sexta-feira, 4 de junho de 2021

"Estranha paixão pelo concreto", por Theodore Dalrymple




A morte do arquiteto Paulo Mendes da Rocha foi marcada por tributos sobre seu trabalho que me pareceram não apenas não merecidos, mas o oposto do que deveria ter sido escrito


Que ninguém deveria falar mal dos mortos — dos que acabaram de morrer, melhor dizendo, porque a passagem do tempo confere decência a lembranças adversas e críticas — é um princípio da civilização. Mas, como todos os princípios que regem o bom comportamento, existem exceções. Quando um homem expõe seu trabalho diante do público, é razoável que, quando de sua morte, ao falar dele, sua qualidade seja avaliada. Quando Benjamin Haydon, um artista inglês do século 19, cometeu suicídio cortando a própria garganta por causa de seu repetido fracasso em ser reconhecido como pintor, Charles Dickens escreveu que nenhum grau de solidariedade por ele como homem disfarçaria o fato de que Haydon havia se enganado sobre sua vocação e, de fato, era um pintor muito ruim.

Pintura a óleo Chairing the Member (1828), de Benjamin Haydon

Nenhum homem expõe mais seu trabalho diante do público do que um arquiteto. Aliás, quando esse trabalho é muito grande ou está em posição de destaque, o público não pode simplesmente evitá-lo, mesmo que deseje muito fazê-lo. Um poema ruim ou uma imagem ruim são fáceis de evitar, mas um edifício monstruoso não é. Com o avanço dos sistemas públicos de som, música ruim recai em algum ponto entre os dois extremos de evitabilidade.

A morte do arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, aos 92 anos, foi marcada por tributos sobre seu trabalho que me pareceram não apenas não merecidos, mas o oposto do que deveria ter sido escrito. De suas qualidades como homem não sei nada: fico bem feliz de acreditar que ele tenha sido um bom pai, marido, amigo, um convidado divertido em jantares, um grande conhecedor de literatura etc. Não foi por isso, no entanto, que ele ficou conhecido, mas como arquiteto de edifícios. Como a maioria (mas não todos) dos arquitetos famosos desde a 1ª Guerra Mundial, ele fez mais do que a maioria das pessoas para aumentar a feiura desnecessária do mundo.

 

Qualquer pessoa que considere o concreto armado amigável claramente é uma pessoa estranha

 

Paulo Mendes da Rocha ganhou o Prêmio Pritzker de Arquitetura, e uma medalha de ouro do Instituto Real de Arquitetos Britânicos, que são basicamente recomendações tão altas na área quando ganhar o Prêmio Stalin de Literatura em 1947. Para disfarçar o que fez ao mundo, a monstruosa maçonaria de arquitetos oferece prêmios uns aos outros: se Macbeth fosse um arquiteto moderno, ele não diria

“A tal ponto atolado estou no sangue que, esteja onde estiver, tão imprudente será recuar como seguir à frente.”

E sim:

“A tal ponto construí em concreto que, esteja onde estiver, tão imprudente será construir mais… etc.”

Quanto piores as construções dos arquitetos, piores eles precisam ser, para justificar os crimes do passado contra a beleza.

Em algum ponto dos livros de Le Corbusier, nas minhas pesquisas sobre esse grande monstro do século 20, eu me deparei com a expressão “meu concreto amigável” (ele se referia ao concreto armado, não ao tipo usado pelos romanos). Agora, qualquer pessoa que considere o concreto armado amigável claramente é uma pessoa estranha. Se alguém dissesse “meu veludo amigável” ou “minha manteiga amigável”, eu não teria a mesma reação. Tive um paciente que colecionava lâmpadas e tinha acumulado tantas que encheu uma casa inteira com elas e, além disso, ficava incomodado se qualquer uma fosse removida. Ele era mais apegado a suas lâmpadas do que a qualquer ser vivente, humano ou animal. E foi nele que pensei quando li sobre a amizade de Le Corbusier com o concreto. A arquitetura de Le Corbusier não só não era humana, era anti-humana. Certa vez vi um filme dele no espaço que desenhou na cidade de Chandigarh na Índia. A maidan (praça pública) de concreto quase não tinha sombra, uma omissão elementar quase risível considerando um clima como o da Índia. Era como se Le Corbusier tivesse um desejo de torturar os futuros moradores da cidade usando os raios de sol.

A Maison du Brésil, concebida pelos arquitetos Lúcio Costa e Le Corbusier, está localizada na Cité Universitaire, em Paris

Paulo Mendes parece ter tido uma paixão similar pelo concreto. De minha parte, não consigo entender como alguém poderia não notar a completa desumanidade do que ele construiu. Concreto armado é um material que não envelhece e não pode envelhecer, ele apenas se deteriora e se torna ainda mais feio. Ele começa a ficar manchado e a apodrecer mesmo antes de o prédio ficar pronto. E, no entanto, nos comentários profissionais sobre suas criações, que se seguiram ao falecimento do arquiteto, não houve menção a isso. Pelo contrário, seu trabalho era considerado fluido, inovador, elegante. A meu ver, seu Museu Nacional dos Coches em Lisboa deveria ser considerado a vingança do Brasil contra sua metrópole.

Museu Nacional dos Coches, em Lisboa

Claro, gosto não se discute. Se você disser que acha placas de concreto gigantes bonitas — bem, como comentei, tive um paciente que amava lâmpadas mais do que tudo, e nada do que eu dissesse o teria dissuadido.

Paulo Mendes afirmou certa vez que a ditadura militar no Brasil causou danos duradouros na educação arquitetônica do país. Logo depois de receber a medalha de ouro do Instituto Real de Arquitetos Britânicos, uma das maiores desonrarias possíveis, ele declarou a uma revista britânica que o dano causado pelo regime militar era tão grande que a arquitetura brasileira ainda estava tentando se recuperar.

Isso me parece extraordinário. A arquitetura modernista tem (por uma questão de registro histórico) raízes profundamente totalitárias, e seus fundadores queriam decretar a forma de construir do mundo todo. A meus olhos, pelo menos, a maioria desses trabalhos reflete sua sensibilidade totalitária — tanto fascista quanto comunista. Placas de concreto são o material perfeito para construir câmaras de tortura para a polícia secreta. Em 1984, o futuro distópico é descrito como uma bota pisoteando um rosto humano — para sempre. As construções de Paulo Mendes da Rocha são um corpo estranho para os olhos — para sempre ou, pelo menos, até se deteriorarem a ponto de terem de ser demolidas, quando serão substituídas por algo igualmente ruim, mas ruim de um jeito um pouco diferente.

O problema não é brasileiro, mas mundial. Estou escrevendo este texto em Paris, uma cidade onde não existe um único prédio construído depois de 1945 que não diminua consideravelmente a beleza da cidade. Eu gostaria de ter uma explicação satisfatória para dar.

Leia também “A verdade por trás da arte de segunda categoria”


Theodore Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. Daniels é autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou O Que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New CriterionThe Spectator e City Journal.

Revista Oeste