sábado, 30 de janeiro de 2016

"À luz do dia", por Demétrio Magnoli

Folha de São Paulo


Triplo X, o nome da nova fase da Lava Jato, é referência ao tríplex em Guarujá que seria de Lula e está em nome da OAS, uma das empreiteiras envolvidas no petrolão. Mas, formalmente, tem razão o ministro José Eduardo Cardozo quando afirma que "o ex-presidente Lula não está sendo investigado". A contradição flagrante entre o fato notório e a ficção legal deve-se ao Ministério Público Federal, que não solicitou abertura de investigação contra essa "pessoa incomum".

Na plêiade de investigados da Lava Jato, o lugar inexplicavelmente vago indica que há algo de errado na nossa democracia. São múltiplos, consistentes, os motivos para uma criteriosa apuração das relações entre o ex-presidente e o escândalo que resultou da apropriação da Petrobras por uma máfia político-empresarial.

Lula aparece, destacadamente, nas delações homologadas de Nestor Cerveró e Fernando Baiano. Na condição declarada de palestrante, remunerado em somas exorbitantes, ele defendeu interesses de empreiteiras envolvidas no escândalo da Petrobras. O imóvel em Guarujá, um entre outros que despertam suspeitas num estranho negócio entre a OAS e a Bancoop, cooperativa dirigida por petistas, aparentemente não se enquadra nos padrões de uma típica transação privada. Se esse conjunto de indícios não merecer investigação, o melhor é admitir que, no Brasil, existe uma classe de cidadãos intocáveis.

À medida em que a Lava Jato aproxima-se da mais incomum entre as "pessoas incomuns", avolumam-se as pressões contra a operação. Das catacumbas da internet, a acusação de que Sergio Moro instaurou um "estado de exceção" saltou para um manifesto de notáveis advogados e, então, ganhou ampla difusão pelas vozes uníssonas dos petistas Rui Falcão e Gilberto Carvalho e de jornalistas adaptados ao papel de "companheiros de viagem". Agora, face à Triplo X, o Planalto atravessou a fronteira da institucionalidade, entrando no jogo da intimidação.

No núcleo do governo, desde que Lula proclamou-se o mais honesto dos brasileiros, está em curso uma ação coordenada. O ministro Jaques Wagner renunciou a seu comedimento habitual para dizer que Lula é um "objeto de desejo" da investigação, enquanto Dilma abdicava de uma prudente discrição, sugerindo que a Polícia Federal dissemina "insinuações" contra seu padrinho político. Chegamos num ponto crítico: em nome de Lula, o Executivo ensaia terçar lanças com o Judiciário.

A insurreição discursiva contra a Lava Jato só emociona militantes políticos e incautos incorrigíveis. Cada um dos atos da operação está sujeito ao controle das instâncias superiores do Judiciário, acionadas sistematicamente por célebres advogados. A hipótese de perseguição politicamente motivada solicita a crença primitiva numa conspiração geral de juízes. Mas Lula e os seus, dentro ou fora do governo, têm razão num único ponto, muito relevante: a crítica a uma investigação que não diz seu nome.

Rodrigo Janot, o procurador-geral da República, produziu uma extensa lista de investigados que contém personagens como os presidentes da Câmara e do Senado. Contudo, trata Lula com a reverência que só se reserva aos monarcas, semeando especulações variadas. Segundo uma teoria maligna, Janot preserva o ex-presidente, alçando-o acima da lei. Segundo a mais benigna, apela a uma tática de desgaste gradual, a fim de minar as muralhas políticas erguidas ao redor do ex-presidente. Seja como for, abusa de suas prerrogativas ao condicionar decisões de natureza processual a considerações de cunho político.

De fato, Lula é investigado. A nação tem o direito de ser oficialmente informada disso. Lula é inocente até prova cabal em contrário. Ele tem o direito de saber, precisamente, quais suspeitas movem a investigação. Janot estará prevaricando se perseverar na separação entre o fato notório e a ficção legal.