segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Gilmar não deveria soltar preso de segunda instância, afirma Moro

Fausto Macedo e Ricardo Brandt - O Estado de São Paulo



Juiz Sérgio Moro. FOTO: FELIPE RAU/ESTADÃO
O juiz Sérgio Moro disse que seria “lamentável” se o Supremo Tribunal Federal revisse o próprio entendimento de seus ministros, do ano passado, que autoriza prisão de condenados em segundo grau judicial. Para o magistrado da Lava Jato, ‘executar a condenação, no Brasil, após a decisão da Corte de Apelação, não fere a presunção de inocência’.
Na quarta-feira, 23, pela primeira vez desde que a Lava Jato entrou em cena, Moro mandou prender dois condenados que perderam recursos no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região – a Corte de Apelação que pode revisar ou confirmar suas sentenças.
A decisão de Moro, amparada em ordem do tribunal, reacendeu a polêmica sobre as prisões da segunda instância – antes do trânsito em julgado – porque ministros da Corte máxima admitem a possibilidade de rever seu entendimento. Um deles é Gilmar Mendes, que nos últimos dias mandou soltar vários empresários, inclusive Jacob Barata Filho, o ‘rei do ônibus’.

Em entrevista ao Estado, Moro recorreu a uma personagem da mitologia grega ao destacar que os magistrados não se sentem confortáveis quando seus esforços ficam em vão. “Revisões de decisões judiciais fazem parte do horizonte da profissão. Evidentemente, nenhum juiz gosta de se sentir como se estivesse vivendo o Mito de Sísifo.”
Ao falar sobre o fato de mandar prender e Gilmar mandar soltar, Moro enfatizou. “Não penso que as questões devem ser tratadas a nível pessoal, mas institucional. Respeito o ministro Gilmar Mendes e espero que, ao final, ele, pensando na construção da rule of law, mantenha o precedente que ele mesmo ajudou a construir.”
ESTADÃO: O sr. mandou prender condenados da Lava Jato com base em ordem do TRF-4. Foi a primeira vez que isso ocorreu. O que isso significa na guerra da Lava Jato?
JUIZ SÉRGIO MORO: A Lava Jato não é uma guerra, mas, assim como outros processos anteriores, como a Ação Penal 470 (mensalão), representa uma exceção à impunidade de crimes de poderosos. Foi o próprio TRF4 quem ordenou as prisões, após a confirmação de condenação por crimes de lavagem de cerca de dezoito milhões de reais, tendo por antecedente corrupção. Apenas segui uma ordem, embora com ela concorde integralmente. Significa, na prática, que talvez – e eu dou ênfase ao talvez – a era da impunidade dos barões da corrupção esteja chegando ao fim.
ESTADÃO: Em sua decisão o sr. fala dos ‘processos sem fim’. Como dar um fim nisso?
SÉRGIO MORO: O processo funciona quando o inocente vai para casa e o culpado vai para a prisão, principalmente em crimes graves como homicídio e corrupção. Se isso não ocorre, é uma farsa. A lei processual penal brasileira é muito generosa com recursos. Advogados habilidosos de criminosos poderosos podem explorar as brechas do sistema legal e apresentar recursos sem fim. O remédio é fácil, diminuir as brechas do sistema e os incentivos a recursos protelatórios. Uma forma é permitir a execução imediata de uma condenação por uma Corte de Apelação, que é a lei vigente, e admitir a suspensão dessa execução somente em casos excepcionais, quando for apresentado um recurso a um Tribunal Superior que tenha reais chances de êxito.
ESTADÃO: A quem atribuir o quadro de ‘impunidade de sérias condutas criminais’?
SÉRGIO MORO: O Brasil é uma sociedade profundamente desigual e o nosso sistema processual penal reproduz essas desigualdades, criando privilégios que impedem a efetiva responsabilização de pessoas poderosas por seus crimes. Não é só corrupção, mas até mesmo crimes de sangue, desde que praticados por pessoas poderosas. Em uma democracia liberal, todos devem ser tratados como livres e iguais, inclusive quanto à sua efetiva responsabilização após cometerem um crime.
ESTADÃO: As prisões têm amparo na decisão do Supremo sobre execução de pena a partir do julgamento de segundo grau. A Corte pode mudar o entendimento. O sr. está preocupado?
SÉRGIO MORO: A presunção de inocência é um escudo contra uma punição indevida. Exige que uma condenação criminal seja baseada em prova categórica. Na França e nos Estados Unidos, após o julgamento em primeira instância, já se inicia a execução da pena, com prisão, como regra. Então, executar a condenação, no Brasil, após a decisão da Corte de Apelação, não fere a presunção de inocência. O Supremo adotou esse entendimento em 2016 a partir de um julgamento conduzido pelo ministro Teori Zavascki. Fechou uma grande janela de impunidade e, embora o trabalho do ministro tenha sido notável em outras áreas, penso que foi esse o seu grande legado. Representou uma mudança geral no sentido do fim da impunidade dos poderosos e na construção de um governo de leis no Brasil. Reputo prematura a afirmação de que o Supremo irá reverter o precedente do ministro Teori. Enquanto não houver decisão, ministros podem mudar sua posição e há grandes ministros no Supremo, como, para ficar somente em dois exemplos, o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber, que têm demonstrado preocupação com o nível de corrupção descoberto. Com todo o respeito ao Supremo, seria, no entanto, lamentável se isso ocorresse.
ESTADÃO: Ao mesmo tempo em que o sr. manda prender, o ministro Gilmar Mendes manda soltar. O que deve prevalecer?
SÉRGIO MORO: Não penso que as questões devem ser tratadas a nível pessoal, mas institucional. Respeito o ministro Gilmar Mendes e espero que, ao final, ele, pensando na construção da rule of law, mantenha o precedente que ele mesmo ajudou a construir.
ESTADÃO: O sr. se frustra com isso?
SÉRGIO MORO: Revisões de decisões judiciais fazem parte do horizonte da profissão. Evidentemente, nenhum juiz gosta de se sentir como se estivesse vivendo o Mito de Sísifo.
ESTADÃO: Os advogados alegam que prisões em segundo grau violam o pleno direito de defesa.
SÉRGIO MORO: A proteção contra a punição indevida consiste em admitir a suspensão da execução da condenação caso apresentado um recurso plausível a uma Corte Superior. Compreendo que parte da advocacia criminal queira proteger ao máximo os seus clientes, mas o processo penal não serve apenas à proteção do acusado, mas também à proteção da vítima e de toda a sociedade. Tem que se pensar além dos próprios interesses corporativos.