Desde o fim de 2019 ocupando a presidência da Fundação Biblioteca Nacional, o professor de filosofia, história e teoria política Rafael Nogueira não é uma figura tão conhecida fora da academia. Do Rio de Janeiro, longe do turbilhão político de Brasília, ele comanda a mais importante biblioteca da América Latina e uma das dez maiores do mundo, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Já passaram pelo comando da instituição figuras como os escritores e jornalistas Raul Pompéia e Josué Montello, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna e o sociólogo Muniz Sodré.
Fundada em 1810 e aberta ao público em 1814, a Biblioteca Nacional tem mais de 200 anos de história e conta hoje com cerca de 9 milhões de itens em seu acervo, entre os quais livros, periódicos, partituras, discos, gravuras, CDs e manuscritos. Entre os principais documentos, estão a primeira edição de Os Lusíadas, de Luís de Camões, e dois exemplares da Bíblia de Mogúncia, impressa em 1462 por Johannes Gutenberg — marco do início da produção em massa de livros no Ocidente.
Conservador, aluno de Olavo de Carvalho, apoiador do presidente Jair Bolsonaro e simpatizante da monarquia, Nogueira sempre foi retratado, em reportagens publicadas na grande imprensa, quase como uma figura caricata. Ao assumir a Biblioteca Nacional, enfrentou resistência de um grupo de servidores de esquerda que rejeitava sua indicação. “Algumas pessoas entendem que, como passaram em um concurso e se tornaram servidores, aquilo é deles e eles representam aquilo. Essa não é a minha perspectiva”, disse a Oeste.
Nogueira afirma que seu objetivo não é fazer da Biblioteca Nacional um instrumento de propaganda a serviço do governo Bolsonaro ou da direita brasileira. Para ele, “essa absorção de tudo pela política é uma característica da esquerda”. “O presidente Jair Bolsonaro não me pediu para transformar a Biblioteca Nacional em uma instituição bolsonarista. Ele tem essa compreensão. Nós tratamos a Biblioteca Nacional como algo do Brasil inteiro.”
Leia os principais trechos da entrevista
Quando o senhor assumiu o comando da Biblioteca Nacional, houve forte reação de servidores, que chegaram a convocar uma assembleia para questionar sua indicação. Como enfrentou essa resistência e como está a situação hoje?
Enfrentei com tranquilidade. As pessoas não me conheciam, e a gente está vivendo um clima de muita agressividade nas questões políticas. Muitas das pessoas que lá trabalham não fizeram manifestação alguma. Foi um grupo pequeno. A única coisa que eu fiz foi me apresentar para os dirigentes da casa e, em seguida, chamar os líderes da manifestação para conversar. Pude, de fato, me apresentar e tirar aquela imagem que havia sido construída pela mídia, que foi uma imagem errada, distorcida. Também os ouvi no sentido de saber quais eram as demandas, as preocupações.
Como o senhor avalia sua gestão até aqui e quais são os planos para o futuro?
Expliquei meus objetivos no meu discurso de posse. Primeiro, era fazer uma manutenção criativa daquilo que já existia na Biblioteca Nacional, no sentido de manter e preservar todas as atividades que já estavam em funcionamento e que eram boas, mas no sentido mais criativo. Também focamos muito na segurança, seja contra furtos ou incêndios, além de segurança pessoal. Tudo isso tem sido plenamente cumprido. Em terceiro lugar, trazer para a biblioteca a vocação do professor, uma vez que ela pode ser um pouco intimidadora para alguns. O prédio é majestoso, é uma fortaleza do livro. Eu vejo a Biblioteca Nacional como um monumento ao saber, um monumento ao livro. Mas ela pode parecer às vezes muito distante do público comum. Desde a minha chegada, criei eventos para difundir melhor os itens que a biblioteca possui e fazer com que ela se revele mais ao povo brasileiro.
O senhor já disse que não pretende transformar a Biblioteca Nacional em um “megafone da direita”. O que isso significa, na prática?
A expressão que usei era uma preocupação que me foi trazida. Trata-se de uma instituição de Estado, que é mais antiga não só do que a Nova República, mas do que a República e o Império. Ela tem raízes muito profundas e uma projeção muito distante no tempo, que vai além dos quatro ou oito anos de cada governo que é empossado. Nós não somos os donos da biblioteca. Ela é do público brasileiro. Tenho uma maneira de enxergar o conservadorismo que talvez não seja parecida com a de muitos outros agentes do governo ou de fora dele, mas que apoiam o governo. Vejo que o conservador, em princípio, não quer fazer grandes inovações nem mudar o curso das coisas. Ele quer interpretar, entender, compreender e, ao mesmo tempo, fazer as mudanças que são necessárias. Agora, a gente transformar uma instituição centenária, com todas essas atividades já em andamento, em simplesmente algo ligado a um governo é um desrespeito. O presidente Jair Bolsonaro não me pediu para transformar a Biblioteca Nacional em uma instituição bolsonarista. Ele tem essa compreensão. Nós tratamos a Biblioteca Nacional como algo do Brasil inteiro, e eu tenho essa responsabilidade.
O que pode ser feito para evitar tragédias como os incêndios no Museu Nacional, em 2018, e no galpão da Cinemateca, em 2021?
Nós estamos totalmente em dia com as medidas de segurança. Precisou de gestão política, não é uma questão de sorte. Consegui recursos, e os meus servidores, os arquitetos da biblioteca, tinham um pré-projeto. Contei com a ajuda do governo e com a vontade dos servidores que ali estavam. Havia um impasse entre o Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] e o Corpo de Bombeiros. O Iphan tinha um excesso de cuidados em proteger o edifício tombado e não queria que a reforma proposta pelos bombeiros ocorresse. E os bombeiros também estavam inflexíveis. Sentei para conversar com os dois lados, conseguimos harmonizar essa questão e criar um projeto intermediário aceito pela Biblioteca Nacional, pelos bombeiros e pelo Iphan. Assinei, e a obra foi adiante.
Durante a pandemia, a biblioteca teve de suspender a visitação do público. De que forma isso afetou o trabalho e o que foi feito para minimizar esse impacto?
Em março de 2020, com o início da pandemia, achei que não deveria interromper as atividades da Biblioteca Nacional. Eu deveria ser criativo e recriar uma nova biblioteca, com os dois pés no século 21. Algumas atividades de público ainda estão fechadas e outras estão liberadas, como o atendimento aos direitos autorais, que voltou já em agosto do ano passado. Passamos por reformas e estamos agora na fase de limpeza e sanitização da Biblioteca Nacional, com discussão sobre os protocolos de abertura. Passou o pior período da pandemia e estamos na preparação para abrir. Nesse período todo de mais de um ano, conduzimos as reformas do jardim da biblioteca, da sala-cofre de microfilme, uma reforma completa ligada à proteção contra incêndio, a reforma do prédio anexo que estava com problemas graves.
Como está o processo de digitalização do acervo?
A Biblioteca Nacional criou um sistema de guarda a vácuo. Você plastifica e retira o oxigênio de dentro, e os jornais antigos, documentos históricos ficam muito protegidos. Eles estão no prédio anexo, porque é muito material. Já há muita coisa digitalizada. Eu precisava fazer com que a Biblioteca Digital fosse mais divulgada. Criamos uma série de lives, como muitas bibliotecas do mundo fizeram, e a primeira delas foi exatamente para divulgar a Biblioteca Digital. A gente ensinou como usar os mecanismos da Biblioteca Digital. Temos parcerias com outras instituições, como o Instituto Moreira Salles e a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz]. Fizemos vídeos didáticos para explicar tudo isso ao público. Por fim, na fila da digitalização, colocamos como prioridade obras raras em geral e também documentos da Independência, para fazermos dossiês. Há obras escritas sobre a participação política efetiva daquela época, com panfletos escaneados. Também faremos dossiês sobre José Bonifácio [considerado o “patriarca da Independência”]. Temos quase 500 documentos sobre ele selecionados na Biblioteca Nacional, muitos dos quais não foram ainda devidamente examinados por historiadores. Ainda pretendemos fazer dossiês sobre a imperatriz Leopoldina e Dom Pedro I.
A Biblioteca Nacional tem preparado uma programação especial para as comemorações do bicentenário da Independência, em 2022?
Criamos uma série sobre os 200 anos da Independência, que é das mais especiais, principalmente por se tratar de algo que eu trago comigo. Eu fui escolhido também por ser reconhecido como historiador que ajudou a acordar o patriotismo dos brasileiros. Nós realizamos uma exposição virtual sobre Dona Maria I porque eu entendi que ela precisava ser mais bem trabalhada. Na escola a gente vê isso muito rapidamente, como “Maria Louca” e coisas assim. Quando Dom João vem, ele era regente. A rainha era ela. Criamos uma exposição para mostrar Dona Maria I como a rainha do Brasil. Mostramos nessa exposição vários documentos daquela época que estão custodiados pela Biblioteca Nacional e explicam melhor quem foi Dona Maria, como foi seu reinado, em que condições ela vem para cá e como Dom João aparece. Também fizemos lives convidando historiadores para tratar do tema. Em 2020, tivemos nove episódios dessas lives. Em 2021, nós teremos feito, ao todo, 12 episódios até dezembro, um por mês. Tudo isso para promovermos essas discussões e chegarmos mais conscientes, sob o ponto de vista historiográfico, aos 200 anos da Independência.
Em abril deste ano, a Biblioteca Nacional foi alvo de ataques hackers. Qual foi o dano ao acervo e quais medidas foram tomadas pela instituição para se precaver de novas invasões?
Esse nosso trabalho de proteção patrimonial, de proteção contra incêndio, talvez tenha atiçado aqueles que não gostam da cultura, da minha pessoa, do bom trabalho que estamos fazendo ou do governo. Não sei, porque não foram identificados os autores. Mas o fato é que fomos atacados exatamente onde estávamos trabalhando melhor. Eles encriptaram [colocaram uma informação em código secreto] vários documentos, tanto administrativos quanto dos nossos acervos. Isso significa que eles enveloparam tudo com um código de proteção impossível de descobrir. Imediatamente comunicamos isso ao Gabinete de Segurança Institucional [GSI] da Presidência da República, à Agência Brasileira de Inteligência [Abin] e à Polícia Federal [PF]. Foram feitas investigações. Nós conseguimos, com uma parceria entre a Biblioteca Nacional e a Abin, o resgate dos códigos-chave, e a desencriptação foi feita. Os documentos estão sendo parcialmente disponibilizados. Então, felizmente, tivemos 100% de recuperação. Mas foi um susto, foi lamentável.
Sabemos que o setor cultural é dominado pela esquerda. O senhor sofreu algum tipo de preconceito ou boicote na Biblioteca Nacional?
Eu não diria que sofro boicote. Na realidade, o que existe é uma reação e uma má vontade por parte das pessoas mais ideológicas. Na Biblioteca Nacional, encontrei servidores apaixonados pelo que fazem e temos trabalhado juntos com muito sucesso. Agora, existem pessoas que querem usar os recursos da cultura para fazer propaganda política. É uma politização indesejada e inadequada, porque aquilo que é arte, aquilo que é história tem métodos e critérios de avaliação próprios. Não é tudo política. Essa absorção de tudo pela política é uma característica da esquerda. Eles entendem que tudo é política: a educação, a arte… Também não acho desejável que essa absorção de tudo pela política seja feita pela direita. Algumas pessoas entendem que, como passaram em um concurso e se tornaram servidores, aquilo é deles e eles representam aquilo. Essa não é a minha perspectiva. Eles são servidores. Eles servem ao verdadeiro dono, que é o cidadão brasileiro. São zeladores. Essa tentativa de se apropriar da instituição para suas finalidades particulares ou políticas é algo a se combater. Existem, sim, alguns que querem fazer isso, mas é uma minoria.
Fábio Matos, Revista Oeste