O ex-presidiário... Foto: André Borges/EFE
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acalenta o plano de emplacar o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega – figura central no caso das "pedaladas fiscais" – no comando da Vale, a maior empresa privada do país.
O aparelhamento da administração pública e das estatais são práticas antigas e conhecidas do presidente e de seu partido. O objetivo de retomar as rédeas da Eletrobras, privatizada no ano passado, era alardeado pelo petista desde bem antes das eleições. E, ainda no segundo mandato, Lula já havia feito a mesma pressão para trocar o presidente da Vale.
Mas a persistência da ideia de pôr um aliado à frente de uma empresa privatizada há 26 anos expõe o tamanho da obsessão de Lula em dirigir a economia do país, para bem além de sua crença em um "Estado indutor" do crescimento econômico.
Embora tenha convocado vários petistas e antigos companheiros de sindicalismo para integrar o governo, Lula não pôde encontrar lugar para Mantega. Motivo: por causa das pedaladas, o ex-ministro foi inabilitado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e não pode assumir qualquer cargo em comissão ou função de confiança no âmbito federal por oito anos.
Embora o Ministério Público Federal (MPF) tenha arquivado inquérito civil contra Mantega no caso das pedaladas, a vedação imposta pelo TCU continua valendo, e vai até 2030. Foi ela, aliás, que impediu o ex-ministro de exercer função remunerada na equipe transição de governo, no fim de 2022.
O mandato do atual presidente da mineradora, Eduardo Bartolomeo, vai até maio de 2024. Mas Lula, segundo assessores do Planalto, não queria esperar para fazer valer sua indicação pessoal.
Segundo relatos de bastidores, Bartolomeo é malvisto nos círculos palacianos e petistas por seu comportamento "low profile" – ele seria dedicado demais à empresa em si, com suas metas e resultados, e portanto desconectado dos princípios desenvolvimentistas da esquerda.
Quando o plano – nunca desmentido – de interferir no comando da Vale veio a público, as ações da empresa caíram e arrastaram consigo o Ibovespa, principal termômetro da bolsa brasileira, que fechou o dia em queda diária de 2,1%, com o resgate de R$ 450 milhões por investidores estrangeiros.
Acionistas privados rejeitaram a mudança e classificaram a interrupção do mandato do atual CEO como um "tiro no pé" para a confiança do mercado na empresa e no país. Lula recuou. Segundo assessores, achou que deveria "colocar panos quentes". Mas não desistiu.
Na última segunda-feira (13), o nome de Mantega voltou à tona e a insistência de Lula foi apontada pelo colunista Lauro Jardim, de "O Globo". A reação do mercado não foi diferente. Aliado a problemas do setor imobiliário na China, destino das maiores exportações da Vale, as ações da mineradora caíram 3,1% e o Ibovespa baixou 1,1%.
A reação não se deu apenas pela rejeição ao nome do ex-ministro da Fazenda, profundamente vinculado ao desastre da Nova Matriz Econômica – o conjunto de medidas intervencionistas do governo Dilma Rousseff (PT) que levaram o país a uma grave recessão a partir de 2015.
Mais que a escolha de Mantega, o aspecto mais preocupante, segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, é a tentativa de interferência governamental numa empresa privada.
"Trata-se de uma ingerência indevida numa organização que tem regras de governança corporativa a serem respeitadas e não pode estar sujeita a decisões políticas", alerta o advogado e ex-gestor público Paulo Uebel.
Mais indevido ainda, para o professor Sérgio Lazzarini, do Insper, é o descaso com o modelo de "corporation" da Vale, implantado a partir da privatização da empresa e que prevê a diluição do poder de decisão entre os acionistas.
"O desejo de influência que o governo quer ter numa empresa privada é um retrocesso institucional", diz Lazzarini, autor dos livros "Capitalismo de Laços" e "Reinventando o Capitalismo de Estado".
Vale foi estrela das das privatizações do governo FHC
Em valor de mercado, a Vale é a maior empresa privada do país e quarta maior mineradora do planeta. Em 2022, a companhia alcançou lucro líquido de R$ 95,9 bilhões, o terceiro maior da história entre empresas listadas na B3.
Sua criação remonta ao governo Vargas, em 1942, auge da Segunda Guerra Mundial. A então Companhia Vale do Rio Doce nascia para fornecer minério de ferro à indústria siderúrgica nacional, que tinha sua demanda catapultada pelas exportações a países Aliados, que precisavam de fontes de suprimento para a indústria bélica.
A privatização ocorreu em 1997, no processo implementado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Na época, a Vale já era a maior exportadora de minério de ferro do mundo e foi considerada a grande estrela do processo de privatizações da gestão FHC.
Em leilão realizado em maio daquele ano, o governo vendeu a maior parte de suas participações na empresa por US$ 3,3 bilhões para um consórcio liderado pela CSN, Companhia Siderúrgica Nacional, e pela Previ, o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil.
Depois da desestatização, investimentos, produção e lucros da companhia dispararam e a empresa se consolidou entre as líderes globais da mineração. Também evoluiu como corporação em regras de governança e gestão, com nova configuração do conselho de administração.
Hoje o governo não tem influência direta na empresa. O que existe é a participação da Previ, que detém aproximadamente 8,7% do capital da Vale e indica dois representantes no conselho de administração, formado por 13 integrantes.
Os outros assentos são indicados pelos demais acionistas. Os principais são Mitsui&CO, com cerca de 6,3%, e o fundo estrangeiro Blackrock, com 6%. Cerca de 4,9% das ações estão em tesouraria e as 74,1% restantes são pulverizadas entre acionistas que detêm menos de 5% do total de ações cada um.
Esquerda nunca "engoliu" a privatização da Vale
Mesmo com o crescimento e internacionalização da Vale após a privatização, a esquerda nunca se conformou com a venda da "joia da coroa".
Além de inúmeras contestações ao leilão de privatização na Justiça, partidos políticos, sindicatos, centrais e movimentos sociais – entre eles a CUT e o MST – chegaram a lançar, em 2007, o referendo "A Vale é nossa", uma consulta popular sobre o destino da companhia, sugerindo a reestatização da empresa.
Os argumentos se baseavam em supostas ilegalidades ocorridas no processo e no preço pago pelo consórcio, considerado muito baixo pelos autores, mas o possível para o mercado e o governo.
As ações não prosperaram, tampouco a consulta teve resultados práticos. Mas permaneceu o princípio estatizante e a crítica "ao neoliberalismo" que se seguiu.
Lula já tentou interferir na Vale
Esta não é a primeira vez que Lula tenta interferir na gestão da Vale. Em 2009, iniciou um confronto público para desestabilização do então presidente, Roger Agnelli, que estava à frente da companhia desde 2001.
Lula criticava a estratégia de condução de Agnelli durante a crise global de 2008 e a demissão de trabalhadores. Também insistia em investimentos domésticos, alguns fora do radar da empresa.
Demorou, mas, com a ajuda das críticas do empresário Eike Batista – mais tarde agraciado pela política dos "campeões nacionais" – que incluía investimentos e subsídios públicos a empresas e setores escolhidos –, Lula conquistou o que queria. Agnelli acabou sendo substituído por Murillo Ferreira em 2011, já no governo de Dilma.
O defeito de Agnelli era possivelmente o mesmo do atual presidente Eduardo Bartolomeo, considerado independente e distante dos interesses do Planalto, do PT e de governadores de estados onde a Vale tem operações.
Bartolomeo assumiu em 2019, meses após o desastre de Brumadinho, numa época crítica para os acionistas, e conseguiu administrar a crise de imagem. Sua gestão não é unanimidade, mas mantém o apoio do conselho de administração.
Atuação do Estado na economia é uma constante na história brasileira
Para Sérgio Lazzarini, as tentativas de Lula demonstram a intenção do governo de aumentar o protagonismo do Estado na economia. A participação estatal, segundo o professor, foi maior ou menor ao longo da história, mas é uma característica constante do país.
Seja por meio de empresas públicas, de instrumentos de financiamento da economia ou de participação acionária, o Estado sempre se fez presente. Paralelamente, diz, cristalizou-se a "tendência dos atores políticos de ver o arcabouço estatal como um cabide de emprego para colocar os aliados, em detrimento dos mecanismos de governança".
Na gestão Temer (MDB), segundo Lazzarini, o governo havia iniciado uma trajetória de avanço, especialmente com a aprovação da Lei das Estatais, que estabeleceu regras de monitoramento de gestão.
Além disso, a partir de então houve um importante movimento de venda de participações acionárias do BNDES em diversas companhias públicas, consolidado no governo Bolsonaro (PL), visando a racionalização dos investimentos.
"Hoje este cenário parece estar se deteriorando", diz Lazzarini, lembrando que um dos principais dispositivos da Lei das Estatais foi revogado por uma canetada do STF.
Em marco, o Ministro Ricardo Lewandowski suspendeu a norma que proibia indicações de pessoas ligadas diretamente a governos e partidos políticos para a diretoria de empresas públicas. A suspensão permitiu a efetivação do economista Aloisio Mercante à frente do BNDES.
Governo pode ter mais dificuldade para viabilizar Mantega
Para alguns analistas, o caminho para a interferência na Vale, desta vez, pode ser mais difícil para Lula. Os mecanismos de gestão da empresa estão mais apurados.
Na política de sucessão, por exemplo, uma regra determina que o conselho de administração contrate uma empresa internacional de seleção de executivos, que indicará três nomes para o cargo. O novo presidente tem de sair, necessariamente, dessa lista.
Além disso, a empresa tem oito conselheiros independentes, três deles estrangeiros, considerados menos suscetíveis a pressões. Esses conselheiros não têm outro vínculo de remuneração com a companhia, nem participação acionária.
Lazzarini lembra, no entanto, que o governo tem caminhos para pressionar os acionistas privados. A Vale precisa contar com a boa vontade do governo em diversos aspectos, como licenciamentos ambientais, execução contratual de concessões ferroviárias, modernizações do código de mineração, entre outros. "O governo é sempre um ator relevante", observa.
Para ele, a única maneira de minimizar os riscos de uso das empresas para fins políticos e evitar corrução é estabelecer critérios para a participação do Estado. "É preciso haver um acordo, regras de governança e transparência de ações. Caso contrário, voltaremos a assistir aos erros do passado", prevê.
Rose Amantéa, Gazeta do Povo