sexta-feira, 18 de junho de 2021

"Nas festas juninas, a tradição rural invade a cidade", por Evaristo de Miranda

 



Ao contrário do evocado por alguns, o catolicismo sempre celebrou os eventos cósmicos, associados ao seu calendário litúrgico


Nosso amor que não esqueço
E que teve seu começo
Numa festa de São João.

Último Desejo
Noel Rosa e Vadico

Há milênios os povos observam os eventos cósmicos planetários dos equinócios e solstícios. Eles dividem o ano em quatro períodos de três meses. Desde o Paleolítico, em várias culturas, monumentos foram construídos para marcar essas datas cósmicas e organizar calendários, inclusive no Brasil, como em Calçoene, no Amapá. No próximo 21 de junho será o solstício de inverno. O período mágico das festividades juninas, tão animadas em todo o país, está centrado nesse solstício. Nele, o campo invade a cidade. É tempo de entressafra e o rural é celebrado pelo urbano.

Parque Arqueológico do Solstício em Calçoene, Amapá

O dia do solstício é determinado pelo cosmos. Por conta da inclinação do eixo terrestre, o Sol nunca nasce, nem se põe, exatamente no mesmo local. Ele está em permanente deslocamento. O Sol nasce sempre a leste, mas cada vez mais em direção ao norte, durante o outono. Em dado momento, o Sol para nesse movimento aparente. Ele estaciona, como evoca a etimologia de solstício: sol sistere, sol estaciona, não se mexe. O Sol estaciona no solstício. E, no dia seguinte, começa a “voltar”, a se deslocar no sentido oposto, em direção ao sul. Esse evento cósmico é observável em todo o planeta.

No dia 21 de junho, o Sol nascerá a leste e se porá a oeste, mas com o deslocamento máximo para o norte. Da varanda da casa ou da janela do apartamento marque o local onde o Sol surge ou desaparece no horizonte. Pode ser na véspera ou mesmo um dia depois do solstício. É a marcação do Sol, segundo os agricultores. A partir do solstício, nascente e poente se deslocarão para o sul. Dá para ver “da janela lateral” o caminhar do Sol. E começa o inverno.

O 21 de junho é o dia mais curto e a noite mais longa do ano no Hemisfério Sul. A projeção do caminho do Sol, no chão, “traça” o paralelo conhecido como Trópico de Câncer, situado a 23 graus e 27 minutos de Latitude Norte. Nesse dia, os raios solares incidirão perpendicularmente sobre a Terra no Trópico de Câncer. O Sol passará a pino sobre Taiwan (onde há um belo monumento ao Trópico de Câncer), China, Índia, Emirados Árabes, Arábia Saudita, Egito, Líbia, Argélia, Mauritânia, Bahamas, sul dos EUA e norte do México. Por lá andará o sol a pino, longe do Brasil. Aqui, ele estará bem baixo na abóbada celeste. Ao meio-dia, pessoas, edifícios e postes projetarão as sombras mais longas do ano, em direção ao sul. Basta observar. O sol penetrará pelas janelas voltadas à face norte. Seus raios iluminarão ao máximo o interior das casas.

Para os antigos gregos, a beleza dos céus estava na precisão matemática desses ciclos celestes. Da beleza do cosmos, deriva a palavra cosmética. Com a passagem do solstício do inverno, a luz retorna. Inexoravelmente. Os dias durarão cada vez mais. Simbolicamente, a vitória progressiva da luz — tão comemorada nas festas e fogueiras juninas — convida todos a se prepararem para o futuro plantio, para ser fecundos, crescer e dar muitos frutos, atendendo ao chamado do início da Criação (Gênesis  1:28).

O tempo do solstício de inverno está associado ao fim das colheitas, ao desfrute dos resultados do suado e árduo trabalho no campo. É tempo de aferir, conferir, pesar, contar, vender e armazenar. Apesar de grandes diferenças territoriais, num país imenso como o Brasil, até junho encerraram-se as colheitas de soja, milho, arroz, feijão, laranja, amendoim, algodão e outras. Mais de 270 milhões de toneladas de grãos e de 30 milhões de toneladas de tubérculos. E ainda dá tempo de colher pinhões da araucária, no sul e em regiões de montanhas.

Na origem, as festas juninas são uma celebração católica, europeia, rural e tradicional do mês de junho, desde o século 4. Ao contrário do evocado por alguns, o catolicismo, herdeiro da tradição judaica, sempre celebrou os eventos cósmicos, associados ao seu calendário litúrgico. Não o fez para “apagar” práticas pagãs. A evangelização ressignificou essas práticas. Inicialmente eram chamadas de festas joaninas, dado o seu vínculo com São João, o único santo católico festejado no dia de seu nascimento e não de sua morte. Com o tempo viraram juninas e até julinas.

No Brasil, desde o século 16, os evangelizadores jesuítas associaram às colheitas indígenas as festas joaninas do solstício de verão (na Europa). Eles adaptaram as festividades ao nosso solstício de inverno (o oposto da Europa). Com muita sabedoria. E deu certo. As festas juninas representam uma das mais expressivas manifestações culturais brasileiras, sobretudo no Nordeste. Nelas são festejados três grandes santos: Santo Antônio (13 de junho), São João (24 de junho) e São Pedro (29 de junho). A intimidade das pessoas com esses santos é surpreendente. A ponto de serem chamados de compadres. E até arrumarem encrencas: “Com a filha de João, Antônio ia se casar, mas Pedro fugiu com a moça na hora de ir pro altar”.

As fogueiras ajudam a lutar contra a aparente vitória da noite sobre o dia

Nas festas juninas, a agrocultura alcança o mundo urbano. O campo invade a cidade e nela planta arraiais e quermesses. O arraial junino é um espaço profano e sagrado. É como uma aldeia rural temporária, instalada ao lado da igreja e também de escolas e espaços públicos. Essa aldeia só existirá durante as festas. Ele é organizado com bandeirinhas, portais de bambu, flores do cipó-de-são-joão, mastro dos santos, barracas de comidas, bebidas juninas típicas, brincadeiras, jogos, danças juninas, músicas e muita diversão. O arraial pode tomar o nome de quem o organiza. As crianças urbanas se vestem de caipira ou de lavrador, usam chapéu de palha, botas e expressam um jeito estilizado de mostrar o homem da roça. Os pais pintam no rosto dos meninos traços de barba e bigode e sardas nas meninas e trançam seus cabelos. A quermesse tem até “igreja”, “padre” e “cadeia”, além de casamento na roça e dança da quadrilha. Nos arraiais, compadres e comadres unem-se numa fraternidade acima do sangue, dada pelo batizado dos afilhados. Há algo de utópico, monárquico e milenarista no arraial, cuja etimologia latina evoca, o a-regalis, o relativo ao rei ou à dignidade do rei. Enquanto a quermesse evoca a festa da igreja (kirck mess).

O urbano imita o rural

A base da culinária junina são as plantas nativas (milho, amendoim, batata doce…). Degustam-se milho verde, assado e cozido, pipoca, pamonha, curau, mungunzá, canjica, cuscuz, bolo de fubá etc. Têm lugar nas mesas a batata-doce, cozida ou assada nas brasas das fogueiras, o doce de batata-doce, o amendoim, doce e salgado, o pé de moleque e a paçoca. No Sul e em parte do Sudeste, o pinhão está presente nas festividades, com o vinho quente, o chocolate e o quentão.

Comidas típicas das festas juninas

Ao longo de junho, as fogueiras ajudam a lutar contra a aparente vitória da noite sobre o dia. Elas iluminam as trevas, esquentam amores e corações. E aquecem as noites frias. A fogueira de cada santo tem um formato. A de Santo Antônio é quadrada (4) e feminina. A de São Pedro é triangular (3) e masculina. Já a de São João é heptagonal ou circular (7) e expressa a união dos contrários, do masculino e do feminino. Nessas fogueiras queimam-se coisas velhas. Deixa-se para trás o passado. Vira-se a página. As pessoas pulam as fogueiras, como ioiô e iaiá. Começam novos amores. Dançam em volta do fogo e do mastro de São João com as imagens dos três santos. Em algumas comunidades, homens e mulheres caminham descalços sobre as brasas. Soltam-se fogos para acordar São João. É tempo de purificação e coragem. A terra e os humanos recolhem energias e armazenam alimentos. E preparam-se para atravessar o inverno e semear na invencível primavera. O fogo da terra, tão frágil e tão humano, sobe aos céus em balões e junta-se às estrelas.

Last not least. Por que sempre chove na festa de São João? Segundo a tradição rural, é devido à inveja de São Pedro. Como a festa para São João é a maior, São Pedro manda uma chuvinha para acalmar os ânimos e atenuar um pouco o seu brilho.


Evaristo de Miranda é doutor em Ecologia e chefe-geral da Embrapa Territorial.

Revista Oeste