domingo, 18 de novembro de 2018

Há 30 anos, jovens de Leipzig orquestraram movimento que levou à queda do Muro de Berlim

“Apenas o poder compartilhado é bom”, diz faixa em manifestação de 1989 em Leipzig Foto: Frederic Bichon 23-10-1989 / AFP
“Apenas o poder compartilhado é bom”, diz faixa em manifestação de 1989 em Leipzig Foto: Frederic Bichon 23-10-1989 / AFP

BERLIM — Helmut Kohl, Mikhail Gorbatchev e Lech Walesa são considerados os políticos que mais contribuíram para a queda do Muro de Berlim. Mas os verdadeiros arquitetos da queda são os jovens que começaram a se reunir clandestinamente em um prédio danificado perto da estação ferroviária de Leipzig, já no início de 1988, e a organizar manifestações que se transformaram num movimento nacional que levaria à queda do regime comunista. Segundo o jornalista alemão Peter Wensierski, autor do livro “Die leichtkeit der revolution” (“A leveza da revolução”) — que em breve será transformado em filme —, “Leipzig foi o berço da revolução pacífica” de 1989.

— Tudo começou lá. Foi um processo como em uma orquestra sinfônica. Todos tiveram uma contribuição importante para a queda do Muro, mas o início foi orquestrado pelos jovens de Leipzig — diz Wensierski.

A base do movimento que mudou a História era uma residência estudantil na Rua Marianne 46, um prédio típico do Leste alemão na era comunista, sem nenhum conforto e com o banheiro coletivo do lado de fora.
Seus líderes não eram políticos ou dissidentes famosos, mas jovens entre 18 e 25 anos, artistas plásticos, enfermeiros, músicos ou profissionais que haviam sido punidos pelo regime com a proibição de trabalhar. Pessoas como Gesine Oltmanns, Katrin Hattenhauer, Jens Reich, Jochen Lässig, Katrin Mahler-Walther ou Gerd Harry Lybke, todos vítimas da opressão estatal.
— O povo se sentia traído porque o socialismo ensinado na escola na verdade não existia. O Estado, opressor, não havia preservado nada dos ideais socialistas que havíamos aprendido — lembra Gerd Harry Lybke, hoje um dos mais importantes galeristas de arte da Europa.
Para Lybke, esse abismo entre o ideal socialista e o socialismo real teria influenciado mais os protestos do que a falta de liberdade para viajar ou a crise de abastecimento.

Música e prisões

Leipzig, cidade onde o compositor Johann Sebastian Bach viveu por 27 anos, tinha uma tradição liberal, em parte devido às duas feiras internacionais que sediava anualmente. Uma delas era a Feira do Livro, que atraía intelectuais e jornalistas ocidentais, que ajudavam a propagar a ideia dos protestos.
Durante a feira, jovens dissidentes aproveitavam a presença de jornalistas estrangeiros para mostrar como o povo estava insatisfeito. Com ajuda de fora, foi comprado o primeiro telefone do grupo, que passou a ficar em linha direta com a TV da Alemanha Ocidental.
— Todo mundo percebia que havia algo de muito errado no nosso país — lembra a pintora e ativista de direitos civis Katrin Hattenhauer.
Em junho de 1989, Katrin organizou um festival de música, em uma manifestação contra o regime que terminou com 89 pessoas presas. Mas os jovens ficaram satisfeitos ao ver que o que mais receavam, uma reação semelhante à do governo chinês contra os manifestantes da Praça da Paz Celestial dias antes, não acontecera.
O regime comunista começou a desmoronar em 9 de outubro daquele ano, quando em todo o país milhões de pessoas foram às ruas. Erich Honecker ainda estava no poder, mas já cambaleava, sendo derrubado pelo próprio partido cerca de uma semana depois.
— O regime estava moribundo, mas nem os dissidentes, pelo menos a maioria, lutavam pela reunificação. Eles queriam liberdade, democracia e um melhor sistema de abastecimento. Também não contavam com a queda do Muro — revela Lybke.
Lybke (à direita) e Rauch: vitória da arte no Leste alemão Foto: Arquivo pessoal
Lybke (à direita) e Rauch: vitória da arte no Leste alemão Foto: Arquivo pessoal
Ele chega a afirmar que “a reunificação foi uma ocupação. Nunca houve uma consulta à população do Leste sobre o que desejava”:
— O Muro foi derrubado no dia 9 de novembro de 1989 em consequência de um equívoco. Em uma entrevista, o porta-voz do governo comunista, Günther Schabowski, anunciou a decisão do conselho de Estado de permitir aos alemães orientais viajarem ao Ocidente. A nova lei deveria entrar em vigor no dia seguinte.
Ao ser indagado por um jornalista sobre quando isso ia acontecer, Schabowski leu errado o documento e afirmou: “A partir de agora.”
Ao ouvir a notícia, o povo foi às ruas e os jovens dissidentes da República Democrática Alemã (RDA) começaram a derrubar o Muro em uma catarse coletiva.
Depois da reunificação, muitos alemães orientais perderam o emprego, mas os dissidentes de Leipzig foram bem-sucedidos. Gesine Oltmanns deixou a política, casou-se com outro dissidente e teve oito filhos. Katrin Hattenhauer faz sucesso com a arte. Jens Reich foi deputado pelo Partido Verde e fez uma carreira brilhante como químico molecular do Instituto de Pesquisa de Heidelberg.
O Leste venceu na arte, como Lybke, que em 1982 abriu em Leipzig a galeria “Eigen + Art”. Um caminho para o qual foi empurrado pelo regime. Proibido de estudar na universidade e de trabalhar, por participar dos protestos, ele passou a se sustentar como modelo de nu artístico para as aulas da Escola de Arte de Leipzig. Ficou rico depois da reunificação, ao revelar ao mercado internacional jovens artistas, os rebeldes dos “anos selvagens”, como Neo Rauch, hoje um dos pintores vivos com as obras mais caras do mundo.

A Nova Escola

A Nova Escola de Leipzig começou a ficar conhecida em 1993, quando Lybke levou pinturas do amigo Rauch para expor em Nova York. O jornal “The New York Times” se derramou em elogios e, de repente, o mundo começou a falar sobre o movimento.
A antiga tecelagem onde os artistas têm seus ateliês é uma atração turística como a Igreja de São Nicolau e o coral da Igreja de São Thomas, onde trabalhou Bach.
Com essa tradição cultural, Leipzig oferece poucas chances à extrema direita do Legida, a filial do Pegida na cidade. Mas Lybke admite ver com preocupação como a insatisfação de quem se considera prejudicado pela reunificação é instrumentalizada pelo ultraconservadorismo.
Graça Magalhães-Ruether, especial para o Globo