quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

"Intervenção e revolução", por Roberto DaMatta

O Globo

Sempre fizemos as reformas apropriadas a um Estado republicano cuja função sempre foi a de canibalizar a sociedade a ele profundamente entrelaçada


São conceitos originários do triunfo do campo político e econômico e, não por acaso, dominam o nosso pensamento e permeiam os valores da chamada “modernidade ocidental”, hoje globalizada. Aprimorados sob a égide do indivíduo-cidadão como motor da vida social, o político e o econômico estão interligados. Vale observar, porém, como “intervenção” e “revolução” estão ausentes ou são raros no campo religioso. Essa esfera que, ao lado da economia e da política, possui primazia na nossa visão de mundo.

Fizemos muito mais revoluções (e intervenções) políticas e econômicas do que religiosas, um campo no qual — no nosso sistema cultural — predominam as “reformas”. Reformar é promover uma modificação relativa — situada aquém daquilo que a nossa cosmologia ainda figura no espaço de redentoras transformações sociais. 

De um certo ponto de vista, a ideia de revolução com “R” maiúsculo enfeixaria todos os campos sociais menos, é obvio, o do paradoxal interesse ou vontade popular de realizá-la e dirigi-la. 

Seriam as revoluções alérgicas ao religioso porque prometem uma transcendência histórica, enquanto a religião garante uma eterna salvação? Ou revolução e religião não combinam também porque o ponto de partida revolucionário seria construir (ou reconstituir, como queriam os pensadores radicais vitorianos) um paraíso neste mundo e não no outro?

O materialismo iluminista e burguês afirma que tudo (inclusive as ideias) vem da realidade física e biológica. 

Neste universo sem ironia, paradoxo, liminaridade, ambiguidade e incoerência, o elo entre a matéria e o espirito é de ordem mecânica — menos, é claro, a utopia revolucionária, a qual promove, sem saber, um inconsciente retorno ao religioso.
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O século passado — como diz o harvardiano, Nur Yalman — está permeado das carcaças de revoluções fracassadas. Lenin, Stalin, Mao, Mussolini e Hitler tentaram todos controlar a modernidade — para detê-la ou acelerá-la — e falharam. Mustafa Kemal Pasha, o famoso Atatürk, tendo como inspiração o materialismo burguês, buscou acomodar soberania popular ao islamismo nas décadas de 20 e 30 do século passado mas, como diz Yalman (que é turco), tal tentativa fracassou no atual regime de Erdogan.

Fizemos muito mais revoluções políticas e econômicas do que religiosas. No entanto, a Reforma que, pelo credo revolucionário, seria uma mera rebelião, agenciou uma irônica mudança sem precedentes. A crer em Max Weber e Karl Polanyi, ela estilhaçou o centralismo, reinventou a racionalidade, o capitalismo e o mercado...

Tivemos também o nosso momento revolucionário com Getúlio Vargas em 1930 e, até hoje, persiste dúvida na classificação do movimento militar ocorrido em 1964. Para quem diz que o movimento ocorreu no dia 1º de abril, todo mundo caiu num golpe. Para quem se refere a um romano fim de março, teria sido revolução.

A intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro — determinada pela imoralidade administrativa, a perda de controle da rotina tomada por bandidos e a mais absoluta ausência de competência — tem suscitado reações.
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Grande parte da elite brasileira se diz revolucionária, mas não chega a ser reformista. E, menos ainda, protestante. Há, agora, o receio da intervenção no sistema de (in)segurança do Rio de Janeiro. Reformar mete menos medo do que intervir, que fica mais ao lado do protesto. Primeiro, porque sempre fizemos as reformas apropriadas a um Estado republicano cuja função sempre foi a de canibalizar a sociedade a ele profundamente entrelaçada, mas sempre visto como sendo uma entidade independente e, quando interessa, onipotente. Segundo, porque as reformas requerem uma densa aprovação política e têm amplos objetivos e múltiplas consequências. Para muitos, elas correm o risco de realizar o que tememos: igualar e regular privilégios. Terceiro porque, nas reformas, as responsabilidades podem ser dissolvidas. Rejeitadas ou modificadas numa instância política, pode-se culpar uma outra e, se ninguém decide coisa alguma, vão para o centro de nossa hierarquia: o STF.

O contraste com a intervenção é nítido. Nela, há a figura de um interventor. Personificada num responsável, corre-se o risco de erro ou acerto — ou seja: daquilo que os políticos escondem, já que são capazes de tudo, menos de admitir culpa ou admitir erros. Em suma: a intervenção é um protesto, tem uma autoria e permite atribuir responsabilidade, dimensões a que o sistema — regido pela sua matriz aristocrática — tem horror.

Finalmente, mas não por último, intervenção rima com revolução.

Roberto DaMatta é antropólogo