sexta-feira, 29 de outubro de 2021

"Round 6 e o problema do anticapitalismo", por Brendan O'Neill, da Spiked

 

Série Round 6, da Netflix | Ilustração: Naomi Akimoto Iria


O bombardeamento que a Netflix tem feito de uma parábola hiperviolenta da brutalidade do capitalismo está totalmente de acordo com o espírito exaurido do capitalismo contemporâneo


Ocapitalismo finalmente encontrou um rival à altura. Esqueça a revolução comunista ou a morte do planeta pelo aquecimento, ardentemente antecipada pelas classes médias depois de o capitalismo vomitar tanto carbono na atmosfera. Não foi nenhum desses abalos dos tempos que finalmente colocou a ordem capitalista de joelhos. Não, foi uma série de TV sul-coreana chamada Round 6, em que cidadãos desesperados e afundados em dívidas participam de jogos infantis até a morte, em uma tentativa de ganhar montes de dinheiro. De acordo com marxistas autoproclamados e efusivos da nova mídia millenial, esse enorme sucesso da Netflix incitou pessoas no mundo todo a se eriçar contra a ordem econômica vil sob a qual todos trabalhamos. A intensa popularidade de Round 6 é prova de que a “consciência de classe global está aumentando”, afirma um escritor marxista. Tremei, classes dominantes, as assinaturas da Netflix estão em ascensão!

A discussão sobre Round 6 se tornou ridícula. Quase tão ridícula quanto a série em si. Se você não é uma das dezenas de milhões de pessoas que devoraram essa parábola brilhante e hiperviolenta sobre a modernidade, o resumo é: 456 pessoas, endividadas, necessitadas, em situação de desespero, aceitam fazer parte de um jogo de vida ou morte. Um misterioso homem de terno os induz a ir para uma ilha onde podem ganhar muito dinheiro e resolver todos os seus problemas. Em um lugar infernal em tons pastel, com escadas sinuosas e playgrounds infantis em tamanho gigante, elas competem em tudo, de cabo de guerra a um jogo de red light, green light (que parece ser a versão sul-coreana da brincadeira brasileira de “estátua”). Se fracassarem numa prova, ou não conseguirem terminá-la em tempo”, elas morrem. Um atirador dispara contra elas ou, no caso do cabo de guerra, o jogo mais chocante da série na minha opinião, elas caem de uma plataforma elevada, despencando centenas de metros até a morte. Toda vez que um jogador é eliminado, o prêmio aumenta. A promessa para o último homem ou a última mulher que permanecer no jogo é a gorda quantia de 45,6 bilhões de wons — isto é, R$ 212,5 milhões.

Nada na série é sutil. A violência é explícita, e o sangue, vermelho vivo. Cérebros explodem, olhos são arrancados, gargantas são cortadas, ossos são quebrados. As metáforas são despejadas com tanta intensidade quanto o sangue. A coisa toda tem a sensação de um sonho erótico de um socialista universitário. A sociedade “cada um por si”? Presente. O individualismo desenfreado, tão descontrolado que as pessoas chegam a se matar por dinheiro? Presente. Capangas sem rosto de uma ordem econômica extremista? Presente. Aqui, eles vestem macacões vermelhos e máscaras pretas e usam metralhadoras para impor a hipercompetitividade de um sistema capitalista digno de história em quadrinhos desenvolvida nessa ilha estranha e demoníaca. E então descobrimos que a coisa toda está sendo feita para o entretenimento de bilionários. Usando máscaras douradas de animal, esses ricaços apostam nos jogadores e se divertem vendo quem vive e quem morre. Esses bilionários irritantes! Eu sabia que eram eles.

É quase heroicamente não original. Tem ecos de Jogos Vorazes e Battle Royale. A violência tem um quê de Tarantino. E quanto às pessoas ricas — me mostre um produto da cultura pop contemporânea em que os ricos não são maus, e eu pago 45,6 bilhões de wons. Como um jornalista observou: “Existe algum tema mais unificante na cultura pop global do que ‘o capitalismo é mau’?” Não, não existe. O que não quer dizer que Round 6 não seja boa. Ao contrário, a série é muito boa. Como milhões de outras pessoas — a Netflix afirma que 142 milhões de lares no mundo todo assistiram à série, fazendo dela o título mais visto da história da Netflix —, eu maratonei e adorei. E não só pela tensão dos jogos e pela violência de desenho animado de cada desfecho. Há também o desenvolvimento dos personagens. Em especial de Seong Gi-hun (Lee Jung-jae), o trabalhador de bicos temporários, mergulhado em dívidas, viciado em jogo, que mora com a mãe, e que é enervante de início, mas então sua história emerge. É emocionante.

Não, o problema é a discussão em torno de Round 6. É algo cada vez mais louco. Claro, existe um pânico moral, do tipo que muitas vezes faz parte da cultura popular hiperviolenta. A equipe de cuidado e proteção do Conselho de Bedfordshire, na Inglaterra, enviou um e-mail alertando educadores e pais para não permitir que as crianças assistissem à série. Dizia ter ouvido relatos de que “crianças e jovens estão copiando os jogos”. As crianças do Reino Unido estão construindo robôs gigantes que conseguem detectar quando um jogador está se mexendo, em vez de ficar parado, e instruir um atirador a disparar e matá-lo? Parece plausível. Da mesma forma, escolas de Quebec estão alertando pais para manter seus filhos longe dessa série maluca. Um psicólogo de Montreal diz que impedir as crianças de assistir não é o bastante — os pais precisam também explicar o que é o fenômeno de Round 6 e por que ele é ruim. Sim, isso não vai despertar nem um pouco o interesse das crianças…

Mas muito mais irritante que o pânico moral tem sido a euforia política. Round 6 está sendo considerada por diversos comentaristas uma denúncia brutalmente dura do capitalismo do século 21. A bíblia dos socialistas dos bairros descolados Jacobin tem um texto que explica “Why You’re Watching Squid Game” (“Por Que Você Está Assistindo a Round 6″, em tradução livre). Porque é chocante e divertido? Não porque você “se identifica com seu retrato das mazelas do capitalismo”. “A distopia de Round 6 é o mundo contemporâneo”, diz a Jacobin. Um jornalista da Vulture afirma que todos conseguimos nos conectar com os “traumas capitalistas que se fazem passar por entretenimento em Round 6”. Mas conseguimos mesmo? A vida sob o capitalismo pode ser ruim para muitas pessoas, mas eu nunca ouvi falar de trabalhadores sendo forçados a esculpir certas formas num favo de mel e levando um tiro na cabeça quando não conseguem.

Round 6 é uma alegoria do inferno capitalista”, dizem. Ela expõe “os horrores da desigualdade e da exploração modernas… e destrói o mito capitalista de que trabalhar duro garante a prosperidade”. Um marxista descreveu Round 6 como “a mais recente produção da Coreia do Sul que expõe a realidade brutal do capitalismo — a competição extrema”. Zoe Williams, no Guardian, afirma que a série deve sua popularidade às “ansiedades da vida moderna”. Não é um acidente, diz ela, que “dez anos depois da crise financeira global o mundo inteiro esteja assistindo a um drama cuja mensagem central é ‘vou conseguir pagar essa dívida? Não seria mais fácil participar de um jogo mortal?’”. Sei que a esquerda de classe média contemporânea está constantemente em busca de centelhas de radicalismo — ou, pelo menos, do que entende como radicalismo —, mas a ideia de que milhões de pessoas comendo pipoca e sentindo uma emoção fugaz ao ver pessoas morrendo seja uma expressão de descontentamento com o estágio mais recente do capitalismo me parece especialmente bizarra.

Até mesmo a Coreia do Norte está entrando na história. Sem querer ser superada pelo Guardian, pela Jacobin e por todos os demais esquerdistas que fazem fila para aclamar a exposição que Round 6 faz das realidades brutais do capitalismo, o reino ermitão insistiu que essa série sangrenta confirma quanto a Coreia do Sul e o mundo capitalista de modo geral são moralmente corruptos. “Round 6 trata da sobrevivência de uma sociedade capitalista em que você pode ganhar dinheiro se vencer por quaisquer meios; caso contrário, você morre”, afirmou o site estatal Arirang Meari. Soando quase indistinguível dos esquerdistas ocidentais aflitos que veem em Round 6 as agitações do desprezo global pelo capitalismo, o site norte-coreano aclamou Round 6 por “trazer a fúria em relação a essa sociedade injusta em que as pessoas sem dinheiro são tratadas como peças de xadrez que são movimentadas pelos ricos”. Alguém dê a esse colunista norte-coreano anônimo uma coluna no HuffPost.

É indiscutivelmente verdade que Round 6 explora os temas da desigualdade, do endividamento e do desespero. Como comentei, não há nada de sutil. Isso fica muito claro no personagem principal, Seong Gi-hun, que, como descobrimos, era funcionário numa fábrica de carros antes de perder o emprego e precisar começar a fazer trabalhos temporários como motorista. A greve que virou motim a que ele se refere quando recorda como ficou tão pobre é real — é uma referência ao fechamento da fábrica SsangYong em 2009 e aos subsequentes protestos dos funcionários contra as ações destruidoras de seus chefes. Mesmo assim, a empolgação sobre a mensagem anticapitalista de Round 6, e seu potencial de identificar a consciência de classe por meio da Netflix (!), captura quão superficial e problemático o anticapitalismo contemporâneo se tornou.

A primeira coisa a ser notada é que Round 6 é, ela mesma, um fenômeno do capitalismo do século 21. Ele enriqueceu as novas oligarquias do grupo Netflix, esses suseranos da cultura da sociedade capitalista contemporânea, a um nível extraordinário. A Bloomberg avalia que Round 6 aumentou o valor das ações da Netflix para US$ 19 bilhões. A própria Netflix afirma que a série gerou US$ 900 milhões de “valor de impacto”. Todos os aspectos de Round 6 estão sendo monetizados. É possível comprar moletons de Round 6 na Netflix; há conversas sobre um videogame; a segunda temporada parece ser uma certeza — mais “valor de impacto” para as novas oligarquias. É uma espécie curiosa de anticapitalismo que é produzido pelas, e enriquecedor para, elites capitalistas.

E então existe a questão do que o deleite político em relação a Round 6 nos diz sobre o anticapitalismo hoje. Fundamentalmente, ele confirma a que ponto o anticapitalismo se tornou um passatempo para as elites woke do Ocidente, e não um movimento sério empreendido por uma classe trabalhadora revolucionária. À medida que Round 6 tem tocado um sentimento político, é o sentimento passivo da repulsa moralista em relação ao capitalismo compartilhado por parcelas significativas das classes médias ocidentais, e não qualquer coisa parecida com a raiva proletária expressada na revolta ocorrida na Coreia do Sul em 2008 contra os chefes da fábrica de carros. Isso foi resumido de forma brilhante em um dos textos mais efusivos da Jacobin. Uma das melhores coisas de Round 6, ele diz, é que a série não apenas representa uma crítica da maneira como o capitalismo está “se apropriando da mais-valia do nosso trabalho” — que cansaço! Não, ela também mostra que os capitalistas são “sádicos promovendo uma brutalidade que se torna possível por causa de um sistema global totalmente hegemônico”.

Aqui está. A mudança de um anticapitalismo enraizado em uma compreensão histórica e revolucionária das relações sociais para um anticapitalismo alimentado pelo moralismo da classe média, por um desprezo arrogante de atitudes e comportamentos questionáveis de membros individuais da classe capitalista. Quem quer conversar sobre aquela velha ideia marxista de que o capitalismo se apropria da mais-valia do nosso trabalho quando você pode se remoer sobre a crueldade e a maldade dos ricos? Essa visão dos capitalistas como “sádicos” fica especialmente pronunciada entre os millennials que se dizem socialistas. Isso se vê em toda parte, da Novara Media, organização de mídia alternativa de esquerda independente com sede no Reino Unido, aos jovens brancos de classe média seguidores do senador norte-americano Bernie Sanders, dos protestos raivosos contra “o 1%” a todos os produtos de Hollywood e Netflix em que os ricos são sempre corruptos. Do movimento antiglobalização do fim dos anos 1990 a cada editorial do Guardian sobre o flagelo do neoliberalismo, o “anticapitalismo” foi colonizado pelas repulsas da classe média, em vez dos sentimentos revolucionários das classes trabalhadoras.

O anticapitalismo é a forma que o capitalismo assumiu

Esse é o verdadeiro atrativo político de Round 6 para a nova esquerda moralista — ela permite que os esquerdistas se deliciem com sua fantasia de que o capitalismo é a criação de indivíduos sádicos, em vez de ser uma ordem social com relações problemáticas específicas. Na violência perversa de Round 6, executada para o prazer de bilionários cobertos por máscaras douradas, eles veem sua visão do capitalismo dramatizada. Uma visão em que a ordem social e econômica passa a ser reduzida a uma relação de violência entre os ricos sádicos e os pobres miseráveis. Isso reflete a tendência anti-intelectual e, na verdade, antimarxista de boa parte da esquerda contemporânea, que se iludiu ao pensar que sua aversão pessoal em relação aos excessos do capitalismo tem qualquer coisa em comum com a luta histórica para desenvolver uma crítica revolucionária sobre a inabilidade do capitalismo de absorver todo o potencial da humanidade.   

É por isso, aliás, que não há nada contraditório em uma entidade capitalista — Netflix — ser a responsável por transformar Round 6 em um fenômeno global. O novo anticapitalismo, exatamente porque seu combustível é a repulsa passiva, em vez da revolução ativa, não representa nenhuma ameaça à ordem capitalista. Pelo contrário, ele se presta lindamente à reabilitação moral do capitalismo. A observação de que não existe “um tema mais unificante na cultura pop global do que ‘o capitalismo é ruim’” é bastante apropriada. O anticapitalismo se tornou o meio pelo qual o capitalismo tenta restaurar sua autoridade moral e sua relevância para o público do século 21. Aliás, o anticapitalismo é a forma que o capitalismo assumiu. Seja a Netflix promovendo uma parábola da brutalidade capitalista ou a Apple atacando a “supremacia branca” ou toda liderança capitalista do Ocidente se reunindo na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) nos próximos dias para lamentar o impacto tóxico da burguesia no planeta e a necessidade de controlar o crescimento econômico, falar mal do capitalismo se tornou a essência do capitalismo. A ordem capitalista é mantida hoje não por um ataque thatcherista aos oponentes socialistas, mas por meio de um mecanismo de autodepreciação capitalista — pela substituição de uma ambição econômica da velha burguesia de refazer o mundo à sua própria imagem por um desejo moralista de reordenar o mundo de acordo com o autodesprezo da burguesia do século 21. O bombardeamento que a Netflix tem feito de uma parábola hiperviolenta da brutalidade do capitalismo para dezenas de milhões de lares está totalmente de acordo com o espírito exaurido do capitalismo contemporâneo. Nas palavras de Mark Fisher: “Longe de enfraquecer o realismo capitalista, o anticapitalismo gestual na verdade o reforça”.

O único problema nessa citação de Fisher, de seu livro muito inteligente Capitalist Realism, é a palavra “gestual”. Essa visão do anticapitalismo como um gesto manipulador feito pelas próprias elites capitalistas, presumivelmente para reprimir o anticapitalismo revolucionário genuíno, corre o risco de subestimar a profundidade dos sentimentos anticapitalistas que existem dentro da classe capitalista hoje em dia. Ela não está interpretando o anticapitalismo, ela de fato o sente. Essas pessoas realmente acreditam, como Greta Thunberg, que a Revolução Industrial foi um erro, que o crescimento não deveria ser o principal objetivo da humanidade, que a África não pode se tornar como a América. Elas perderam a fé em seu próprio projeto histórico, não por cliques, downloads ou assinaturas da Netflix, mas para valer. E isso é um problema para aqueles de nós que estão tão envolvidos nos ideais de crescimento e progresso que queremos ir além das limitações do capitalismo e encontrar uma nova forma de criar um mundo de abundância. A crítica contemporânea do capitalismo é mais do que inútil para nós, porque ela se baseia na crença de que o capitalismo é pretensioso, grande e arrogante demais, em vez da leitura marxista de que o capitalismo “realizou maravilhas muito maiores do que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos e as catedrais góticas” e “conduziu expedições que ofuscaram todos os êxodos de nações e cruzadas anteriores”, mas que muito mais pode ser feito quando a humanidade assumir o controle significativo de seu destino social e econômico.

Então, por favor, veja Round 6. Você vai adorar. Mas, se você se pegar celebrando sua crítica hiperviolenta do capitalismo do século 21, é possível que você esteja mais interessado em observar passivamente a suposta imoralidade de seus indivíduos abastados do que em refletir com seriedade sobre como o mundo pode ser transformado de uma forma tão radical que alguém como Seong Gi-hun possa nunca mais existir no futuro.

Leia também “O fascismo cultural fugiu do controle”

Revista Oeste