quarta-feira, 14 de novembro de 2018

"Desilusões eleitorais", por Roberto DaMatta

Eleições têm resultados e resultados promovem sequelas. Desilusões fora do estreito campo político que, como o sarampo e a burrice, contaminam a vida rotineira que simplesmente vive o mundo sem nele pensar. Nesse terremoto político que foi a eleição de Jair Bolsonaro, especulamos ansiosamente sobre tendências (na fundo, desejos), focalizando o campo financeiro e o político e deixando de lado a nova química emocional que tem afetado nossas casas, famílias e amizades.

Por muitos motivos que não vale repetir porque o jornal fala deles periodicamente, vivemos no Brasil uma inusitada fragmentação íntima que veio abalar o rotineiro “em quem você vai votar?” e as razões morais do voto, o que tem levado a debates exaltados, reveladores de como o mundo público – o universo da “rua” – inapelavelmente penetrou a “casa” numa prova de mudança. 
Agora, sem dúvida, não éramos apenas pais e filhos, marido e mulher, professor e alunos, mas santos ou demônios, fascistas ou democratas. Muitos amigos dormiram numa família para tomar café da manhã num comício político exaltado e foram para o trabalho descobrindo que o rebento, o colega e até mesmo a mulher amada eram intolerantes inimigos políticos.
Se fosse um exaltado, diria: “Não é a economia e muito menos a política, seu burro! É a cultura que tudo inventa e canibaliza!”.
*
Ele era baiano e ela, paulista. Ele demorava pra falar e ela dizia coisas complicadas com a rapidez de um relâmpago. Ele a atraiu por sua voz melodiosa e ela o atraiu pela sua altura. Jameson, digo logo seu nome, era fascinado por mulheres esguias que exerciam sobre ele um poder fetichista. Meu código de cavalheiro impede revelar o nome da moça, mas acrescento que ambos eram “cientistas sociais” solteiros e perfeitamente equilibrados, exceto quando se tratava da febre eleitoral que infectou todo esse Brasil de gente que “não sabe votar”...
Um olhar foi suficiente para o encontro, depois que cada um discutiu a sua comunicação no Seminário sobre Tolerância e Democracia, realizado um pouco antes da eleição na universidade. Ela estava em trânsito nesse nosso Rio de Janeiro que ainda é a “cidade maravilhosa” de muitos paulistas. Ele aqui morava e, naquela noite, seu plano era claro: saber mais dela e desfrutar de modo tranquilo e pós-moderno uma noite mágica de sexo à antiga. Admiravam os mesmos autores, tinham pesquisado assuntos semelhantes e adoravam vinhos macios ao paladar. Pediram ao mesmo tempo um Merlot, o que causou uma auspiciosa risada confirmadora da afinidade que saia da garrafa e ia sendo saboreada pelo quase casal numa expressiva sincronia.
Quando o último bar fechava e os garçons se entreolhavam, veio a tragédia: eles citaram o nome de um presidenciável e o processo eleitoral – com tudo que ele tinha direito – baixou entre eles. 
Foi num surto de terror que cada qual descobriu no outro o inimigo. 
“Eu já suspeitava disso num machista branco.” 
“Mas eu sou baiano, mulato e tolerante como Gilberto Freyre”, retrucou ele, com um bafo do Merlot que azedava.
“Vocês só pensam em sexo.”
“E você, inumana, se satisfaz com a masturbação política!” 
“Grosso! Machista! Golpista! Na certa, um homofônico enrustido!
“Homofônico, não! Apenas um homem fuzilado por clichês fascistoides...”
O bate-boca os levou até a fachada acolhedora do seu prédio. Ela trouxe de volta o seu plano original de convidá-la a subir.
Mas estavam possuídos pela política que estragava tudo. Foi-se, como o vinho, a tolerância democrática. A prática, como dizia Zhou Enlai (Chu En-Lai), tritura a teoria...
Um desesperado gesto de paz, de conscienciosa lucidez e de conciliação, o levou a pegar-lhe a mão e dizer:
“O que é isso, gatinha? Vamos com calma...”
“Não me chama de gatinha, seu filho da p...! Agora, você tirou a máscara! Não passas de um safado machista branco e racista.”
“Repito: eu sou baiano.”
“Não! És um branco, nazista e prepotente!”
No dia seguinte, ele ligou e descobriu que ela o havia excluído – ofensa das ofensas – do seu Facebook.

O Estado de São Paulo