quinta-feira, 28 de março de 2024

Deltan Dallagnol: 'O que está em jogo na decisão da Câmara no caso Marielle?'

 

Câmara dos Deputados| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil


Depois da operação da Polícia Federal (PF) que prendeu os apontados mandantes da morte da vereadora Marielle Franco, dentre eles o deputado federal Chiquinho Brazão, o ministro Alexandre de Moraes, que determinou a medida, encaminhou sua decisão para a Câmara dos Deputados, que pode manter a prisão ou revogá-la, por força do art. 53, §2º, da Constituição Federal. Tal artigo prevê que os membros do Congresso Nacional não podem ser presos, a não ser em flagrante de crime inafiançável e que a Câmara tem a última palavra sobre manter a prisão. A decisão se dá pela maioria de seus membros, isto é, pelo menos 257 dos 513 deputados federais.

Na Câmara, o procedimento já teve início na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde o deputado Darci de Matos (PSD-SC) foi designado relator e já leu seu parecer pela manutenção da prisão de Brazão. O desfecho, entretanto, foi adiado por 2 semanas após alguns deputados pedirem vista do caso, argumentando que não tiveram acesso aos documentos que embasam a prisão de Brazão. Este permanecerá preso até decisão final da Câmara. O pedido de vista gerou debates inflamados no mundo político e nas redes sociais, com a esquerda acusando a direita de querer soltar Brazão, quando nada poderia ser mais distante do que isso - o buraco é bem mais embaixo.

Embora haja questões complexas e diferentes perspectivas em jogo, comecemos pelas concordâncias. Esquerda e direita concordam que deve haver punição e responsabilização exemplares para os supostos mandantes da morte de Marielle. A única diferença aqui é que a direita defende punição e responsabilização para todos os criminosos, como bandidos de rua, de colarinho branco e grandes corruptos, enquanto a esquerda notoriamente passa pano para corruptos condenados na Lava Jato, ou para quem acredita ser “oprimido” pela sociedade. 

A prisão preventiva de Brazão, caso confirmadas as provas até então apresentadas, também é uma questão de justiça e de segurança pública na ótica de todos, para evitar que ele cometa novos crimes ou obstrua as investigações. Além disso, a direita quer responsabilizar os reais mandantes da morte de Marielle não só para que se faça justiça, mas porque a prisão sepulta uma das narrativas mais mentirosas da esquerda, a de que o ex-presidente Jair Bolsonaro ou seus filhos seriam os reais mandantes da morte de Marielle, acusação feita sem nenhuma prova que a embase. 

O problema que a direita enxerga, neste momento, é de que há uma possível repetição do padrão de abusos notoriamente adotado pelo ministro Alexandre de Moraes, que parece ter mandado prender Brazão de forma genérica e sem observar diversos requisitos constitucionais e legais. Atenção: não se trata aqui de defender Brazão ou os crimes de que ele é acusado, mas sim de analisar se a decisão do ministro Alexandre de Moraes está de acordo com a Constituição e a lei. Afinal, caso a decisão esteja repleta de ilegalidades, isso pode ensejar uma nulidade do caso no futuro, hipótese em que toda a possibilidade de fazer justiça cairá por terra e os supostos assassinos de Marielle poderão ficar impunes.

O primeiro problema é que a decisão de Moraes não demonstra, de forma cabal, o estado de flagrância que a Constituição exige para prender um deputado, confundindo prisão em flagrante com prisão preventiva. Um segundo problema é a falta de indicação de um crime inafiançável pelo qual estaria sendo preso em situação de flagrância. Em terceiro lugar, falta indicação da competência do STF para atuar no caso, de modo que, se avançar, poderá cair por terra no futuro já que esse vício gera o que em Direito se chama de nulidade absoluta. Trata-se de um vício ou irregularidade insanável, inconsertável. 


O problema que a direita enxerga, neste momento, é de que há uma possível repetição do padrão de abusos notoriamente adotado pelo ministro Alexandre de Moraes


Os dois primeiros pontos demandam esclarecimentos, mas o terceiro ponto é bastante claro: Moraes não demonstrou por que o STF teria competência para decidir sobre o caso, já que na época do crime, em 2018, Chiquinho Brazão não era deputado federal, mas vereador. Essa distinção é importante porque a jurisprudência mais recente do STF sobre o foro privilegiado é no sentido de que o tribunal só tem competência para processar e julgar casos criminais se o crime tiver sido praticado no exercício da função pública e em razão dela pela pessoa que tem foro privilegiado perante a corte. 

Como Chiquinho Brazão teria cometido o crime quando era vereador, cargo eletivo que não detém foro privilegiado, e as investigações indicam que a motivação do crime seria questões fundiárias do Rio de Janeiro sem qualquer relação com seu mandato de deputado federal (que ainda não existia), a única coisa que justificaria a manutenção do caso no STF seria se as investigações tivessem comprovado que ele cometeu algum outro crime conexo ao homicídio, como obstrução de justiça, durante o mandato de deputado federal. Esse crime precisaria ainda ter relação com o exercício do mandato. A decisão de Moraes não fala sobre isso: a palavra “obstrução” é mencionada apenas 5 vezes no texto, mas sem referência a atos praticados durante o mandato ou relacionados à função de deputado federal.

A única pessoa que teria cometido o crime com foro privilegiado neste caso, aparentemente, é o irmão de Chiquinho, Domingos Brazão, que já era conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro na época do delito e por isso possui foro privilegiado junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Há ainda uma questão complicadora adicional: crimes dolosos contra a vida são, em regra, julgados no tribunal do júri, e a única exceção é nos casos em que o réu possui foro privilegiado. A prática do STF, inclusive na Lava Jato, era julgar naquela corte apenas as pessoas com foro privilegiado, enviando o julgamento dos demais réus para a 1ª instância. Como não há competência aparentemente do STF para o caso, essa é uma decisão que caberia ao STJ.

Repito sem cansar: criminosos devem ser condenados, punidos e presos quando sua culpa for comprovada acima de uma dúvida razoável, e a solução do caso Marielle é importantíssima para a sociedade, para a aplicação da lei e para a vitória da justiça sobre a impunidade, assim como é imprescindível que a Justiça puna toda sorte de bandidos, daqueles de rua aos colarinhos brancos. Ao mesmo tempo, ao confirmar ou derrubar a prisão de Chiquinho Brazão, os deputados terão de confrontar as inúmeras questões jurídicas que o ministro Alexandre de Moraes não enfrentou de maneira satisfatória em sua decisão. 

Endossar as ilegalidades no caso Marielle, para punir prováveis criminosos, significa endossar arbítrios judiciais e o risco de que tudo venha a ser anulado? Contrariar a decisão de Moraes por conta de abusos significa passar pano para os bandidos? Como fazer Moraes e o STF seguirem as regras constitucionais e legais para que criminosos sejam punidos dentro da lei, se não há para quem recorrer? Se você fosse um deputado federal, como votaria? Pela manutenção da prisão ou contra? Me conte nos comentários deste artigo.



Gazeta do Povo