O mundo mudou, perceberam? Quem passou os últimos dez anos em outro planeta pode dizer que não viu. Mas mesmo quem esteve aqui nesse nosso lugarzinho complicado se espanta com a rapidez com que a prática do jornalismo está sendo engolida rapidamente pelo show business.
O fenômeno é especialmente visível em canais de rádio e televisão, meios feitos por excelência para o exagero, o teatro com personagens bem delineados, a encenação.
E é pura encenação o que acontece, e provavelmente voltará a acontecer quando ele recuperar sua credencial, por bem ou por mal, entre Jim Acosta e Donald Trump. Tem até alguma coisa de commedia dell’arte, os dois palhaços trocando farpas, um fazendo o falso bonzinho, o outro o malvado assumido.
Mas não vamos complicar. As entrevistas de Trump aos jornalistas credenciados junto à Casa Branca têm tudo a ver com encenação e muito pouco com jornalismo.
Obviamente, o fenômeno não se circunscreve a estas coletivas feitas com um grupo fechado, numa sala pequena, onde todo mundo se conhece e mais ou menos já sabe o que vai acontecer.
A personalidade combativa de Trump, sua relação ambivalente com a verdade e seu método de espicaçar repórteres cheios de si mesmos criaram este ambiente nocivo, no qual ambos os lados saem ganhando.
Para Trump, cada entrevista em que repórteres lançam questões que são mais declarações políticas do que perguntas objetivas, é mais uma oportunidade de provar a seus partidários como a imprensa o “persegue” e “desrespeita” a presidência – é claro que o conceito de desrespeitar está inteiramente ligado às simpatias ou antipatias políticas de quem ouve.
Para os repórteres, dos quais Jim Acosta é o exemplo máximo, há tudo a ganhar com a transformação de um correspondente em estrela antitrumpista que grita perguntas em tom de impropério, sempre na intenção de emplacar uma “pegadinha”.
Às vezes, funciona.
“Por que você não me deixar governar o país e você governa a CNN?”, trovejou Trump na entrevista que acabou servindo de pretexto para cassar a credencial na Casa Branca de Acosta, sob o pretexto de que ele havia sido brusco com a encarregada de passar o microfone de repórter em repórter.
Para Acosta, foi a glória: agora ele pode oficialmente ser considerado um mártir da liberdade da imprensa pelos antitrumpistas.
Além de já ser um sucesso com as mulheres, desde que se separou, no ano passado. O bonitão moreno de cabeleira negra que começa a ficar grisalha – pai cubano, mãe americana –, certamente terá novas oportunidades na CNN.
Por enquanto, mantém o cargo de correspondente-chefe na Casa Branca, com salário calculado em 700 mil dólares por ano.
A própria TV a cabo virou um show antitrumpista 24 horas por dia a tal ponto que até informações importantes – caiu um avião em tal lugar , fechou um aeroporto em outro – foram irremediavelmente contaminadas pela politização.
É uma estratégia de negócios, ruim para quem ainda imaginava encontrar informações importantes na onipresente CNN, e boa para se posicionar como a “televisão da resistência”, posto que precisa disputar com a MSNBC, onde a maluquice antitrumpista atinge níveis alucinantes.
Um exemplo: a comentarista Rachel Maddow (salário: 7 milhões de dólares) passou a insuflar manifestações de protesto para “proteger” a investigação feita pelo promotor-especial Robert Mueller sobre uma suposta conexão da campanha de Trump com agentes russos.
A figura do jornalista militante faz muito pela segunda parte da definição e pouco, ou nada, pela primeira. Isso não significa que é necessário ser imparcial, característica exigida da justiça e não do jornalismo, ainda mais em se tratando de comentaristas.
Mas o poder de ter uma imagem forte e um veículo importante precisa ser acompanhado por um mínimo de responsabilidade.
Do lado oposto – ou seja a Fox News, único grande veículo de comunicação no campo trumpista – aconteceu uma loucura similar.
Sean Hannity (programa de rádio, Fox e outras fontes de renda renderam suculentos 36 milhões de dólares no ano passado) e Jeanine Pirro, ex-juíza e promotora que também desce o relho com gosto no antitrumpismo, subiram ao palanque de um comício de Trump durante a campanha das últimas eleições legislativas.
Ambos não só conversam habitualmente com Trump como dão conselhos em questões importantes do governo.
Até pelos padrões americanos de partidarismo militante da mídia foi demais e a Fox divulgou uma nota condenando a atitude de seus contratados.
Os americanos têm uma expressão para designar o papel dos jornalistas investigativos que escarafuncham as entranhas dos mecanismos feitos para esconder como as linguiças e os governos são feitos: “Dizer a verdade aos poderosos”.
Apurar, investigar, ir até o fundo de uma pista – e abandoná-la, sofridamente, quando não render –, enfrentar pressões com cabeça fria, distinguir entre o que pode ser publicado porque tem fundamentos sólidos e o que não pode, mesmo que pareça altamente convincente, são características do jornalista investigativo que busca a versão mais parecida com a verdade que consegue enfrentar.
Entrevistar envolvidos, com fatos na mão, é uma parte de desse processo. Geralmente, uma parte que acontece em ambiente discreto ou neutro. Nenhum “furo” jornalístico jamais foi conseguido numa entrevista coletiva.
Fazer a estrela com perguntas infantilmente provocativas é o oposto disso tudo. Mesmo que se enquadre no papel performático que tanto tem feito pela carreira de Abilio James Acosta, o nome completo do nêmesis de Trump. Começar perguntas com longas declarações de princípios já diz tudo sobre o objetivo dos que agem assim.
Trump também não se comportou nada bem, não ao se rebelar contra os jornalistas que querem constrangê-lo, mas em qualificá-los como “inimigos do povo” (muito provavelmente sem nenhuma relação com a peça de Ibsen).
O rótulo praticamente permite um liberou geral. Mas os atos mais agressivos, até agora, nessa esfera, foram do lado oposto. Um grupo de antifas, a designação alternativa dos Black Blocs, invadiu o jardim a casa de Tucker Carlson e esmurrou a porta de entrada, deixando grafites com spray. Só a mulher dele estava em casa e se trancou na despensa.
Carlson é da Fox, fala com uma fúria adorada pelos trumpistas e toma sempre o maior cuidado e não dizer nada que possa ser manipulado como racista –exatamente a maior acusação contra ele.
A última envolve um encontro num restaurante onde a filha de Carlson foi chamada de **** por um homem que estava no bar. Carlson e um filho foram tomar satisfação e o menino jogou um copo de vinho na cara do indivíduo.
Próximo passo? O homem apareceu com um advogado conhecido, Michael Avenatti, o mesmo da atriz pornô que denuncia Trump por um acordo comercial do tipo cala-boca. “Estamos investigando um incidente contra um imigrante latino gay”, avisou Avenatti, apertando todas as teclas vermelhas.
É assim que o ambiente pode ir ficando perigoso e redundar em algum tipo de tragédia que seria imediatamente pendurada na conta do lado oposto.
Jovens jornalistas que sonham com a mãe de todas as ciladas, a pergunta que destruirá presidentes falastrões, deveriam se dedicar mais a gastar a sola do sapato, cultivar boas fontes e conseguir. E não fantasiar que existem amigos na relação jornalista/detentor de qualquer tipo de poder.
“Vamos tratar com eles da mesma forma que tratamos com um oponente.”
Quem disse isso sobre a imprensa? Anita Dunn, a diretora de Comunicações da Casa Branca que só deixou o governo Obama quando fez um discurso mencionando um de seus ídolos, Mao Tsé Tung.
James Rosen, que trabalhava na Fox, foi espionado, inclusive com quebra de sigilo telefônico e bancário, para ver quem era sua fonte na CIA. Repórteres e editores da AP também receberam tratamento similar. O governo Obama foi o que mais se opôs a pedidos na Lei de Liberdade de Informação.
Como a maioria dos jornalistas amava Obama, isso nunca virou um caso.
Idealmente, amor ou antipatia são sentimentos que não devem ficar no caminho entre um jornalista e os fatos.
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