Troca de mensagens mostra como Alexandre de Moraes usou o TSE para abastecer inquéritos no STF com relatórios que embasavam medidas judiciais.| Foto: Gustavo Moreno/SCO/STF.
As entranhas do abusivo sistema persecutório montado por Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral, estão expostas para a perplexidade de todo um país. Na terça-feira, a Folha de S.Paulo começou a publicar uma série de reportagens com base em mensagens e áudios no WhatsApp obtidos pelo jornalista Glenn Greenwald e repassados ao jornal – o periódico paulista afirma que as informações provêm de “acesso a dados de um telefone que contém as mensagens, não decorrendo de interceptação ilegal ou acesso hacker”. O que as conversas revelam gira em torno, principalmente, do uso extraoficial de estruturas do TSE para abastecer os inquéritos relatados por Moraes no STF, tivessem ou não relação com o processo eleitoral, facilitando a perseguição aos críticos do ministro e dos tribunais.
Até onde se sabe, não há mensagens enviadas diretamente pelo ministro. Os personagens são Airton Vieira, juiz instrutor lotado no gabinete de Moraes no Supremo; Marco Antônio Vargas, juiz auxiliar de Moraes quando o ministro presidiu o TSE; e Eduardo Tagliaferro, à época chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE, um dos muitos órgãos da superestrutura estatal apelidada de “Ministério da Verdade”. Vieira age como o transmissor das vontades de Moraes, que cabe a Tagliaferro executar. Era a AEED que monitorava os alvos das investigações e produzia relatórios que, depois, embasavam decisões de Moraes nos inquéritos do STF – relatórios esses que soavam “espontâneos”, mas que as mensagens demonstram ser produzidos sob medida para levar a determinadas conclusões, indicando que, no fim das contas, as decisões já estavam tomadas e Moraes precisaria apenas de um papel que as justificasse.
A sociedade civil organizada e os formadores de opinião têm muito o que fazer, a começar por abrir os olhos, deixar de aceitar e de normalizar os supremos arbítrios, e chamar a tudo e a todos pelo nome correto: abusos cometidos por liberticidas
Como se não bastasse essa atuação completamente “fora do rito”, no jargão jurídico, a troca de mensagens ainda mostra que relatórios eram “ajustados” quando não correspondiam à vontade de Moraes ou quando podiam dar margem a algum questionamento formal – um dos documentos teve sua origem alterada com essa finalidade. Outro caso escandaloso é a solicitação de Vieira para que Tagliaferro encontrasse qualquer coisa que embasasse uma desmonetização das mídias sociais da revista Oeste e de outras “revistas golpistas”: após o chefe da AEED dizer que não havia visto nada que justificasse tal medida, Vieira retruca pedindo que ele “use a criatividade”, o que traz à mente (outra vez) o célebre “mostre-me o homem e eu encontrarei o crime” de Lavrentii Beria, o chefão da política política stalinista.
A bem da verdade, em um país mais cioso da importância das liberdades democráticas, do devido processo legal e do direito à ampla defesa, tais revelações seriam desnecessárias. Afinal, é impossível dizer que é normal uma única pessoa concentrar todos os papéis da persecução penal, de vítima, investigador, acusador e julgador. Não há como considerar minimamente razoável a instauração de inquéritos ao arrepio da lei e dos regimentos internos do STF, inquéritos estes que se tornaram perpétuos e, apesar de já durarem mais de cinco anos, resultaram em escassas denúncias e ainda mais raras condenações, enquanto por outro lado deram margem a uma infinidade de medidas cautelares abusivas, aplicadas a torto e a direito, violando a Constituição e os códigos processuais, contra pessoas que nem sequer sabiam por que eram investigadas. Não há “situação excepcionalíssima”, para usar as infelizes palavras de Cármen Lúcia quando votou pela censura prévia a um documentário cujo conteúdo os ministros do TSE nem conheciam, que justifique o que tem ocorrido nas cortes superiores.
No entanto, o Brasil viu, por cinco anos, o Estado de exceção implantado por Alexandre de Moraes sendo normalizado, tolerado e até aplaudido por boa parte da imprensa, dos formadores de opinião e de entidades da sociedade civil organizada, que a tudo aceitavam em nome da “defesa da democracia”, elogiando o “trabalho de valor inestimável” feito por STF e TSE, como se o fim de eliminar o “bolsonarismo” justificasse todos os meios. Pois agora vemos o monstro que este sono da razão produziu – e o vemos mais uma vez, porque antes do escândalo atual tivemos os “Twitter Files Brazil”, que já deveriam ter sido suficientes para despertar quem havia passado os últimos cinco anos anestesiado enquanto liberdades eram ceifadas e a lei era sumariamente desrespeitada.
O país espera, agora, a resposta de seus representantes eleitos. Vários deles, é verdade, já vinham se empenhando na denúncia dos desmandos de Moraes, mas é preciso que a reação dos congressistas seja ainda maior, mais numerosa e mais intensa, pois só assim será possível quebrar qualquer resistência que parta daqueles que têm o poder de fazer a reação caminhar: os presidentes das duas casas. Na Câmara, Arthur Lira (PP-AL) tem em sua gaveta o requerimento de abertura da CPI do Abuso de Autoridade, que cumpre todas as exigências constitucionais; se antes já não havia razão nenhuma para sua instalação ser adiada, quanto mais neste momento. No Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) deve receber novos pedidos de impeachment de Moraes, já que esta é a casa legislativa responsável por apurar e julgar crimes de responsabilidade cometidos por ministros do STF. Especialmente no caso da CPI, a omissão já era bastante questionável, mas agora torna-se inaceitável.
Mesmo que Lira e Pacheco nada façam, no entanto, a sociedade civil organizada e os formadores de opinião têm muito o que fazer, a começar por abrir os olhos, deixar de aceitar e de normalizar os supremos arbítrios, e chamar a tudo e a todos pelo nome correto: abusos cometidos por liberticidas. O Brasil precisa das vozes das entidades, dos líderes de diversos setores, e da população comprometida com a democracia, dizendo em alto e bom som que ninguém, nem mesmo um ministro do Supremo, está acima da lei. Cada manifestação firme conta, neste momento, para trazer de volta ao Brasil o respeito à liberdade de expressão e às demais garantias constitucionais.
Gazeta do Povo