sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Em busca de Messias

A indiscutível eleição de Jair Messias Bolsonaro o alçou a líder de massas. Mas para não incorrer no mesmo erro de outros “salvadores da pátria” que acabaram experimentando o infortúnio, o presidente eleito terá de entender um princípio elementar da democracia: ele não pode tudo


Crédito: REUTERS/Pilar Olivares
Seu nome — Jair Messias Bolsonaro — soou quase como uma premonição. Sua atuação nesse momento conturbado do País o converteu em mito. Suas promessas e críticas ácidas aos descaminhos na política, economia e costumes lhe elevaram à condição de salvador da pátria. Não é de hoje, os brasileiros correm em busca de um mandatário que os conduza ao Olimpo político, econômico e social. Já nos anos de 1930, Getúlio Vargas revestia-se de “pai dos pobres”. Nos idos de 1960, Jânio Quadros usaria sua vassoura para “varrer do país a corrupção”. Na década de 80, o povo declarou-se “fiscal do Sarney” na defesa do Plano Cruzado. Fernando Collor encarnava o protetor dos “descamisados”, o “caçador de marajás”. Nos anos 90 e 2000, as urnas consagraram o sociólogo FHC para “salvar” a economia e o ex-metalúrgico Lula, eleito sob a bandeira de exterminar a desigualdade social e acabar com o fosso profundo existente entre ricos e pobres no Brasil. Por fim, o País escolheu como mandatária Dilma Rousseff, embalada na campanha como a “mãe do PAC”. A história determinou de forma inexorável o destino trágico da maioria dos salvadores anteriores. Vargas suicidou-se. Jânio Quadros renunciou. Sarney deixou o governo sob a pecha de presidente mais impopular do País. Collor e Dilma experimentaram o mesmo infortúnio, o impeachment, enquanto Lula, “o cara”, foi parar atrás das grades, condenado por corrupção. Segue-se assim a sina — mais que brasileira, latino-americana — da busca de um salvador da Pátria para resolver nossos complexos problemas. Sina que, até agora, só fez gerar grandes expectativas que se frustraram com o tempo.
BOLSOMITO O presidente eleito é carregado por apoiadores depois da vitória eleitoral. Cenas como essa se repetiram à exaustão ao longo da campanha, que o transformou no mais novo líder popular do País (Crédito:Jonne Roriz)
Agora, como num filme repetido, o País sai em busca não de um governante, mas de um Messias. Mais do que eleitores, Bolsonaro atraiu seguidores que multiplicaram sua exposição pelos recantos do Brasil. Para dar a exata medida desse crescimento exponencial, o presidente eleito possuía, em 2014, 204 seguidores no Facebook. O número pulou para 8 milhões na campanha e alcançou inacreditáveis 18 milhões no final do pleito. Para o bem da nação, espera-se que não se frustrem novamente.
Trabalho pela frente
A gestão paternalista de um mandatário que pode tudo e zela como um pai caridoso pelos seus, como se nota, mora na essência do presidencialismo nativo. Nestes primeiros dias depois de sua eleição no domingo 28, Bolsonaro já ensaia novamente personificar esse figurino. Com todos os riscos inerentes a isso. Por exemplo, na semana seguinte à eleição, o País assistiu apreensivo cabeças se baterem na busca das soluções mágicas que poderão ser menos simples do que se imaginava. Num dos caminhos sugeridos, Bolsonaro quis adiantar a reforma da Previdência. Trata-se de uma agenda inevitável, sobre a qual o País terá que se debruçar em algum momento. Bolsonaro imaginou que podia adiantá-la, partindo da proposta original do governo Michel Temer, com modificações. Assim, pensou em tê-la aprovada ainda este ano, antes de tomar posse no dia 1º de janeiro, o que já deixaria pavimentada a estrada que pretende trilhar em seu governo. A ideia foi esvaziada como um balão furado antes que terminasse a primeira semana após a eleição. Dentro do governo, consolidou-se a sensação de que todos terão muito trabalho pela frente. “Será realmente um período de muita labuta. Há um grupo político sem praticamente qualquer outra experiência administrativa disposto a resolver tudo a partir do zero. Querendo revolucionar a prática política. É louvável, mas há um risco grande disso provocar certa paralisia no início e gerar um processo conturbado”, prevê o professor titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Fico.
No próprio eixo bolsonarista existe o temor de que o próximo governo não consiga tirar do papel pautas relevantes e que ajudaram a eleger o capitão reformado, gerando uma reversão de expectativas. Aliados de Bolsonaro admitiram a ISTOÉ, em caráter reservado, que os primeiros cem dias de governo serão vitais para encaminhar as propostas mais substanciais do novo governo. Em relação à Previdência, por exemplo, é consenso itens como a idade mínima de 65 anos, por exemplo. Contudo, integrantes do novo governo já admitem que serão necessárias alterações também no regime de aposentadoria para os militares, para que o novo presidente não seja acusado de ser “corporativista” na nova reforma. “O problema é que o Bolsonaro sempre defendeu os militares. E agora ele fará o contrário? É uma saia justa”, admitiu, em caráter reservado, um aliado.
Há ainda uma série de outros desafios pela frente capazes de gerar apreensão. Alimenta-se uma expectativa de que o presidente eleito empenhe seu prestígio pessoal e capital político na busca pela pacificação do País. E ele promete reiteradamente que o fará. Mas serenar o ambiente não será tarefa trivial. Para distencioná-lo, Bolsonaro precisará controlar seus radicais, muitos dos quais imbuídos de um espírito revanchista nada apropriado ao momento. Em paralelo, o presidente eleito precisará saber lidar com os radicais de uma oposição que promete marcação cerrada. E não necessariamente republicana. Guilherme Boulos, candidato derrotado do PSOL, articula protestos para as próximas semanas. A ordem é não deixar o governo respirar. O MST também planeja invasões. Integrantes do governo entendem que será preciso serenidade, mas sem perder o pulso firme exigido pelos eleitores sedentos por “ordem”. Resta saber como o presidente irá equilibrar essa balança.
Pacificar o ambiente não será tarefa trivial. Bolsonaro terá de controlar seus radicais e os radicais da oposição, se quiser ter paz para governar
Princípio da impessoalidade
Pululam também temores de que pendores autoritários, não raro demonstrados ao longo da trajetória política de Bolsonaro, prevaleçam durante o exercício da Presidência. São consubstanciados no ataque feito pelo presidente eleito ao jornal Folha de S.Paulo na entrevista ao Jornal Nacional da TV Globo na segunda-feira 29. Ao reagir às reportagens do jornal, Bolsonaro insinuou que poderia retaliar o jornal na distribuição de verbas publicitárias. Como presidente, Bolsonaro pode até reduzir de forma global os valores de sua verba de publicidade. Mas, se distribuí-la de forma discricionária, usando-a como instrumento de pressão sobre quem o critique, estará descumprindo o princípio da impessoalidade na administração, definido pela Constituição. “Depois de mais de trinta anos de democracia, as instituições brasileiras estão fortes. E reagirão caso sejam atacadas”, considera Carlos Fico.
SEPULTADO PELAS URNAS Apoiadores de Bolsonaro comemoram o enterro do PT no domingo 28 (Crédito:Guito Moreto)
O messianismo político na América Latina nasce da cultura monárquica oriunda de Portugal e Espanha, países que adotavam como políticas reais uma “descentralização centralizada”. A medida transformava o rei numa espécie de “salvador da pátria” para evitar que danos maiores acontecessem. Um exemplo foi a campanha para que D.Pedro II tivesse a sua maioridade antecipada. O objetivo era debelar o caos gerado pelo governo regencial de Diogo Feijó, período marcado por insurreições populares, como a Revolução Farroupilha e a Sabinada.
FIM TRÁGICO O ciclo de Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, terminou em suicídio (Crédito:Diário da Noite/D.A Press)
Valendo-se dessa cultura, políticos populistas transformaram o continente americano em um laboratório de políticas de cunho estritamente eleitoreiro, usando sempre a imagem de salvador da nação. Ocorre que a política fecunda não é construída pelos messias, pelos heróis ou fanfarrões. Bolsonaro foi eleito com 57 milhões de votos. Mas a maioria dos brasileiros não elegeu Bolsonaro. Somados os que votaram em Fernando Haddad, do PT, e os que se abstiveram de fazer uma escolha no segundo turno, são 87 milhões de brasileiros. Trata-se de um sinal de alerta importante. Os brasileiros estarão vigilantes. Espera-se que ele salve a pátria. Mas só conseguirá assim fazer caso entenda que não pode tudo.