Por José Nêumanne
Para o jornalista J. R. Guzzo, o reajuste reivindicado pelos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e aprovado pelo Senado “é uma coisa de submundo, uma expressão de tudo o que existe de pior nesse Brasil velho, subdesenvolvido, concentrador de renda, corrompido até o fundo da alma, trapaceiro, parasita, que faz a nossa desgraça de todos os dias. Bolsonaro estaria começando muito mal, realmente, se não tivesse falado nada. Os 58 milhões de votos que recebeu foram contra isso, não a favor”.
O colunista da revista Veja, protagonista da semana da série Nêumanne entrevista neste blog, concordou com a frase polêmica do presidente eleito de que neste país há direitos demais e empregos de menos. Conforme Guzzo, “isso já foi dito por um monte de gente boa, um monte de vezes, e reflete exatamente a palhaçada hipócrita dos nossos 10 milhões de leis, ou sabe lá Deus quantas. Criam direitos para tudo o que se possa imaginar, quase sempre pagos com dinheiro do contribuinte – dinheiro que na maioria das vezes simplesmente não existe na vida real. Boa parte deles não pode ser desfrutada pelos beneficiários. Outra parte é pura safadeza para encher o bolso da casta mais alta do serviço público. Todos partem de uma base viciada: a ideia de que o poder público tem a capacidade de criar benefícios materiais assinando um pedaço de papel. Não funciona assim”.
O paulistano José Roberto Guzzo é jornalista e atua com assiduidade em redes sociais, fazendo muito sucesso com seus posts no Twitter. Começou a carreira de comandante de redações em 1964, como subsecretário da edição paulista do jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Foi para a Editora Abril em 1968, tendo feito parte da equipe original da revista Veja, ajudando a criar o estilo de texto nela adotado. Dirigiu a redação dos anos de 1976 a 1991, parte dos quais também dirigindo a revista de economia Exame. Em agosto desse ano, passou a revezar com Roberto Pompeu de Toledo a última página da Veja. Em 2014, quando se tornou membro do Conselho Editorial da Abril, ao qual não mais pertence, apresentou na Veja.com um programa veiculado na TVeja. Atualmente é colunista nas revistas Veja e Exame.
Dez perguntas para o jornalista J. R. Guzzo
Nêumanne – O presidente eleito, Jair Bolsonaro, está sendo acusado por muitos coleguinhas nossos por, na visão deles, estar criando problemas e transtornos demais para a transição do governo moribundo de Michel Temer para a futura gestão dele, escolhido por mais de 56 milhões de eleitores. Qual é sua opinião sobre esse quiproquó? Quem tem razão?
Guzzo – Acho que ninguém tem razão, ou deixa de ter razão, porque não há quiproquó nenhum. O que há é um presidente eleito se comportando como um presidente eleito. Alguma coisa ele precisa já ir fazendo, pois daqui a pouco mais de um mês vai chefiar o governo. Como você diz, a gestão Temer já está tirando as medidas para lhe fazerem o caixão, não dá para esperar até o enterro e só então começar o trabalho. Todos esses problemas gravíssimos que os jornalistas levam ao noticiário têm a seguinte relevância: zero.
N – Entre as frases ditas por Bolsonaro em suas aparições nas redes sociais, que se tornaram uma marca de sua campanha, está uma, que é indesmentível, mas considerada polêmica pela intelligentsia e parte da diligente companheirada dos meios de comunicação. Ela pode ser resumida num lema: “O Brasil tem direitos demais e empregos de menos”. O senhor concorda com o presidente eleito ou com seus críticos,nesse particular
G. Eu concordo inteiramente. O novo presidente está apenas apresentando um fato. Isso já foi dito por um monte de gente boa, um monte de vezes, e reflete exatamente a palhaçada hipócrita dos nossos 10 milhões de leis, ou sabe lá Deus quantas. Criam direitos para tudo o que se possa imaginar, quase sempre pagos com dinheiro do contribuinte – dinheiro que na maioria das vezes simplesmente não existe na vida real. Boa parte deles não pode ser desfrutada pelos beneficiários. Outra parte é pura safadeza para encher o bolso da casta mais alta do serviço público. Todos partem de uma base viciada: a ideia de que o poder público tem a capacidade de criar benefícios materiais assinando um pedaço de papel. Não funciona assim.
N – Na mesma ocasião, o autor da frase se sentiu constrangido a assegurar que cumprirá todos os deveres que constam da Constituição de 1988, o que seria escusado dizer, de vez que terá de jurá-lo na posse e já tem afirmado. O senhor acha que ele agiu corretamente ao explicitá-lo mais uma vez ou que, a esta altura, já seria até dispensável?
G – Acho que fez muito bem. Vai fazer o quê? O homem é acusado todo dia de ser um ditador à espera do dia da posse. Se não ficar falando que vai, sim, respeitar a Constituição, vão dizer que ele não tem compromisso com o Estado de Direito. Então ele fala o óbvio, pois se não falar o óbvio vai ser cobrado. Outro presidente não precisaria dizer nada disso. Bolsonaro precisa.
N – Em sua primeira visita a Brasília, o deputado e capitão que ganhou a eleição participou de uma solenidade comemorativa dos 30 anos da Constituição, que Ulysses Guimarães, líder da resistência civil à ditadura militar, chamava de “cidadã”. Ali ouviu muitas juras hipócritas e muitas loas à Carta Magna. O senhor acha que, como dizem os comentaristas esportivos, a Constituição está realmente com “essa bola toda”?
G – Na minha opinião, essa Constituição não está com bola nenhuma. Ela tem de ser respeitada porque está em vigor e não existe outra. Também acho que o novo governo vai cumprir tudo o que está escrito lá, ou aprovar no Congresso reformas que mudem o seu texto. Mas muito pouca gente de carne e osso estaria disposta a dar sequer uma volta no quarteirão em sua defesa.
N – Seja qual for a opinião que o senhor ou eu tenhamos sobre a Constituição, ela terá de ser cumprida, pois, afinal, o primeiro dever de qualquer governante é se enquadrar na moldura jurídica que ela constitui. O senhor acredita que o eleito terá condições de cumprir o que prometeu e se espera dele, sob a égide do documento produzido pelos congressistas, e não por uma Assembleia Constituinte exclusiva, como, acho, deveria ter sido?
G – Acho que dá para fazer muita coisa do que Bolsonaro prometeu ou anunciou na campanha eleitoral por meio de reformas na Constituição. A maioria do eleitorado acaba de dizer, justamente, que quer essas mudanças – foi para isso que elegeu o homem. Seria bom, a propósito, prestar atenção à possibilidade de que as redes sociais não se tenham desmanchado no dia 28 de outubro. Podem continuar em ação durante o próximo governo, e podem levar sua voz ao Congresso. Já fizeram isso na Lei da Ficha Limpa.
N – Na ida a Brasília, o presidente eleito cumpriu mais um dever ao apelar para o Senado não aprovar o reajuste exigido e, o que é pior, negociado com os senadores,amentando os subsídios dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, com prejuízo,calculado por baixo, de R$ 4 bilhões para um Tesouro Nacional depauperado e numa crise econômica que convive com 14 milhões de trabalhadores desempregados?
G – Sim, cumpriu o seu dever. Na verdade, não poderia ter optado por não dizer nada. Se ficasse calado, seria um cúmplice, ao menos por omissão, desse assalto de beira de estrada contra a população brasileira. O aumento é uma coisa de submundo, uma expressão de tudo o que existe de pior nesse Brasil velho, subdesenvolvido, concentrador de renda, corrompido até o fundo da alma, trapaceiro, parasita, que faz a nossa desgraça de todos os dias. Bolsonaro estaria começando muito mal, realmente, se não tivesse falado nada. Os 58 milhões de votos que recebeu foram contra isso, não a favor.
N – Seja qual for a opinião que o senhor ou eu tenhamos sobre a Constituição, ela terá de ser cumprida, pois, afinal, o primeiro dever de qualquer governante é se enquadrar na moldura jurídica que ela constitui. O senhor acredita que o eleito terá condições de cumprir o que prometeu e se espera dele sob a égide do documento produzido pelos congressistas, e não por uma Assembleia Constituinte exclusiva, como, acho, deveria ter sido?
G – Acho que dá para fazer muita coisa do que Bolsonaro prometeu ou anunciou na campanha eleitoral através de reformas na Constituição. A maioria do eleitorado acaba de dizer, justamente, que quer essas mudanças — foi para isso que elegeu o homem. Seria bom, a propósito, prestar atenção à possibilidade de que as redes sociais não tenham se desmanchado no dia 28 de outubro. Podem continuar em ação durante o próximo governo, e podem levar sua voz ao Congresso. Já fizeram isso na Lei da Ficha Limpa.
N – No dia seguinte à aprovação pelo Senado do reajuste para os “supremos”, o mesmo Senado aprovou uma medida provisória encaminhada pelo presidente Michel Temer entregando de mão beijada benesses às montadoras de automóveis, que vêm recebendo tais prebendas desde o governo Juscelino e, principalmente, nos três mandatos e meio dos petistas Lula e Dilma, até 2030, sem aprovação do presidente eleito nem conhecimento dos dois próximos a serem eleitos depois de cumprido o mandato deste até a data-limite da renúncia fiscal. O que, a seu ver, provocou isso: generosidade, cumplicidade ou mera falta de pudor?
G – Generosidade não é, obviamente. Um Congresso e um resto de governo que estarão enterrados no dia 1.º de janeiro de 2019 não deveriam, pura e simplesmente, ter o direito de fazer isso. Não estão criando problemas para “o governo Bolsonaro”, como diz a imprensa. Estão criando problemas, isso sim, para o pobre diabo que vai pagar por cada centavo disso tudo nos próximos anos. É desse jeito que o Brasil vem sendo governado há décadas – com a mentalidade, os métodos e as ações de governantes que ganham a vida por meio do crime.
N – Depois do episódio, Bolsonaro desmarcou os encontros marcados com o presidente do Senado, Eunício Oliveira, responsável pelas despesas do contribuinte nas duas votações, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que anunciou que pretende colaborar com o novo governo. O senhor acha que a atitude do deputado e capitão foi intempestiva ou adequada?
- G. Falar o quê, com esses caras? Você falaria, sabendo quem eles são e o que eles fazem? Nada, absolutamente nada, que for contra o mínimo interesse deles será levado adiante. Pura perda de tempo.
N – Flávio Bolsonaro, filho do presidente eleito e feito senador pelo Estado do Rio de Janeiro em 7 de outubro passado, já anunciou que admite conversar com o emedebista Renan Calheiros, que se reelegeu e apoiou o filho governador reeleito, Renan Filho, em Alagoas. Este é um aceno de boa vontade natural do ganhador ou um gesto arriscado?
G – Bolsonaro foi eleito para governar o Brasil, não a Suécia. Tem de lidar com o que existe aí. Renan é Brasil – ele e mais um monte de gente. Fazer o quê? Não dá para o presidente transformar o Palácio do Planalto num convento beneditino, onde só poderão entrar os justos, os puros e os patriotas. A única coisa que dá para fazer com essa gente é conseguir abater ao máximo o seu custo. É a velha história: dar uma canseira para eles deixarem o mais barato possível.
N – O senhor quer, confia e conta com a possibilidade de Jair Bolsonaro desmontar as bombas de efeito prolongado deixadas pelas gestões anteriores do PT e do MDB, em seu mandato de quatro anos, já que anunciou o fim da reeleição? E por falar nisso, o que acha da proposta dele nesse sentido?
G – Acredito que consiga desmontar umas coisas, outras não. Já estaria de bom tamanho se pudesse desarmar metade das bombas, pois em geral não se desarma nenhuma. Quanto à ideia de Bolsonaro não procurar a re-eleição: acho uma excelente notícia para o Brasil e para ele próprio. FHC, Lula e Dilma, formosos democratas antifascistas, colocaram seus governos, e o erário, a serviço permanente da própria reeleição. O militar autoritário, totalitário, defensor das ditaduras, etc., é o primeiro a adotar uma atitude diferente. Se ficar mesmo nessa posição, vai dar um belo cala-boca na oposição, nos intelectuais, nos artistas de novela e no New York Times. Vai ser um presidente mais forte do que os seus três antecessores. Vai dever menos ao Congresso. Vai estar menos vulnerável a pressões para fazer o mal e mais estimulado para fazer o certo.
O Estado de São Paulo