Foto: Alejandro Zambrana/Secom/TSE
Entre os anos de 2021 e 2022, cidadãos brasileiros que retuitaram a hashtag “voto impresso auditável” – uma demanda natural e legítima em qualquer democracia que se preze – foram tratados como inimigos do Estado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Atropelando a Constituição Federal, membros desse tribunal pressionaram e ameaçaram funcionários das redes sociais para que espionassem os cidadãos tidos por subversivos, fornecendo às autoridades seus dados privados. Além disso, perfis de cidadãos comuns e parlamentares de direita foram censurados ou tiveram seu alcance reduzido, numa clara interferência autoritária no livre debate político, agravada por ter se intensificado em ano eleitoral.
Esses e muitos outros abusos de autoridade e violações de direitos humanos fundamentais foram revelados ontem, dia 3, pelo jornalista americano Michael Shellemberger, em colaboração com os brasileiros David Ágape e Eli Vieira, no que ficou conhecido como os Twitter Files Brazil. Embora as revelações não cheguem a surpreender quem esteve atento à realidade brasileira dos últimos anos, elas trazem uma prova material concreta de como tem operado o complexo industrial da censura em terras brasileiras, e a que ponto as instituições do Estado foram instrumentalizadas para a perseguição ditatorial contra um lado do espectro político – no caso, a direita.
Pelo menos metade do eleitorado brasileiro já tinha, havia muito, a impressão de estar sendo desfavorecida pelas autoridades. Essa impressão de desequilíbrio na disputa eleitoral e no embate político agora é reforçada pelas revelações dos arquivos brasileiros do Twitter
Shellemberger publicou um longo fio com o material dos arquivos em sua conta no X, fio que foi gentilmente traduzido para o português pela jornalista Ana Paula Henkel. Foi com essas palavras que o jornalista americano – que não é um bolsonarista, e nem sequer um direitista – resumiu o que já foi até agora revelado:
“Os Arquivos do Twitter, divulgados aqui pela primeira vez, revelam que Moraes e o Tribunal Superior Eleitoral que ele controla estavam envolvidos em uma clara tentativa de minar a democracia no Brasil. Eles: exigiram ilegalmente que o Twitter revelasse detalhes pessoais sobre usuários do Twitter que usaram hashtags de que ele não gostou; exigiram acesso aos dados internos do Twitter, em violação à política da rede social; procuraram censurar, unilateralmente, postagens no Twitter de membros efetivos do Congresso brasileiro; procuraram transformar as políticas de moderação de conteúdo do Twitter em uma arma contra os apoiadores do então presidente Jair Bolsonaro. Os Arquivos mostram: as origens da exigência do Judiciário brasileiro por poderes de censura abrangente; o uso da censura pelo tribunal para interferência eleitoral antidemocrática; e o nascimento do Complexo Industrial da Censura no Brasil.”
São – repito – palavras de Shellemberger. Destaco: “clara tentativa de minar a democracia no Brasil”, “arma contra o então presidente Jair Bolsonaro” e “interferência eleitoral antidemocrática”. Pelo menos metade do eleitorado brasileiro já tinha, havia muito, a impressão de estar sendo desfavorecida por autoridades que, por dever de ofício, deveriam se manter imparciais, e cuja atuação político-partidária é proibida por lei. Foi essa impressão, aliás, e o sentimento de não ter a quem recorrer institucionalmente que levou uma pequena parte desse eleitorado a ter a má ideia de recorrer ao Exército e, depois, invadir prédios públicos num protesto desesperado e inócuo. Essa impressão de desequilíbrio na disputa eleitoral, e no embate político de maneira geral, agora é reforçada pelas revelações dos arquivos brasileiros do Twitter. E a ideia de “defesa de democracia” soa cada vez mais orwelliana.
Em dezembro de 2022, lembro-me de ter visto o seguinte tuíte de Elon Musk, que acabara de adquir o Twitter e já entregara a jornalistas como Shellemberger parte dos documentos internos da rede social. “É provável que a equipe do Twitter Brasil seja formada por gente com forte viés político” – tuitou Musk no dia 14 de dezembro daquele ano. A postagem dava-se no contexto de uma interação com o perfil do Conexão Política, jornal digital brasileiro de inclinação conservadora. Marcando o novo dono da rede social, o jornal denunciara a resistência do Twitter Brasil em conceder o selo dourado (destinado a empresas) a veículos de comunicação conservadores. Em resposta, Musk prometeu verificar, e emendou com o comentário supracitado. Comentando sobre o episódio, escrevi uma coluna já intitulada Twitter Files Brazil, que ainda não haviam sido expostos:
“No contexto dos Twitter Files, que, disponibilizando as comunicações internas da empresa e – C.Q.D. – revelando a identidade dos conspiradores, evisceram o complô para banir da rede social todas as vozes conservadoras, o interesse de Musk no caso brasileiro alimenta esperanças de que, também aqui abaixo do Equador, verdades sejam um dia reveladas, sigilos acabem quebrados e o pântano da exclusão política seja devidamente drenado. Sonhar – por enquanto – ainda não dá cadeia!”
Independentemente das consequências que as revelações de agora possam ter – e, diante da completa captura das instituições por parte do regime, tenho pouquíssimas esperanças que tenham –, fico feliz de que, ao menos, a verdade vai sendo revelada. E a revelação da verdade é um fim em si mesmo. A ditadura vai sendo cada vez mais escancarada, e o preço moral de sua manutenção vai ficando cada vez mais alto para os seus líderes, apoiadores e chanceladores por omissão. Para esses, o juízo histórico será implacável.
Flávio Gordon, Gazeta do Povo