Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Na semana passada, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu vista das duas ações que tratam do foro privilegiado. Antes do pedido de vista, o relator, ministro Gilmar Mendes, havia votado pela ampliação do foro privilegiado, que no Brasil favorece mais de 57 mil autoridades, algo sem paralelos no mundo. Gilmar foi acompanhado por Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Dias Toffoli. Apesar do pedido de vista de Barroso, que suspende o julgamento por até 90 dias, só falta um voto para se formar maioria em torno da ampliação do foro privilegiado, Digo sem medo de errar que essa já é uma realidade consumada pois permitirá ao STF investigar, processar e julgar Bolsonaro sem a vergonha que hoje passa por manifestamente carecer de poder (“competência” no juridiquês) para isso.
A regra atual sobre o foro privilegiado é de 2018, quando o STF, por maioria, decidiu que presidentes, vice-presidentes, ministros e parlamentares federais só possuem foro privilegiado perante o Supremo se estiverem presentes três requisitos: primeiro, os crimes devem ter ocorrido durante o mandato, nem antes, nem depois; segundo, os crimes precisam ter relação direta com o exercício do cargo; e terceiro, o foro privilegiado só permanece enquanto durar o mandato. Caso o parlamentar renuncie ao cargo, termine seu mandato normalmente ou seja cassado, as investigações são enviadas para a primeira instância. A decisão representou um grande avanço sobre a interpretação anterior a 2018, em que bastava o foro privilegiado para que todas as investigações e processos fossem enviados para o Supremo (mesmo que os crimes fossem anteriores ou sem relação com o mandato), onde os casos em geral prescreviam em razão da lentidão da Justiça.
No seu voto, o relator, ministro Gilmar Mendes, começa dizendo estar “convencido de que a competência dos Tribunais para o julgamento de crimes funcionais prevalece mesmo após a cessação das funções públicas, por qualquer causa (renúncia, não reeleição, cassação, etc.)”. Se o entendimento de Gilmar prevalecer, o STF continuará sendo o foro competente para processar e julgar processos contra ex-parlamentares e ex-presidentes da República, mesmo depois que seus mandatos já tenham se encerrado. Não era assim nem antes de 2018, quando a mudança ou perda do cargo gerava a mudança ou perda do foro. O leitor inteligente da Gazeta do Povo já entendeu aonde eu quero chegar: sim, o Supremo se tornará, subitamente, competente para julgar Bolsonaro, quando claramente não o é hoje. Bolsonaro, bem como todos os demais investigados nos inquéritos contra ele no Supremo, não possuem foro privilegiado, e esse é um nó que o Supremo até hoje não conseguiu desembaraçar, gerando críticas fortíssimas ao tribunal. O voto de Gilmar, já seguido por 4 outros ministros, resolve tudo isso, montando o palco para o futuro julgamento de Bolsonaro.
Não há nenhuma sombra de preocupação no STF com o fato de que a cada mudança na interpretação da regra do foro centenas de investigações e processos contra autoridades por crimes graves sejam anulados, sem remédio. Isso porque o STF está meramente “reinterpretando” a regra e é como se ela sempre estivesse lá. Como resultado, a regra reinterpretada é aplicada ao passado, derrubando os casos em que policiais, promotores e juízes seguiram, corretamente, a interpretação anterior do próprio STF. Como se trata de uma regra de competência chamada de “absoluta” no Direito, sua inobservância, ainda que bem intencionada, involuntária ou de boa-fé, gera uma nulidade também absoluta. Isso significa que nada do que foi feito nas investigações e processos pode ser reaproveitado, nem mesmo numa nova investigação.
O voto de Gilmar, já seguido por 4 outros ministros, resolve tudo isso, montando o palco para o futuro julgamento de Bolsonaro
Essa vontade súbita do Supremo de rediscutir o foro privilegiado, apenas 6 anos depois de mudar o seu entendimento a fim de restringir o foro, pode ser explicada por duas razões principais. A primeira razão é a mais óbvia e mais direta de todas: o Supremo quer prender Bolsonaro, simples assim. Da mesma forma que o Supremo não tem competência para processar e julgar os réus do 8 de janeiro, o Supremo também não tem competência para processar e julgar Bolsonaro: nos inquéritos da fraude nos cartões de vacina, das joias da Arábia Saudita e da suposta tentativa de golpe de Estado não há ninguém com foro privilegiado. Não há justificativa jurídica que explique o fato de o Supremo segurar esses casos em suas mãos, a não ser a vontade de controlar o resultado final desses processos, que na lógica dos ministros só pode ser a condenação final de todos, especialmente de Bolsonaro, como a imprensa tem divulgado recentemente.
A segunda razão está relacionada à realpolitik, ou ao exercício do poder: manter a competência para julgar políticos que já perderam o mandato aumenta o poder do próprio Supremo. Os ministros já perceberam faz tempo que grande parte do poder que eles têm hoje vem do medo que deputados federais e senadores têm dos inquéritos e processos que existem contra eles na corte. Os parlamentares nessa condição sabem muito bem que devem pensar duas vezes antes de se posicionarem, articularem, votarem ou denunciarem questões que envolvem interesses do próprio Supremo. Essa é uma triste realidade que vi com meus próprios olhos na Câmara dos Deputados: parlamentares com medo de agir de um certo modo ou de falar certas coisas, porque havia, no STF, processos contra eles. Havia medo difuso de vingança ou retaliação, o que reforça a leitura de que não vivemos debaixo de um império de leis, mas de donos do poder.
A primeira razão é a mais óbvia e mais direta de todas: o Supremo quer prender Bolsonaro, simples assim
Como é possível que o sistema de freios e contrapesos presente na nossa Constituição funcione se parlamentares, que deveriam fiscalizar os demais Poderes e garantir que eles não ultrapassem suas atribuições, têm medo de contrariar ministros que estão do outro lado da rua e que têm poder de vida e morte sobre suas vidas, destinos e carreiras políticas? A resposta é simples: não funciona. Esses parlamentares, que são muitos, não só não vão decidir de maneira contrária aos interesses do Supremo como também não vão denunciar ou criticar da tribuna de suas Casas os sucessivos abusos e violações legais cometidas pela corte. Para eles, sobra apenas a complacência e a obsequiosidade, e para os poucos que se rebelam contra esse sistema podre, injusto e corrupto, sobra a cassação, a perseguição e a retaliação.
Ironicamente, o ministro Gilmar Mendes diz em seu voto que a competência do Supremo seria um remédio contra qualquer tipo de perseguição política. Vejam o que disse o ministro: “Afinal, a saída do cargo não ofusca as razões que fomentam a outorga de competência originária aos Tribunais. O que ocorre é justamente o contrário. É nesse instante que adversários do ex-titular da posição política possuem mais condições de exercer influências em seu desfavor, e a prerrogativa de foro se torna mais necessária para evitar perseguições e maledicências.” Todos nós sabemos que é uma mentira.
É realmente o cúmulo da ironia que, logo ele, Gilmar Mendes, um dos ministros mais políticos do Supremo, tenha escrito isso em seu voto, quando a verdade é justamente o contrário: quanto mais perto da primeira instância, mais técnicas costumam ser as decisões, já que são tomadas por juízes concursados e sem afiliação política, enquanto que nos tribunais superiores tudo se inverte e as decisões são mais influenciadas pela política, como o próprio Supremo comprova ao mudar seus entendimentos de poucos em poucos anos, ao sabor dos ventos e interesses políticos. Para evitar esse tipo de problema, basta o STF fixar a seguinte jurisprudência: “O Supremo Tribunal Federal tem competência para fazer e julgar o que ele quiser”. Pelo menos assim a decisão será honesta e refletirá a triste realidade que a maioria dos brasileiros enxerga nestes dias sombrios que estamos vivendo.
Deltan Dallagnol, Gazeta do Povo