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O povo brasileiro não suporta o Brasil ser vice-campeão de futebol. Em educação, o país não sai da zona de rebaixamento
Já na terceira idade, a professora catarinense Dulce Fernandes de Queiroz recitava poemas e trechos de livros que sabia de cor, e estudava latim e grego. Ela queria saber, no original, o que havia dito Júlio César, que vivera no século 1 a.C., mas cujo étimo do nome ainda estava presente em palavras como “cesariana” e “tzar”, e dava título à célebre peça de Shakespeare. Queria saber mais também de Homero, que vivera cerca de 900 anos a.C., mas estava na expressão “porre homérico”, isto é, uma bebedeira tão grandiosa como os acontecimentos encantadores por ele narrados na Odisseia, que, aliás, estava em títulos de filmes.
As amigas a questionavam: “Poxa, não lhe bastam Eça de Queiroz, Machado de Assis e Castro Alves, que você vive citando e recitando? Por que você quer ler tanto?”.
Ainda mocinha, Dulce lia autores lusófonos, espanhóis e também obras literárias escritas originalmente em inglês, alemão e francês, e deste último idioma lia na fonte, tornando-se professora de francês da própria filha no Colégio Cristo Rei. Dulce teria hoje 102 anos, idade de dezenas de habitantes em bairros do Rio, sobretudo Copacabana e Barra da Tijuca.
Uma das alunas era a filha, Maria Tereza de Queiroz Piacentini, que, em parceria de Simone Hering de Queiroz, acabou de lançar um saboroso livro sobre a mãe: Dulce Fernandes de Queiroz: Receitas, Raízes e Recordações (Curitiba, Bonisjuris, 2021).
A leitura de obras como essa mostra-nos que já tivemos um ensino médio que realmente preparava para a universidade ou profissionalizava aqueles que não queriam ou não podiam prosseguir os estudos. O Brasil não estava então entre os últimos lugares nos indicadores da educação, como está há três décadas.
Nossas escolas desabaram nos indicadores nacionais e internacionais que medem a qualidade. Não é preciso muita estatística para comprovar que alunos não entendem o que leem, escrevem errado (principalmente ortografia e sintaxe) e defendem a ignorância.
É desconcertante o desatino de muitos professores que ainda fazem furiosa defesa de esdrúxulas didáticas e pedagogias lastreadas num grande equívoco: se notórios ágrafos e apedeutas foram elevados a autoridades, inclusive à Presidência da República, por que não abolir as diferenças entre o certo e o errado nesse e em todos os campos?
Que pensassem, falassem e se comportassem de forma tão confusa e atabalhoada, ainda haveria indulgências plenárias para isso em escolas e universidades, pois, com o passar do tempo, um burro se esfregando no outro, um dos dois ou os dois um dia aprendem, se ensinados.
Todavia deram um passo adiante. Se assim procedem também os professores, sobretudo os de Língua Portuguesa, estão enganando os alunos. E todos vão para o brejo das almas. Os mestres que ensinam o vale-tudo não obtiveram seus empregos utilizando uma língua que passaram a defender e a ensinar.
Muito ao contrário. Aqueles que passaram a ensinar que valia tudo, antes defenderam dissertações e teses escritas no português que muitos deles passaram a abominar, mas que não o recusaram quando se tratou da vez deles. Regras de ortografia, de sintaxe, coerência, fixação no assunto, apoio em fatos ou em bibliografias referenciais, tudo foi acatado para obter o diploma. Nos concursos de provas e títulos aos quais se submeteram tampouco usaram o português que depois passaram a defender e a ensinar.
Mas em que português está escrito um manual de engenharia, um catálogo de doenças e de fármacos, um vade-mécum jurídico? Ora, no Brasil, é com a LÍNGUA PORTUGUESA que são ensinadas todas as disciplinas. Por isso, o ensino desta língua é estratégico!
Depois que, por exemplo, o aluno aprende ortografia, ele pode, com a ajuda de mestres qualificados, ir além, e aprender que existem muitas variantes para o que ele diz e escreve, no português e em outras línguas. MAS, DEPOIS, NÃO ANTES. Do contrário, ele pensa que tanto faz…
Nós escrevemos LIVRO, mas a maioria de nossos vizinhos escreve LIBRO. Porque sua língua é o espanhol. As duas línguas tomaram o étimo do latim LIBER. Assim como fez o italiano, que escreve LIBRO. O francês, da mesma família das neolatinas, escreve LIVRE. O romeno escreve CARTE, porque o étimo é outro: o latim CHARTA, do grego KHARTÉS, folha de papiro, que deu CARTA em português, com outro significado.
No inglês é BOOK. No alemão é BUCH. No holandês é BOEK. No dinamarquês é BOG. Há razões para essas diferenças. Nestas últimas línguas, o étimo remoto tem a ver com CARVALHO, madeira de que era feita a ferramenta para escrever. Esta ferramenta chamava-se STYLOS, em grego, e STILUS, em latim, que deu ESTILO em português, mudando de significado para designar o modo de escrever. Porque com essa varinha, de metal ou de madeira, tirava-se o excesso de palavras nas lousas, do latim LAUSIA, a pedra de ardósia onde se escrevia, ou na TABULA, o étimo remoto de TABLET.
Não foi abrindo a universidade para despreparados que nós os qualificamos
Nas línguas neolatinas, o étimo remoto de LIVRO, LIBRO e LIVRE indica a película entre a casca e a árvore, utilizada originalmente como PAPEL, cujo étimo é o latim PAPYRUS, papiro, o arbusto do Egito utilizado para fazer velas de navio e para escrever, que, por sua vez, veio do grego PÁPYROS.
Esse material, embarcado no porto fenício de BIBLOS, vinha para a Grécia. Esta palavra deu BÍBLIA, BIBLIOTECA, BIBLIOGRAFIA.
Como se vê, numa coluna despretensiosa como esta, que todo mundo pode ler e entender, pode-se dar uma ideia de que ensinar não é ofício simplório e que não é baixando o nível que os professores democratizam o saber.
Seria melhor preparar os alunos para o curso superior que escolheram. Mas muitos podem querer fazer outra coisa, um curso técnico, por exemplo. Há muitos ofícios para os quais não é necessário um curso superior! Não foi abrindo a universidade para despreparados que nós os qualificamos.
Mas, se o aluno chegou à universidade, aproveitemos a oportunidade e nos comportemos como médicos numa CTI ou UTI: o projeto é não deixar morrer nenhum paciente!
Para isso, vamos recorrer à didática, do grego DIDAKTIKÉ, a arte de ensinar. É uma arte! Pensemos como Miguel de Unamuno, célebre reitor da Universidade de Salamanca: “A universidade é um templo e eu sou seu Sumo Sacerdote”. Professores e alunos habitam um espaço sagrado.
Ah, dirão, democracia é isso, o povo é soberano. Então, eduquemos o soberano, como dizia João Calmon. E quem educa o soberano? Principalmente os professores das etapas de ensino que antecedem a universidade? A universidade! É ali que mora o perigo!
E daí a situação se complica um pouco mais. Em respeitadas classificações internacionais, o Brasil tem poucas universidades entre as mil melhores do mundo. Em algumas listas, mais rigorosas, não aparece nenhuma brasileira antes da 700ª colocada. Em outras, mais generosas, nenhuma antes da 200ª.
A reforma do ensino é tão urgente como as outras. O povo brasileiro não suporta o Brasil ser vice-campeão de futebol. Em educação, o país não sai da zona de rebaixamento há algumas décadas.
Deonísio da Silva é professor e escritor. Seus livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina. Os mais recentes são De Onde Vêm as Palavras (18ª edição) e o romance Stefan Zweig Deve Morrer.
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