Buscar clareza e coerência em planos, projetos e ações pode ser algo muito difícil ou impossível em meio a este mal-estar generalizado contra o “sistema”, quando mapas de voo não existem ou são trocados e retocados ao sabor das circunstâncias, como vimos com os programas na última campanha presidencial. Personagens antes evidentemente postos à margem passam a protagonistas, figuras da tradição soletram apressadamente o novo vocabulário “antiestablishment”, tendências e visões de mundo se misturam sem muita lógica e fazem nascer um mundo mais imprevisível do que o habitual.
Examinemos algumas referências notórias do bloco vitorioso em 28 de outubro. O intelectual ultraliberal, ele próprio um emblema da reforma que se quer imprimir à economia, promete-nos uma “sociedade aberta”, que não se sabe como conciliar com a retórica repressiva do líder político que avaliza perante os “mercados”. Esse mesmo líder, de formação corporativa e, à sua maneira, laica, escora-se em apoiadores religiosos que não raro parecem querer guiar-se por uma noção arcaica de “poder direto”, ou quase isso, na pretensão de moldar e controlar, por via legislativa, costumes e comportamentos que países livres delegam ao arbítrio dos indivíduos. E não por acaso uma anti-ideologia de gênero, tão confusa e mal explicada quanto sua antípoda, ameaça trazer prejuízos generalizados para os direitos civis.
Mas não é só. Um anticomunismo extravagante pretende servir de cimento ao novo bloco: uma dessas ideias flagrantemente fora de lugar, incapazes de criar um sistema de orientação para a sociedade e o próprio Estado, uma vez que temos os pés e a cabeça projetados muito além da guerra fria e da contraposição entre ordens antagônicas que ela supunha. Não se pode imaginar, por exemplo, que uma anacrônica Cuba nos ameace de algum modo, como modelo de transformação ou de organização social, ou que a verdadeira revolução comunista do século 20 tenha ocorrido em 1949, e não em 1917, de tal forma que devêssemos agora desafiar o dragão chinês, quando antes tínhamos de nos alinhar automaticamente contra o bolchevismo russo.
Esse emaranhado de ideias e situações, hoje envolto numa pesada capa de chumbo ideológica, tem dado corpo a debates infindáveis e muito pouco produtivos no plano da chamada guerra de culturas ou de valores. Em geral, o palco é o fornecido pelas redes, o esquematismo é a regra, os contrastes se extremam até o ponto da caricatura e da demonização. E quando entramos com ingenuidade nesse conflito tal como ele nos é dado, terminamos por nos vestir com apetrechos de outrora, como se “fascistas” e “comunistas” estivessem fadados a se engalfinhar indefinidamente nas ruas virtuais e – pior ainda – não virtuais, fazendo confluir potencialmente a violência simbólica e a física.
Há, obviamente, quem ganhe e quem perca com a atmosfera de conflito “mortal” entre valores. Ganham sobretudo os que apostam na degradação da vida democrática tal como se configurou nas instituições e nos procedimentos estabelecidos a partir da Reforma, do Iluminismo e das revoluções liberais do século 18, em cuja sequência cabe inserir a ideia moderna de esquerda e o próprio marxismo. Este último – não nos esqueçamos –, ao surgir como expressão dos setores subalternos do mundo industrial, pode ser entendido como uma potente heresia do liberalismo ou, em outras palavras, como a ala “esquerda”, mais extrema, dos processos de secularização e laicização, de modo que não é possível extirpá-lo da cena pública como indesejável elemento de perturbação.
Intrinsecamente plural, aliás, tal próprio processo de secularização não pode ser pensado como cancelamento da “ilusão religiosa” ou simples afirmação do ateísmo. As religiões, de fato, não são expressão da infância da humanidade ou dos períodos menos iluminados pelas ciências e pelas correntes radicais do humanismo. Se um valor estratégico como a tolerância, em todos os seus múltiplos sentidos, nasce historicamente como solução para as guerras de religião, confinando esta última à esfera privada e desligando-a dos poderes temporais, o vigoroso retorno da dimensão religiosa a que temos assistido assinala uma inflexão interessantíssima, a ser pensada e vivida como possibilidade de aprofundamento da nossa humanidade comum.
Na verdade, o moderno laicismo nada tem de “ateu”, ainda que, sem dúvida, incorpore plenamente os que não creem. Nutre-se do pleno reconhecimento do papel público das religiões, aceitando alguns de seus princípios como fontes constitutivas do “partido da liberdade do espírito”, para usar uma expressão do socialismo democrático contemporâneo de vocação nitidamente ocidental. E por isso aquele tipo de laicismo perde com as instrumentalizações ideológicas rasteiras do fenômeno religioso, que suprimem ou dificultam o diálogo e a compreensão mútua. Perde, em resumo, com a tal guerra de valores, bem como com os anátemas e as exclusões que ela incessantemente repõe em circulação.
Difícil exagerar as dificuldades que teremos à frente. Alternativas políticas ou econômicas propriamente ditas, que, mesmo operacionalmente imprecisas, ambicionam mudar a face do capitalismo brasileiro, têm convivido no espaço público com delicados temas éticos, agitados muitas vezes de forma superficial, quando não leviana, à maneira de memes de internet ou bravatas politicamente incorretas. Tais aspectos eticamente relevantes também deixam marca em políticas públicas que darão um sentido regressivo ou inovador às nossas relações sociais cotidianas, ao modo como nos comportamos uns com os outros. Os democratas devem não só avaliar os resultados práticos da reforma que se pretende, como também impedir que se enxovalhe a ideia da História como criação acidentada, mas permanente, de valores já irrenunciáveis, como, entre outros, o da tolerância.
*TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL
O Estado de São Paulo