sábado, 29 de dezembro de 2018

"Despertar da cidadania no condomínio Brasil", por Murillo de Aragão

Desde os tempos coloniais, o governo é mais importante que a sociedade. A vida brasileira gira em torno do Estado. E quem se relaciona bem com ele, seja vendendo produtos e serviços ou trabalhando para ele com uma incontável série de benefícios, está feito. Criamos duas castas no Brasil: a dos que se servem do Estado e a dos que são escravizados por ele.
A mão grande dos exploradores dos cofres públicos atingiu todos os ramos da administração pública, criando um Estado gastão, ladrão, ineficiente e preguiçoso. Ao cidadão tem restado ruminar as narrativas politicamente corretas que impunham a lógica de que o Estado sabe o que faz pela sociedade.
A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) como presidente do Brasil, cujo mandato se inicia agora, representa uma espécie de despertar da cidadania. Ainda que parte da imprensa, das esquerdas derrotadas, da academia e do mundo politicamente correto diga que não. Pois a nova lógica demole o projeto de poder que transferia a subserviência das oligarquias econômicas para as oligarquias de esquerda.
No entanto, sem entrar no mérito, a escolha em si representou uma libertação em muitos sentidos. Aliás, não é a primeira vez que tal fenômeno acontece, uma certa independência da população em relação ao pensamento das elites. Em 2005, quando o “não” ao desarmamento foi derrotado em referendo, o universo (pretensamente) politicamente correto também foi.
Em 2013, no auge das manifestações em São Paulo, que se espalharam pelo País, declarei no programa GloboNews Painel, a William Waack: “O mundo político está completamente atônito porque, evidentemente, é um fator novo e que tem profundas repercussões políticas. Pode até ser considerado um despertar da cidadania”. Pois ali prosseguia o lento despertar, que continuou este ano com o resultado das eleições para a Presidência, em outubro.
No momento, o despertar da cidadania significa que, em 2018, parte expressiva do eleitorado rejeitou a tutela da grande mídia, do universo “cultural-Rouanet” e da academia pública. E também a tutela do clientelismo escravizador de bolsas variadas. Da bolsa BNDES, com seus 13 salários e até quatro salários de bônus para seus funcionários, à finada TJLP, que beneficiava os campeões nacionais.
A cidadania pode errar em sua escolha. Mas tem o livre-arbítrio para tal. Em especial, quando as elites acadêmicas, midiáticas e culturais buscam incutir um padrão ideológico que deveria ser hegemônico, baseado na crença de que o modelo do Estado forte é o único que pode propor a redenção do povo.
Fica claro que, depois de quase 40 anos orbitando em torno de fórmulas social-democráticas e socialistas tupiniquins, não fomos a lugar nenhum de forma consistente. O roubo e o privilégio aumentaram. Os gastos com salários mais do que dobraram. Bilhões de reais foram surrupiados em corrupção, corporativismo, clientelismo e fisiologismo. Auxílios-moradia, planos odontológicos e pagamento de faculdade para filhos de juízes são a ponta de um iceberg profundo que envolveu crimes e privilégios ilegítimos, mas legalizados por leis anticidadania.
Todo o discurso do bom-mocismo dos últimos tempos serviu para encobrir uma brutal exploração dos cofres públicos em favor de políticos, empresários corruptores e corporações de funcionários públicos. A eleição de Jair Bolsonaro significou que a cidadania não quer o sistema que vigia até agora. Deseja outra relação entre o governo e a sociedade. Enfim, representa um despertar cujas repercussões não são apenas nacionais.
O Brasil da era Lula-Dilma (PT) foi um anteparo para os movimentos de esquerda não democráticos em todo o mundo. As duas gestões mantiveram relações espúrias com países e movimentos, alguns deles terroristas, cujo objetivo era implantar ditaduras sob os mais variados pretextos. Agora, consternados, devem assistir ao desmonte do aparelhamento estatal promovido diante da nossa imensa complacência. Ainda agora, após exaustivos debates, o PT decidiu que não faria nenhuma autocrítica sobre a sucessão de erros, fracassos e escândalos.
A cidadania não quer mais relações com quem não respeita, de verdade, os direitos humanos. A esquerda petista tolera as violências contra os direitos humanos em Cuba, na Venezuela e na Nicarágua, mas trata de desmoralizar e desinstitucionalizar a polícia no Brasil. Tampouco a cidadania quer aposentadorias diferenciadas ou privilégios, tais como os 16 salários pagos aos funcionários do BNDES, auxílios-moradia sem justificação e educação paga para filhos de juízes. Deseja uma segurança pública forte e uma política feita em bases de honestidade.
A cidadania demanda que o governo Bolsonaro abra a caixa de Pandora dos privilégios no Brasil. De forma ampla e transparente. E, passo seguinte, comece a cortá-los. Doa a quem doer. Não será uma batalha fácil. Não há aqui, no meu texto, uma intenção de oposição ao serviço público, que é mais do que necessário para a cidadania. Não podemos, contudo, viver num condomínio em que os moradores trabalham para os funcionários, e não o contrário.
Em junho, em artigo que publiquei na IstoÉ, afirmei que as eleições de 2018 não resolveriam os nossos problemas. Não deverão resolver, sobretudo, porque são questões incrustadas em nossa cultura há séculos. Ao longo do tempo mudou a narrativa, mas não o propósito de tutelar uma cidadania carente de educação. No entanto, a tomada de decisão do eleitorado apontou uma nova direção: a luta contra o privilégio e a favor da subordinação do Estado aos interesses da sociedade. Essa é a mensagem que veio das urnas e que Jair Bolsonaro deve receber como sus principal missão.
*MURILLO DE ARAGÃO É ESCRITOR, CIENTISTA POLÍTICO, DOUTOR EM SOCIOLOGIA (UNB) E PROFESSOR DA COLUMBIA UNIVERSITY (NOVA YORK).

O Estado de São Paulo