terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Deltan Dallagnol: 'Detenção do jornalista português seria impensável em democracias desenvolvidas'

 

O jornalista Sergio Tavares fala sobre a detenção durante o ato em apoio ao ex-presidente Bolsonaro, na Avenida Paulista.| Foto: Reprodução/YouTube


No último domingo (25), enquanto centenas de milhares de pessoas se dirigiam até à Avenida Paulista para a manifestação convocada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em defesa do Estado Democrático de Direito, contra os sucessivos abusos judiciais e os excessos do Supremo Tribunal Federal, a dezenas de quilômetros dali, no aeroporto internacional de Guarulhos, um outro abuso acontecia - um que viria a escancarar as marcas do autoritarismo judicial brasileiro para o mundo.

O jornalista português Sérgio Tavares desembarcou pela manhã no aeroporto, com destino certo: ele cobriria a manifestação na Paulista para seu canal no YouTube, que tem mais de 243 mil inscritos. O que começou como um dia qualquer de trabalho terminaria como um pesadelo: na imigração, Tavares foi abordado por agentes da Polícia Federal (PF). Os agentes solicitaram seu passaporte e conduziram Tavares para uma delegacia em São Paulo. Tavares estava oficialmente detido, mas não sabia o motivo. Os agentes da PF não lhe deram nenhuma informação.

Tavares foi interrogado por quatro horas. Os agentes da PF questionaram Tavares sobre suas opiniões políticas e sua visão do Brasil. Tavares acreditava em fraude eleitoral? O que ele tinha a dizer sobre as urnas eletrônicas? Tavares fez críticas aos ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino? E por que Tavares postou em suas redes sociais que o Brasil passava por uma “ditadura do Judiciário”? Tavares era anti-vacinas? A linha de questionamento era absurda: o que as opiniões de Tavares sobre política tinham a ver com sua situação migratória? Para sorte de Tavares, ele conseguiu publicar vídeos sobre o que estava acontecendo e em pouco tempo sua história tomou as redes sociais, que viram o episódio com indignação.

A PF liberou Tavares e, diante da revolta nas redes, soltou uma nota absurda e que continha pelo menos duas mentiras. A PF disse que conduziu “procedimento padrão” para averiguar se Tavares veio a trabalho ou a turismo, porque ele não teria visto de trabalho, e que o indagou sobre “comentários que fez sobre a democracia no Brasil, afirmando que o país vive uma ‘ditadura do Judiciário’, além de outras afirmações na mesma linha, postadas em suas redes sociais”. A PF finalizou dizendo que as mesmas medidas são adotadas por padrão na grande maioria dos aeroportos internacionais.


A PF liberou Tavares e, diante da revolta nas redes, soltou uma nota absurda e que continha pelo menos duas mentiras


Esta última parte é claramente uma mentira: desconheço qualquer democracia avançada do mundo que, ao interpelar estrangeiros durante a imigração, faça perguntas sobre suas opiniões políticas, muito menos se a pessoa for jornalista. Há países que fazem isso, mas estes fazem parte do seleto clube das piores e mais sanguinárias ditaduras do mundo: Rússia, Venezuela, Coreia do Norte, Irã. Nestes países, se você der as respostas “erradas” para as autoridades sobre sua opinião a respeito do regime, é possível que você não só perca seu visto, mas também nunca mais seja visto - felizmente, ainda não chegamos ao ponto em que Tavares foi “desparecido” no Brasil.

A outra mentira é de que Tavares foi detido por conta de seu status migratório, a fim de checar se viajava a turismo ou a trabalho. Admitir isso é dizer que a PF não conhece a lei brasileira ou que a conhece, mas que então cometeu crime de abuso de autoridade, já que cidadãos europeus não precisam de visto de trabalho para fazer coberturas jornalísticas no Brasil por até 90 dias, desde que não sejam remunerados por empresas brasileiras. Como a cobertura de Tavares era para seu próprio canal do YouTube, ele estava completamente regular e a PF não tinha justificativas para detê-lo.

Chama atenção na nota, ainda, o fato de que a PF confessa ter questionado o jornalista a respeito de suas opiniões políticas e comentários que fez sobre o Brasil nas redes sociais. Qual o interesse da PF nesse tipo de comentário? A PF não tem poder ou atribuição para fiscalizar o pensamento das pessoas. Ter opiniões críticas sobre a democracia no Brasil não é um crime - ainda. Assim, qual era o objetivo de a PF fazer perguntas nessa linha, a não ser intimidar o jornalista? Se Tavares confirmasse tudo o que disse sobre o Brasil, a PF iria prendê-lo? Por qual crime? Qual linha legal teria sido atravessada por Tavares e qual seria a sua punição? Isso a PF não diz.

A verdade é que o que aconteceu foi uma prisão de fato, sem situação de flagrância nem ordem judicial, em um procedimento muito parecido com a chamada “prisão para averiguação”, comum em regimes autoritários e que foi considerada incompatível com nossa Constituição Federal, como explicou o jurista e advogado André Marsiglia. Tavares foi preso sem que houvesse flagrância de qualquer crime e sem que houvesse mandado de prisão em aberto contra ele. Não havia sequer notícia de outros crimes pretéritos que não poderiam ensejar a prisão, mas uma investigação. Sua prisão ilegal foi feita, aparentemente, com o único objetivo de constrangê-lo e interrogá-lo sobre suas opiniões políticas. O caso tem todas as características do abuso de autoridade.

A Suprema Corte norte-americana há muito tempo examinou casos como o de Tavares e considerou ilegal a detenção para interrogatório. É preciso lembrar que os Estados Unidos são um país muito mais rigoroso com criminosos do que o Brasil e mais protetivo das ações policiais. Lá, a prisão de alguém sem causa provável é considerada uma violação da Quarta Emenda da Constituição americana, que proíbe buscas e apreensões de pessoas e seus bens sem causa provável. A causa provável é equivalente, aqui no Brasil, à existência de razoáveis indícios de crimes, o que não existia no caso de Tavares. 


Há países que fazem isso, mas estes fazem parte do seleto clube das piores e mais sanguinárias ditaduras do mundo: Rússia, Venezuela, Coreia do Norte, Irã


No caso Dunaway v. New York, de 1979, por exemplo, aquela Corte considerou ilegal a condução de um suspeito para interrogatório feita pela polícia de Nova York sem que houvesse causa provável, ou seja, sem indícios razoáveis de que havia praticado um crime. Uma questão abordada foi se essa detenção caracterizava uma “prisão de fato”, ainda que não fosse uma “prisão de direito”, isto é, que não fosse uma prisão legal ou autorizada pelo Direito. A Corte aplicou o “duck test”, ou teste do pato: se algo parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então provavelmente é um pato. Logo, aquela detenção era sim uma prisão ilegal e, assim, igualmente ilegal foi a confissão.

O caso de Sergio Tavares foi mais um que se soma a uma série de arbítrios judiciais praticados pela Suprema Corte brasileira, mas o abuso aparentemente não acabou aí. Ao sair do país, Tavares relatou nas redes ter sido submetido a uma nova rodada de constrangimentos, com seu passaporte sendo apreendido mais uma vez pela PF. Felizmente, os agentes devolveram o seu passaporte e ele já retornou a Portugal, seu país de origem, onde abusos desse tipo são mais raros e tratados com mais rigor do que aqui. Portugal é, afinal, uma democracia plena, desenvolvida e avançada. 

No caso de Tavares, para o azar da PF, o abuso de domingo rodou o mundo, assim como as imagens da manifestação. A tentativa de intimidação foi um tiro no pé. Contudo, a repercussão e a indignação social não têm sido suficientes para frear sucessivos abusos judiciais. A escalada da arbitrariedade chegou a um tamanho absurdo que é hora de aplicarmos ao Brasil o teste do pato: ainda vivemos numa democracia ou cada vez mais se fortalece uma ditadura do STF? Comente esse artigo e conte o que você acha.


Deltan Dallagnol, Gazeta do Povo