Roger Moore, Sean Connery, Daniel Craig e Pierce Brosnan
Depois de derrotar Dr. No, Blofeld, Scaramanga, Goldfinger e outros vilões, o agente 007 tenta sobreviver às patrulhas do politicamente correto
Omaior e mais duradouro mito da cultura pop nasceu na manhã do dia 15 de janeiro de 1952. O jornalista (e ex-oficial de Inteligência da Marinha britânica) Ian Fleming, de 43 anos, observava tenso o oceano à sua frente. O dia de seu casamento com Anne Geraldine Charteris se aproximava. E ela estava grávida de seu primeiro filho.
Do terraço de sua casa de verão na Jamaica (que ele batizou como GoldenEye), Fleming acendeu o primeiro dos 70 cigarros que fumava a cada dia. Desceu a escada para sua pequena praia particular, calçou os pés de pato, colocou a máscara e mergulhou nas águas quentes do Mar do Caribe.
Na volta, ele encontrou a noiva no jardim. Anne pintava uma de suas aquarelas marinhas e percebeu a tensão no olhar do futuro marido. “Ian, você está uma pilha de nervos. Por que você não tenta se acalmar escrevendo alguma coisa?”
Fleming foi até sua escrivaninha num canto do quarto de dormir. Colocou uma folha de papel em sua máquina de escrever dourada. E decidiu parar de adiar seu velho plano de criar “a novela de espionagem para acabar com todas as novelas de espionagem”. Acendeu outro cigarro. A “qualquer coisa” que Anne pediu que escrevesse começou assim:
“O cheiro, a fumaça e o suor de um cassino são nauseantes às três da madrugada. Nessa hora o desgaste produzido pelo alto jogo — uma mistura de ambição e tensão nervosa — se torna insuportável e os sentidos despertam e se revoltam contra isso. James Bond de repente percebeu que estava cansado.”
Nascia Casino Royale, o romance que apresentava um espião ainda imaturo, mas já com a licença para matar número 007. Com essas frases, Ian Fleming daria início a uma saga que vai completar 70 anos em 2022. A cada ano fugiria do inverno britânico para o sol de GoldenEye, onde escreveria mais um livro da série.
A popularidade dos livros de James Bond foi crescendo aos poucos. Virou um fenômeno em 1961, quando o popularíssimo ex-presidente John Kennedy foi convidado pela revista Life para listar seus dez livros favoritos. Em nono lugar estava From Russia With Love (conhecido no Brasil como Moscou Contra 007). Com a ajuda do presidente americano, os livros de Ian Fleming viraram best-seller internacional. E o mito daria um novo grande salto de grandeza no ano seguinte, com o lançamento do primeiro filme da série — Dr. No (aqui, O Satânico Dr. No), com um jovem e pouco conhecido ator escocês chamado Sean Connery.
James Bond ficou tão grande que passou a viver três vidas paralelas: uma na literatura, outra nos quadrinhos e (a mais grandiosa) no cinema. Entre romances e coletâneas de contos, Fleming escreveu 14 livros até ser abatido por um enfarte em 1964. Nos anos 1980, o britânico John Gardner se tornou o novo autor oficial das aventuras de 007, e escreveu dois livros a mais que Fleming. Em 1997, foi substituído pelo americano Raymond Benson até 2002.
Gardner e Benson modernizaram o personagem e o adaptaram aos novos tempos. Mas não entusiasmaram. A partir de 2008, os detentores dos direitos de Bond passaram a entregar a autoria dos livros a alguns dos mais bem-sucedidos escritores dos EUA e do Reino Unido, um de cada vez. A maioria desses autores optou por retratar Bond no seu início de carreira. No último romance, Forever and a Day (de Anthony Horowitz), somos levados a imaginar um jovem James Bond antes mesmo de receber sua licença para matar. O próximo romance, também escrito por Horowitz e ainda sem título, já tem data de lançamento: maio de 2022.
A segunda vida de Bond aconteceu em tiras de quadrinhos, lançadas a partir de 1958. A versão original, desenhada por John McLusky, era bem convencional. Em 1966, McLusky foi substituído pelo chinês (refugiado na Austrália) Yaroslav Horak, que levou as tiras ao estado de arte, com seu estilo único, chapado e sem meios-tons.
Horak e seu parceiro roteirista Jim Lawrence publicaram um total de 33 aventuras de James Bond, a grande maioria delas completamente desligada das histórias dos livros ou dos filmes. Hoje, a editora Dynamite lança revistas em quadrinhos de James Bond de todos os jeitos — aventuras atuais, as origens do herói, readaptações dos livros de Fleming, etc. Nos quadrinhos, o mito Bond está forte como nunca.
É aqui que chegamos à terceira vida de James Bond, a mais popular. No cinema, o personagem criado por Ian Fleming já arrecadou US$ 7,1 bilhões em bilheteria. O Bond das telas se tornou um evento global, aguardado ansiosamente. Mas começou como um filme barato, rodado não muito longe da casa de Ian Fleming – O Satânico Dr. No (1962),
A fase Sean Connery durou de 1962 a 1967 e estabeleceu os princípios da lenda. O modelo de masculinidade, a elegância a qualquer custo, o martíni “batido, não mexido”, as Bond girls abatidas em série pelo irresistível herói, os vilões afetados, os gadgets inventados por Q, as ordens do severo comandante M, as piadinhas da secretária Moneypenny, o bordão “My name is Bond, James Bond”, os carros velozes e armados.
Connery se cansou do personagem logo na adaptação de um dos mais interessantes livros de Fleming, A Serviço de Sua Majestade (1969). Foi substituído por um ator amador e desconhecido, o australiano George Lazenby. O filme foi bem-sucedido, mas Lazenby não emplacou. Sean Connery, já de peruca e barriguinha saliente, voltou para um dos menos marcantes episódios da série, Os Diamantes São Eternos (1971).
Começa então a era Roger Moore. Entre 1973 e 1985, James Bond se transforma numa paródia de si mesmo, um personagem cômico e vazio. Existe quase uma unanimidade em apontar 007 Contra o Foguete da Morte (1979), parcialmente filmado no Brasil, como o maior desastre de toda a série. Para os fãs, foi difícil ver Bond vestido como um gaúcho ou pendurado num cipó soltando o grito de Tarzan. Mas ninguém fez mais filmes de James Bond que Roger Moore — sete no total. Aposentou-se do papel com 58 anos, tendo de ser substituído por um dublê em praticamente todas as cenas de ação.
A comédia acabou quando Moore foi substituído por Timothy Dalton. Fez apenas dois filmes e não entusiasmou. Pierce Brosnan seria James Bond a partir de 1995. A qualidade dos filmes melhorou muito, a produção se tornou mais refinada e as cenas de ação puderam contar com a tecnologia digital. A contragosto, Bond passou a ser chefiado por uma “M” mulher (Judi Dench). Brosnan teve seu fã-clube fiel, mas era tão artificialmente atraente que parecia ser um modelo fingindo ser James Bond. Ele se aposentou no espalhafatoso Die Another Day (2002).
A essa altura, a franquia já tinha 40 anos de idade. Os produtores resolveram recomeçar do zero, com outro ator pouco conhecido, mas que, ao contrário de Brosnan, parecia gente de verdade. E, quando parecia definitivamente ultrapassada, a série conheceu sua melhor fase com Daniel Craig. O Bond de Craig é o mais brutal e ao mesmo tempo o mais vulnerável. O super-herói deu lugar a um ser humano que sofreu um mero enfarte logo no seu primeiro filme. Casino Royale (2006) foi um reboot na série, aproveitando o mesmo livro de estreia de Ian Fleming. O mito Bond renasceu mais forte que nunca.
O ponto alto da era Craig foi o ambicioso Skyfall (2012) e suas evidentes qualidades artísticas. O personagem que todos achavam conhecer tão bem desaba no alcoolismo, faz sua psicanálise e se dá o direito de chorar ao perder a figura maternal de sua chefe M. SkyFall conseguiu ser o melhor filme da série em todos os sentidos, e o primeiro (e até agora único) a ultrapassar a marca do US$ 1 bilhão em bilheteria. Craig carregou Bond a um novo status na mitologia do cinema. E ainda ajudou a limpar a reputação de seus antecessores.
Não é segredo para ninguém o passado mulherengo do agente 007. Especialmente no início, as Bond girls se entregavam em fila ao agente e sumiam para dar lugar à próxima. Aconteceram exceções, como a Vesper, de Casino Royale, e a Tracy, de A Serviço de Sua Majestade, com as quais o herói se envolveu de verdade. Mas na maioria as mulheres de Bond surgiam para exibir a beleza e acabar na cama com o espião que não negava fogo. Um dos exemplos mais caricaturais dessa superficialidade foi Denise Richards interpretando uma cientista de bermudinha justa e camiseta decotada em The World Is Not Enough (1999), com Pierce Brosnan.
Algumas cenas chegaram a ser francamente ofensivas. Como as duas nas quais atrizes têm seus braços torcidos em cenas de tortura explícita (em Dr. No e Octopussy). Ou quando Jill St. John passa Diamonds Are Forever praticamente inteiro num sumário biquíni branco sem muita razão dramática para isso. Ou ainda quando Bond (ainda Sean Connery) sutilmente se propõe a “curar” Pussy Galore (Honor Blackman) de seu lesbianismo em Goldfinger (1964). O Bond de Daniel Craig respeitou as mulheres que encontrou e até se casou. Simbolicamente pagou pelos pecados dos Bonds anteriores levando uma surra nos genitais logo em seu primeiro filme.
Os inimigos de 007 nos filmes deixaram de ser os regimes comunistas e passaram a ser megaorganizações criminosas
Não poderiam faltar as acusações de racismo. Live and Let Die mostra negros caribenhos de maneira estereotipada (como praticantes de vodu). Ian Fleming tinha um preconceito confesso contra orientais, e o coreano Oddjob (de Goldfinger) é mostrado como um monstro que comia gatos no almoço. Mas são exceções. Quase todos os vilões de Bond nos filmes são brancos esnobes. O mais conhecido, Ernst Stavro Blofeld, tinha até um gato branco para não deixar dúvidas de sua identidade racial.
O James Bond dos filmes é bem menos político que o dos livros. Para evitar problemas de rejeição no mercado internacional, os inimigos de 007 nos filmes deixaram de ser os regimes comunistas e passaram a ser megaorganizações criminosas internacionais, como a Spectre, capazes de chantagear o mundo com ameaças apocalípticas.
Aconteceram exceções nas telas. O Bond de Timothy Dalton enfrentou os soviéticos em Living Daylights (1987) ironicamente se aliando aos guerrilheiros do Afeganistão (que mais tarde derrotariam os britânicos). O Bond de Pierce Brosnan passou maus momentos preso pela ditadura da Coreia do Norte em Die Another Day (2002). De resto, praticamente todos os seus adversários foram magnatas doentios de sotaque misterioso enfiados em bases secretas gigantescas que explodiram no final do filme. Em Tomorrow Never Dies (1997), por exemplo, Bond (Brosnan) se alia a uma agente chinesa para combater um magnata da imprensa (vivido por Jonathan Price), fabricante de fake news. Um dos mais equivocados envolvimentos de Bond com política aconteceu em Quantum of Solace (2008), que chegou a dar uma piscadinha de simpatia ao chavismo venezuelano. O filme foi o maior fracasso da era Daniel Craig.
Agora, Craig terá de ser substituído. E o nome de seu sucessor ainda é um mistério. É o momento em que as insaciáveis patrulhas da correção política atacam, procurando influenciar os produtores para uma mudança de impacto. O corpo e a alma de James Bond estão sendo disputados.
Já falaram na possibilidade de um próximo James Bond ser negro, interpretado por Idris Elba. Elba é um excelente ator, mas James Bond é um cidadão britânico (nascido na Alemanha), branco, filho de um escocês com uma suíça. Já chegaram a falar num James Bond gay, e a sugerir o ator Rupert Everett para o papel. Everett poderia fazer o papel de um espião gay, mas Bond é hétero, e a humanidade inteira sabe disso.
O Bond de Daniel Craig começa o novo No Time to Die como um agente aposentado. Sua licença para matar foi transferida (com o perdão pelo spoiler) para Nomi, vivida pela atriz negra Lashana Lynch. Nomi é a nova dona da identidade 007. Já teve gente sugerindo que o velho agente branco e machista seja enterrado de vez e ceda seu lugar a uma mulher negra nos próximos filmes de James Bond.
Entrevistado pela revista Radio Times, Daniel Craig se posicionou diplomaticamente contra essa possibilidade. “Deveria haver simplesmente papéis melhores para mulheres e atores de cor. Por que uma mulher deveria interpretar James Bond quando poderiam existir papéis tão bons quanto os de James Bond, mas para uma mulher?”
Barbara Broccoli, produtora da série, já vetou a opção feminina para a próxima encarnação de Bond. “Ele pode ser de qualquer cor, mas é homem.” Qualquer cor? Então o personagem que Ian Fleming criou naquela manhã de 1952 virou uma espécie de celular que você pode cobrir com capinhas coloridas, dependendo do dia? Desde 1962, parte da população terrestre vai ao cinema para ver um personagem que tem uma história e características próprias. Desrespeitar essas características por motivos ideológicos banais vai ser um desrespeito aos fãs. E talvez o início do fim de um ícone da cultura pop amado por bilhões ao redor do planeta.
A questão não afeta só os fãs de James Bond. O que está em jogo é o poder de uma minoria de ativistas influentes aniquilar nossa preciosa herança cultural. Hoje, é Bond. Amanhã, célebres homens brancos da ficção, como Dom Quixote, Ulisses, Sherlock Holmes, o Conde Drácula, Harry Potter, Dom Casmurro, Hamlet, Tarzan ou Robinson Crusoé, poderão virar mulheres, negros, trans ou seja lá o que esses patrulheiros de ideias elegerem como a vítima da hora.
Revista Oeste