sexta-feira, 4 de outubro de 2024

'Parlamentar de toga', por Sílvio Navarro

 

CNN Brasil


Q uando se imaginava ter ouvido todo tipo de arroubo verbal dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso afirmou, nesta semana, que a nova missão da Corte é “recivilizar” o Brasil. Esqueça a guarda intransigente da Constituição ou o papel do STF como última instância recursal do Judiciário. A frase de Barroso foi exatamente esta, sem rodeios, em entrevista ao jornal Valor Econômico: “O legado institucional que eu queria deixar é a total recivilização do país”. 

Barroso cruzou a metade do seu percurso na presidência do STF. Ele segue na cadeira até setembro do ano que vem, quando será substituído por Edson Fachin. A menos que ele dê um cavalo de pau completo nas suas convicções, o que não é raro na história recente da Corte, sua gestão deixará marcas completamente diferentes. O Supremo vive hoje a era mais escura, movido pelo autoritarismo e pela censura, acumula decisões inconstitucionais, passeios injustificáveis de ministros ao exterior e uma frente ampla de anistia a corruptos. 

Soma-se a essa lista incômoda o ativismo dos ministros, que não escondem mais o desejo de fazer política no tribunal. Nessa seara, Barroso parece despontar como uma espécie de parlamentar de toga, num falatório desenfreado sobre temas dos quais deveria manter distância — afinal, ele acaba antecipando votos sobre determinado assunto.

No auge desse ativismo, foi Barroso quem subiu no palanque da União Nacional dos Estudantes (UNE), braço do PCdoB, em julho do ano passado, para uma fala apoteótica. Com o microfone em punho, afrouxou a gravata e discursou: “Nós derrotamos o ‘bolsonarismo'”. 

Ele foi o primeiro ministro do STF a participar de um evento políticopartidário da entidade desde os anos 1960. Até hoje, não explicou o uso do pronome pessoal naquele dia. 

A oposição no Senado apresentou um pedido de impeachment, fundamentado na Lei nº 1.079/50, que proíbe sua presença nesse tipo de assembleia. O pedido, porém, teve o mesmo destino de todos os outros e ficou esquecido na gaveta do senador Rodrigo Pacheco (PSDMG), presidente da Casa. 

Tampouco foi a única vez que o ministro extrapolou limites da moderação que se espera de um juiz da Suprema Corte: logo depois das eleições, ele reagiu à crítica de um brasileiro numa calçada de Nova York com o famoso “Perdeu, mané! Não amola”. O acervo, aliás, é vasto. Foram deles expressões como “cabe ao STF empurrar a história”, “a serviço da causa da humanidade”, ditas durante uma aula magna, em 2017. 

Ou ainda “nós somos o bem”, durante evento com jornalistas no exterior, ou quando discorreu sobre o “papel iluminista” do Supremo, num artigo, em 2018. As declarações recentes foram tema de editoriais da imprensa tradicional nesta semana. O jornal O Estado de S. Paulo disse que as falas expõem “o grau de alheamento da realidade e de afetação intelectual, quando não autoritária, que tem comprometido a legitimidade” das decisões do STF. “Com notável arrogância, Barroso desdenhou da necessidade de um código de conduta para ele e seus pares”, diz o texto.

Tanto o Estadão quanto a Folha de S.Paulo, ambos em editorial, citaram as decisões semanais do colega Dias Toffoli sobre a Lava Jato, que têm repercutido no exterior. Isso porque Barroso era conhecido como um dos ministros “lava-jatistas” da Corte, mas até agora não convocou o plenário para analisar as decisões individuais de Toffoli, responsável por livrar no atacado todos os corruptos do Petrolão. 

A anulação de penas mais recente foi a do empresário Leo Pinheiro, da OAS, que delatou o presidente Lula da Silva. Ele foi condenado a 30 anos de prisão por corrupção. A canetada foi similar ao perdão de dívidas milionárias de todas as empresas que confessaram a participação no propinoduto, assim como seus antigos donos. O caso mais emblemático é o de Marcelo Odebrecht, que tratava Toffoli como “o amigo do amigo de meu pai”, para muitos o embrião do Inquérito nº 4.781, instalado de ofício pelo próprio Toffoli em 2019, e até hoje conduzido por Alexandre de Moraes. 

“Espera-se em especial do presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, que o plenário do Supremo se reúna sem mais tardar para decidir se abona o festival da impunidade patrocinado por um membro solitário do colegiado”, diz a Folha. “Na hipótese benigna, a maioria, embora seja contra as atitudes de Toffoli, peca por omissão. Na pior, deixa o colega atuar solto porque, no fundo, concorda com ele.”

Numa democracia constitucional bem-arranjada e harmoniosa, a gestão de um ministro da Suprema Corte seria analisada pela celeridade processual, pelo fim de burocracias e pela redução de gastos excessivos. No Brasil, não. Barroso entende que seu legado é conduzir o tribunal com mão política e não incomodar os pares de toga — unidos num corporativismo inédito. 

Por exemplo, por que Barroso nunca questionou a legitimidade das decisões monocráticas de Dias Toffoli para apagar a Lava Jato? Por que permite que Alexandre de Moraes exclua o direito à ampla defesa — presencialmente — de advogados dos réus do tumulto do 8 de janeiro? E os gastos sigilosos dos ministros em viagens ao exterior, como a segurança prestada a Dias Toffoli para assistir à final da Champions League, num camarote em Londres? 

Questionado sobre a transparência e a criação de um código de conduta para os ministros, Barroso afirma que as transmissões da TV Justiça cumprem o papel fiscalizador. “Qualquer pessoa pode ver o que a gente está fazendo, falando e julgando. Nos Estados Unidos, os julgamentos não passam na televisão”, disse. Então, qual é o motivo para não convocar o plenário da Corte sobre temas espinhosos, como a borracha de Toffoli nas condenações da Lava Jato? Mais: quando o assunto é TV, vale lembrar que os ministros são frequentadores de estúdios, mas sempre em entrevistas amistosas.

Sobre a Lava Jato, uma resposta possível ouvida em Brasília é que Barroso abandonou o barco porque comprou a ideia da guerra contra o “bolsonarismo”. Foi levado pela corrente majoritária construída pelo decano, Gilmar Mendes, segundo a qual a operação anticorrupção catapultou a eleição de Jair Bolsonaro e a ascensão da “extrema direita” no país. A partir daí, Mendes formou uma frente, que tem como pilar os inquéritos de Alexandre de Moraes para perseguir a direita. 

O grupo tem o apoio de Cármen Lúcia e Edson Fachin, além dos recém-chegados Flávio Dino e Cristiano Zanin. Dias Toffoli herdou as tarefas sobre o Petrolão depois da aposentadoria de Ricardo Lewandowski. Outro ponto em que os entrevistadores não questionam os ministros é como a Lava Jato foi desconstruída na Corte. O Supremo aceitou como prova um combo de mensagens trocadas pelo ex-juiz Sergio Moro e pelos procuradores de Curitiba — eles dizem que os diálogos são falsos. Essas conversas foram obtidas por meio de crime: um hacker admitiu tê-las roubado. Foi aí que Toffoli permitiu que os condenados usassem esse material para desmontar as sentenças e rasgar multas. Com exceção da recente volta para a cadeia do ex-diretor da Petrobras Renato Duque, apontado como operador do PT no esquema, ninguém mais está preso — a maioria voltou para a política ou retomou suas empresas. 

Num dado momento da entrevista ao Valor Econômico, ao tratar de eventos particulares de ministros, Luís Roberto Barroso esbarrou na realidade: “Hoje, a gente não pode mais sair na rua” — na sua visão, porque as ruas estão repletas de bárbaros que precisam ser civilizados. Talvez o “iluminismo” dos ministros os impeça de enxergar que o problema está da porta para dentro.


Sílvio Navarro, Revista Oeste