Moraes também bloqueou o ordenado que Torres ganhava na PF. 

O fato de estar fora do país foi uma das principais teses da defesa no caso. O ministro, contudo, levou um bom tempo para considerar o argumento. Ao autorizar a saída de Torres, o juiz do STF estabeleceu cautelares que, além da tornozeleira, incluíram a entrega do passaporte e a proibição de usar as redes sociais. Só em março deste ano é que a Justiça do Distrito Federal desbloqueou R$ 90 mil de salários congelados

Hoje, Torres prefere passar a maior parte do tempo em casa, visto que tem hora para sair e voltar, além de não poder deixar a residência aos fins de semana. Por isso, dedica-se diariamente a acompanhar a vida escolar das três filhas e a fazer exercícios físicos. Ele também passa boa parte do tempo com a mulher, Flávia, e com a mãe, que tem 75 anos. O câncer da matriarca septuagenária se agravou durante o martírio do filho e pela exposição exacerbada da família nas páginas policiais do noticiário. Ela passava mal principalmente quando Moraes não dava sinais de que acataria às inúmeras solicitações dos advogados de Torres.'

Além da ginástica para se manter em forma, Torres precisa “malhar o cérebro” com a ajuda de um psiquiatra que o visita regularmente, pois, no período em que ficou preso, desenvolveu ansiedade e deu sinais de depressão. Ele toma remédios controlados. Um dos poucos compromissos externos que tem é ir ao escritório de seu advogado para saber como está o andamento do caso e auxiliar a defesa com argumentos.

“Ele saiu do céu para o inferno sem escala”, contou uma pessoa próxima a Torres. “Para variar, os processos administrativos que podem prejudicá-lo na PF estão sendo conduzidos por um delegado demitido pelo próprio Torres. Dessa forma, tudo fica bastante enviesado.” Se a PF prosseguir com uma das ações, Torres pode ser exonerado. 

Segundo a fonte, a vida do ex-secretário virou de ponta-cabeça, “e é uma rotina digna de um espartano”.O dia a dia de Torres não é muito diferente da nova vida de Silvinei Vasques, que gasta boa parte do tempo estudando para passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O teste permite a atuação como advogado no país. Antes mesmo de sair da Papuda, onde ficou quase um ano, Vasques dedicava-se arduamente aos estudos, no cárcere, a fim de obter a carteira da profissão. 

O ex-diretor da PRF também cuida de seu cachorro no tempo livre. Não fossem parentes e amigos, o animal teria morrido de fome e sede, pois ficou sozinho no apartamento de Vasques em São José, no interior catarinense, a partir do dia em que a PF levou preso o ex-diretor da PRF, por suposta interferência na eleição de 2022. Moraes mandou prendê-lo meses depois de afirmar, na condição de presidente do TSE, que as blitze em rodovias do Nordeste, no segundo turno, não atrapalharam a disputa eleitoral entre Lula e Bolsonaro.

Parte da rotina de Vasques é lutar na Justiça para manter a aposentadoria de quase R$ 20 mil. A quantia o ajuda a pagar o imóvel onde reside, que é financiado. O ganha-pão está ameaçado porque, junto com o procedimento no STF, o ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal responde a uma ação na Controladoria-Geral da União que pode cassar sua aposentadoria, por improbidade. O motivo: durante a eleição de 2022, como chefe da PRF, Vasques participou de eventos, deu entrevistas e publicou posts em suas redes sociais a favor do presidente Jair Bolsonaro. 

Durante uma cerimônia oficial na sede da PRF na véspera das eleições, presenteou Torres, que ainda era ministro da Justiça, com uma camiseta de time de futebol com o número 22 nas costas, o mesmo número usado por Bolsonaro nas urnas eletrônicas. Nesse processo, a defesa de Vasques apontou Bolsonaro como testemunha na tentativa de preservar a aposentadoria de seu cliente. O caso segue sem desfecho. Como gosta de trabalhar, Vasques aguarda a reeleição do prefeito de São José, Orvino Coelho de Ávila (PSD), para assumir a Secretaria de Projetos Especiais. 

“Ele sempre lutou pela segurança e por um país melhor e terá, como primeira missão, o desenvolvimento de uma ação para acolher pessoas em situação de rua”, disse Ávila. Entre outras atribuições, a futura pasta será responsável pela construção da BeiraMar de Barreiros e de um complexo hospitalar. 

Tormento prolongado Nenhuma das situações citadas acima ilustra tão bem o teatro do absurdo criado por Alexandre de Moraes que o caso de Martins, solto em 9 de agosto, depois de seis meses no Complexo Médico de Pinhais (PR), o mesmo onde ficaram corruptos da Lava Jato. Moraes mandou prendê-lo por uma suposta viagem a Orlando, em 31 de dezembro de 2022, com uma comitiva liderada pelo então presidente Bolsonaro. A viagem faria parte de um “golpe de Estado” em curso no país, segundo delação do tenente-coronel Mauro Cid. 

Apesar de ter apresentado evidências sólidas de que estava no Brasil na data apontada por Moraes, Martins permaneceu enjaulado. Com a soltura, precisa cumprir as mesmas medidas que atormentam diariamente Torres e Vasques. Restrito a andar apenas por Ponta Grossa (PR), e somente de dia, um dos poucos compromissos de Martins é ir ao fórum onde tem de se apresentar religiosamente às segundas-feiras, pela manhã, conforme estabeleceu Moraes. 

“De acordo com a lei, essa medida é desnecessária, porque ele está sendo monitorado pela PF”, explicou o advogado Ricardo Scheiffer, que atua na defesa do ex-assessor de Bolsonaro em parceria com o desembargador aposentado Sebastião Coelho. Até mesmo os momentos raros em que se diverte com amigos se tornam constrangedores para Martins. Filipe tem tido alguns lapsos de memória. Em determinadas situações, ele se atrapalha ao passar o cartão na máquina para pagar a conta e, algumas vezes, esquece a senha. O simples ato de usar o celular também virou problema. Martins não lembra funcionalidades do aparelho que antes eram fáceis. 

Cismado com as restrições, Martins achou que estaria mais tranquilo optando por ficar a maior parte do tempo na casa dos sogros, onde passou a residir desde que deixou Pinhais. Equivocou-se completamente. Há madrugadas em que a tornozeleira apita, pois os dormitórios ficam nos fundos do apartamento, que é muito grande. A rua cadastrada pela PF pega parte do condomínio onde Martins está e abrange alguns cômodos do imóvel. Sendo assim, em alguns momentos, ele precisa se levantar à noite, ir até o escritório que fica perto da sala onde o sinal é melhor. 

Assim, os policiais federais podem saber que ele não deixou o local. Sem conseguir trabalhar com seu ofício, que envolve viagens e conversas com várias pessoas, Martins se dedica a estudar e a escrever. Ele vive com algum dinheiro oriundo de aplicações financeiras feitas antes de ir para a cadeia.

Torres, Vasques e Martins são vítimas de um novo elemento criado por Moraes no Direito, além do flagrante perpétuo, da inversão do ônus da prova e de outras aberrações estabelecidas no ordenamento jurídico: a meia liberdade. Mesmo sem ter cometido crime algum, o trio é atormentado diariamente por cautelares absurdas determinadas pelo ministro do STF. Sem prazo para o inferno pessoal de cada um terminar, eles aguardam impacientes a incerta chegada da justiça. 


Cristyan Costa, Revista Oesta