Paulo Gudes e Jair Bolsonaro | Foto: Montagem Redação Oeste/Shutterstock
Três conselhos ao presidente da República antes do próximo apocalipse
Há poucos dias, a impressão era que o mundo iria desabar sobre o Brasil. Os mercados financeiros reagiram ao que foi interpretado como uma capitulação da equipe econômica ao compromisso com o processo de consolidação fiscal, promovido a duras penas contra tudo e todos. A desconfiança de que o teto de gastos seria ultrapassado era o prenúncio do fim da austeridade fiscal e da credibilidade do governo. Um verdadeiro desastre, uma volta à mesmice social-democrata da política econômica dos últimos 50 anos. Uma traição de Paulo Guedes aos seus princípios e do presidente aos seus eleitores. Não era bem isso. Mas parecia ser.
Antes de comentar o episódio, é preciso ressaltar que não há motivos para dirigir imprecações nem rogar pragas contra o famigerado “bando de especuladores” que constitui “o mercado”. Alguns críticos e analistas não têm ideia da importância do papel que as expectativas desempenham na economia do mundo real. Qualquer agente econômico, tanto do lado da demanda quanto da oferta, reage a expectativas! É uma reação movida por fatores objetivos, como os preços, mas também intuitiva, de natureza subjetiva e que não pode ser controlada.
Quando você está prestes a sair de casa para uma caminhada e prevê uma forte chuva em cinco ou dez minutos, por prudência, procura um guarda-chuva? O potencial consumidor de um carro, ao antecipar que em poucas semanas o seu preço vai cair, adia a compra? O produtor de batatas, ao antever que o governo vai tabelar o preço do seu produto, decide ser melhor mandar o próprio governo plantá-las e passar a cultivar, por exemplo, orquídeas? E por que os agentes econômicos, em praticamente todas as suas ações, não olhariam para o futuro e reagiriam a expectativas?
Essa última barafunda nos mercados de ações e de câmbio foi uma inevitável reação orgânica ao que, naquele momento, foi interpretado como uma perda do controle fiscal, o que seria desastroso, especialmente em uma situação em que o assanhamento da inflação de preços está exigindo austeridade redobrada por parte do Banco Central. Hipótese bastante plausível, como atesta a decisão do Copom desta semana, de aumentar a Selic em 1,5 ponto porcentual (de 6,25% para 7,75% ao ano), dose que deverá se repetir até o final deste ano ou mesmo aumentar.
O governo poderia ter evitado o alvoroço? Sim. Logo que o ministro da Economia, ao lado do presidente e diante de câmeras, celulares e microfones, rebateu com veemência a acusação de que o governo aderira à irresponsabilidade fiscal, o mercado acalmou-se instantaneamente.
Mas, então, o que teria levado alguns funcionários importantes do Ministério da Economia a pedir exoneração? O fato acirrou ainda mais os ânimos do mercado. A excitação foi amplificada febrilmente por conhecidos jornalistas e blogueiros que acordam e vão dormir com o único propósito de causar problemas ao governo. Não temos resposta para os motivos dessas baixas na equipe. Qualquer afirmativa a esse respeito seria pura especulação e, portanto, antiética. Mas a dúvida permanece.
Liberalismo, esse ilustre desconhecido
Tudo garante que a sinalização firme de Paulo Guedes no sentido de mostrar que não havia abandonado os princípios liberais que sempre defendeu espantou os maus espíritos de volta para o inferno. Mas os adversários não vão desistir. Seus atacantes são hábeis: políticos (alguns, inclusive, dentro do próprio governo, como Guedes sugeriu sutilmente) sempre querendo abrir a bica dos gastos; a oposição que não faz oposição, mas pura sabotagem; a imprensa que desinforma o tempo todo; empresários saudosos do dinheiro barato do BNDES; e muitos “liberais não binários”, que saíram aos borbotões do armário e passaram a agir como social-democratas em busca de terceiras, quartas e não se sabe mais quantas vias.
É inegável que a equipe econômica vem tentando adotar, desde janeiro de 2019, medidas com vistas a promover a necessária consolidação fiscal. Ou seja, a mudar o regime fiscal, a estrutura temporal dos gastos e receitas da União. É importante ressaltar que é a primeira vez, desde as reformas de Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos nos anos 1970, que um governo tenta de fato encarar essa façanha — à que o próprio Hércules possivelmente teria se furtado.
Tanto o ministro da Economia como seus secretários mais importantes são liberais em tempo integral
O que se fez na idade da pedra polida tucana e na da pedra lascada petista foi no máximo executar políticas fiscais temporariamente mais austeras (ou menos permissivas). Mas o regime fiscal e a estrutura de gastos e receitas necessários para alimentar o agigantamento do Estado permaneceram intocados. Para efeito de comparação, o comportamento de todos os governos nas últimas décadas foi como o daquele sujeito imprevidente que, devendo na praça, se limitava a diminuir suas despesas durante poucos meses, e em seguida voltava a viver no cheque especial, trocando de banco para saldar o débito com o banco anterior e repetindo a prática indefinidamente, sem cortar despesas, vender ativos nem tentar aumentar a renda.
Já escrevi várias vezes — e reafirmo, por conhecê-los pessoalmente há bastante tempo —, que tanto o ministro da Economia como seus secretários mais importantes são liberais em tempo integral — dia sim, outro também. Por outro lado, continuo acreditando nas boas intenções do presidente. Por isso, as críticas de que o caminho liberal não está avançando por culpa deles não têm fundamento.
Qualquer análise desprovida de paixão ou de ódio sabe quanto é difícil colocar a economia do país nos trilhos do caminho da prosperidade que os eleitores endossaram em 2018. Primeiro, porque a nossa cultura é sui generis: muitos brasileiros detestam a maioria dos políticos; muitos também acreditam em poderes messiânicos desse ou daquele político, mas quase todos confiam no Estado e suas instituições. O liberalismo entre nós ainda é um ilustre desconhecido, apesar dos avanços obtidos nos últimos anos.
Em adição ao empecilho para a aprovação das reformas representado pela crença cega no poder do governo para resolver os problemas das pessoas, temos de levar em conta outro obstáculo que nada tem de ideológico e que faz parte da própria condição humana: enxugar o Estado, fazer uma reforma administrativa profunda, privatizar, desregulamentar, desburocratizar, enfim, reformar para valer sempre tira poder de políticos e de grupos que vivem de seus favores.
O meteoro de olhos puxados
É difícil, muito difícil mesmo mudar o regime fiscal. O ministro Paulo Guedes sempre teve consciência de que não basta que ele ou qualquer outro ministro liberal em seu lugar estale os dedos e passe a ordenar: privatize aqui, desregulamente ali, baixe imposto lá e corte gastos acolá. O poder do economista ministro é apenas o de traçar para o presidente o caminho das pedras, para que ele o execute — ou não — por meio da política. Bolsonaro é contra a reforma, é populista, é isso, é aquilo? A meu ver, são acusações injustas. Será que outro em seu lugar conseguiria fazer todas as mudanças que o acusam de não ter feito? Por que, então, antes dele, não fizeram?
A verdade é que reformar o Estado exige transpor muitos obstáculos, além dos que já foram mencionados. Um deles é a nossa Constituição de 1988, a Carta dos direitos sem deveres, em que gastos não dão a menor bola para fontes, bem como os remendos que nela fizeram.
Se você fosse o presidente, como iria governar com o poder limitado a alocar menos de 10% das despesas orçamentárias em conformidade com o seu programa de governo? Como iria financiar, por exemplo, o Auxílio Brasil? De que outros gastos teria de abrir mão para aumentar para R$ 400 esse benefício? E a ajuda emergencial? Não seria, talvez, forçado a tentar protelar o pagamento de precatórios — algo que você não gostaria, mas é levado a fazer, em meio a um intenso e impiedoso tiroteio da turma do contra?
Aliás, a questão dos precatórios é emblemática. Hoje, há mais de R$ 90 bilhões em precatórios federais, que deverão ser pagos em 2022 e incluídos no Orçamento. Dada a dificuldade crônica de honrar esses compromissos, os governos têm o hábito de adiá-los. Ora, um cidadão que vive em dificuldades financeiras e que está aguardando há dez, 15, 20 anos para receber o que o governo lhe deve é tentado a vender no mercado paralelo os direitos do precatório por um preço bem inferior ao do valor de face. Assim, os bancos, que são os principais compradores diretos e indiretos dessas dívidas, pagam 25 pelo que vale 100 e em seguida oferecem ao governo um deságio de 25%. Lucram 50% por operação, o que os leva a pressionar o Congresso para que os precatórios sejam pagos rapidamente. É preciso, portanto, existir transparência, para desmontar certos procedimentos nada éticos que contribuem para sugar os pagadores de impostos.
O caminho correto a ser seguido para mudar o regime fiscal não passa por exercícios superficiais de ginástica orçamentária. É cansativo viver repetindo isso, mas o foco deve ser nas reformas. Quantos recursos seriam economizados, por exemplo, com uma reforma administrativa profunda, que abolisse as inacreditáveis mordomias do Judiciário e do Legislativo?
Na economia, sem dúvida houve alguns avanços significativos, conquanto todas as dificuldades mencionadas estivessem presentes. O ano de 2019 prenunciava o tão esperado voo de águia, com a reforma da Previdência e as expectativas favoráveis quanto ao andamento das outras, apesar das dificuldades impostas pelo Congresso, e dois presidentes. Então, bem no início de 2020, veio — para usarmos a imagem de Guedes — um enorme meteoro de olhos puxados: a pandemia de covid-19.
Seu choque com o planeta desorganizou toda a economia e a vida das pessoas no mundo inteiro. Para piorar as coisas, sobreveio uma verdadeira chuva de meteoros em todo o mundo: a política do fique em casa que a economia a gente vê depois, o choque brutal de oferta, as injeções descomunais de gastos públicos e de moeda utilizadas como pretextos para enfrentar o desemprego, a quebradeira de empresas e, no Brasil, a inconcebível politização da doença. Tudo isso somado à incrível capacidade por parte dos políticos de atravancar praticamente todas as iniciativas da equipe econômica e às frequentes interferências descabidas do Judiciário em assuntos econômicos.
Mesmo com todos esses meteoros, a economia em 2020 surpreendeu positivamente. O FMI, a ONU e vários bancos esperavam em março que a queda do PIB poderia ser de 9% a 11%, mas o ano fechou com queda bem menor: 4,1%. Para 2021, segundo o último relatório de mercado Focus, divulgado na última segunda-feira, as estimativas são de que a taxa de crescimento será positiva e ficará em torno de 5%. A inflação de preços, que é mundial, vai se acalmar, desde que as torneiras de moeda permaneçam fechadas.
Se pudéssemos aconselhar o presidente, faríamos três recomendações gerais: 1) pelo amor de Deus, pela milionésima vez, melhore a comunicação do governo, senão a mídia inimiga vai continuar minando tudo o que o senhor tentar fazer; 2) continue a apoiar o seu “Posto Ipiranga”, porque Paulo Guedes é um economista respeitado, o trabalho que ele se propõe a fazer é de fato o melhor para o Brasil deslanchar e foi endossado pelos eleitores; 3) se por desventura alguém próximo ao senhor usar a pandemia como bode expiatório para implodir o Orçamento, trate-o bem, mas deixe a sugestão entrar por um ouvido e sair pelo outro.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorgeiorio
Revista Oeste