sexta-feira, 13 de agosto de 2021

"A propriedade privada é tão antiga quanto o homo sapiens", escreve Leandro Narloch

 


A propensão a reconhecer que algumas pessoas têm uma relação particular com certas coisas ajudou os humanos a dominar a Terra



“O primeiro estelionatário do mundo”, escreveu a juíza Carolina Malta no Twitter, “foi aquele que apontou para um pedaço de terra e disse: ‘Esse terreno é meu. Quer comprar?’. Assim nasceu a propriedade privada.”

Cada linha acima é um solavanco: a ideia de que a posse e o comércio são estelionato; o fato de a autora ser uma juíza – sim, uma juíza federal de Pernambuco parece não entender a importância da propriedade privada. Mas quero me concentrar no evento histórico, no “pecado original” que o comentário descreve: quem foi a primeira pessoa a se considerar dona de alguma coisa?

O tuíte da juíza é uma versão requentada do que disse Rousseau: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer ‘isto é meu’, e encontrou pessoas bastantes simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. Para o filósofo francês, essa é a origem de “crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores”.

Mas é provável que essa primeira pessoa nunca tenha existido. A noção de propriedade privada não surgiu num evento histórico, mas biológico — é tão antiga quanto a própria humanidade. A propensão a reconhecer que algumas pessoas têm uma relação particular com certas coisas já existia quando o Homo sapiens se distinguiu de outras espécies. É uma vantagem evolutiva que ajudou os humanos a dominar a Terra.

O economista Bart Wilson, que no ano passado lançou um grande livro sobre isso (The Property Species), acredita que a propriedade é um traço universal humano. Mesmo os índios mais coletivistas têm noções de propriedade privada — quem não concorda que tente arrancar o cocar do cacique dessa tribo para ver como ele vai reagir.

A propriedade é algo que surge naturalmente em sociedades

Professor de economia experimental, Wilson passou décadas em laboratórios tentando descobrir o que fazia seus voluntários se saírem melhor em jogos de bens comuns. Como garantir confiança entre as pessoas e engajá-las em relações vantajosas para todos? Descobriu que direitos de propriedade bem assegurados são requisito essencial para a cooperação.

“A propensão humana a organizar a relação com as coisas é essencial para a melhoria das condições econômicas e sociais. Nenhum outro animal jamais estendeu tanto sua expectativa de vida, diminuiu a taxa de mortalidade infantil ou conquistou para si uma vida mais saudável e confortável. Mas o Homo sapiens burgensis conseguiu, e a propriedade tornou possíveis essas conquistas.”

Não à toa, a propriedade é algo que surge naturalmente em sociedades; já sua extinção precisa ser imposta por algum ditador. Também não é por acaso que tentativas de acabar com a propriedade resultaram em tragédias. Mao acabou com fazendas privadas na China e criou fazendas coletivas; Mengistu fez o mesmo na Etiópia; e Fidel em Cuba. Resultado: as duas maiores crises de fome do século 20 e uma ilha faminta há 60 anos.

A causa de crimes e guerras não é exatamente a ideia de propriedade, mas a falta de direitos de propriedade bem estabelecidos. Por isso mesmo países precisam contar com uma Justiça ágil e eficiente que assegure esses direitos. Esse é um conceito básico do Direito, mas pelo jeito nem todos os juízes do Brasil conseguem entendê-lo.

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Revista Oeste