Desde o 28 de outubro, dia do triunfo de Bolsonaro, os intelectuais universitários — ou, ao menos, grande parte deles — entraram em transe. Uma aflição incontida os leva a acreditar nos artefatos retóricos que produziram antes do desenlace, de olhos postos no embate eleitoral. Pelo que vi e ouvi, nossos acadêmicos creem que um “neofascista” tomou o poder e consolidou o “golpe do impeachment”.
De fato, acreditam que nossa democracia implodiu, e já vivemos sob um embrionário regime de força. Não vale a pena refutar ideias tão extravagantes. Mais útil é investigar como pessoas cultas são capazes de ceder a tais desvarios. Suspeito que isso tenha relação direta com o medo — mas não exatamente o medo do autoritarismo de Bolsonaro.
Intelectuais, no sentido em que uso aqui o termo, geralmente são funcionários públicos.
Suas vidas, seus salários e suas aposentadorias dependem do Estado. Medo de perder emprego ou renda — eis uma hipótese tentadora para explicar o fenômeno em curso. Se a chama do autoritarismo pulveriza a democracia, nenhuma lei ou tribunal protegeria os direitos dessa parcela do funcionalismo encarregada de pensar. O medo, porém, estende-se bem além disso.
Bolsonaro foi alvo de mais manifestos de intelectuais e artistas que o comum dos candidatos não petistas. A tradição moderna de manifestos eleitorais merece exame sociológico.
Artistas os assinam pois cultivam a reconfortante ilusão de que seus fãs têm interesse em saber o que eles pensam. Intelectuais, por outro lado, têm plena ciência de que suas preferências eleitorais não mudam nem um mísero voto, em Belford Roxo ou no Leblon.
Ao contrário do que parece, eles não assinam manifestos para impulsionar um candidato ou partido, mas para beneficiarem a si próprios.
Manifestos oferecem prestígio a quem os firma — e prestígio é o que buscam, acima de tudo, os intelectuais. A assinatura no pé do texto reafirma uma conexão ideológica, renova um tecido de cumplicidades sentimentais, valoriza um nome por meio da associação a outros e o recoloca em circulação no mercado das ideias. É uma iniciativa de marketing heterodoxo que difunde uma marca e, potencialmente, amplia oportunidades profissionais.
A classe dos caçadores de prestígio teme a perda coletiva de prestígio sinalizada pela ascensão de Bolsonaro ao Planalto.
O governo central exerce forte influência sobre o valor de mercado dos intelectuais universitários. Do poder público depende o financiamento das universidades federais. Ministérios e empresas estatais recrutam na academia assessores para seus órgãos de direção e incontáveis comissões técnicas. Os partidos governistas recorrem aos conselhos de acadêmicos. Nas mesas de jantares de Brasília, administradores públicos, políticos e empresários reservam lugares para os pensadores profissionais. O governo Bolsonaro tende a promover uma desvalorização massiva dos intelectuais. Daí decorre o pânico viscoso que goteja nas universidades.
Desde o fim da ditadura militar, o fenômeno só tem um precedente, de escassa relevância, no efêmero governo Collor. Na principal transição política da Nova República, de FH a Lula, a classe dos intelectuais conservou intacto seu prestígio — ainda que, naturalmente, tenham ocorrido transferências de valor no interior dela. O cenário muda por completo quando o Planalto passa ao controle de um governo hostil à imensa maioria dos intelectuais universitários. O pânico tem sentido, mas não o sentido expresso nas palavras doídas dos intelectuais.
O governo Bolsonaro certamente desafiará tanto as instituições democráticas quanto a plena vigência das liberdades públicas e individuais. A democracia, porém, não foi abolida.
Não vivemos num “regime de exceção” instalado pelo “golpe do impeachment” e sedimentado com o triunfo do candidato de extrema direita. Os gritos roucos de alerta que emanam das universidades são traduções equívocas da percepção dos intelectuais de que lhes fecham as portas de uma casa acolhedora. Os intelectuais enganam a si mesmos — e, no processo, enganam a opinião pública.
O Globo