segunda-feira, 28 de junho de 2021

IPO: o que mudou no dia a dia das empresas que chegaram à Bolsa de Valores

Com lançamento de ações, companhias como Afya, Enjoei, Focus Energia, Locaweb, Mobly e Petz ganharam visibilidade e acesso mais fácil ao mercado de capitais, além de mais responsabilidades


Em meio à pandemia e ao cenário de incertezas, o País vive uma das maiores ondas de IPOs (oferta pública inicial de ações, na sigla em inglês) de sua história. Desde o ano passado, 54 empresas abriram o capital na B3, num movimento impulsionado sobretudo pelo patamar ainda baixo da taxa básica de juros, a Selic.

A chegada de várias companhias à Bolsa traz também novos empresários para a cena econômica brasileira. Fundadores de empresas como LocawebPetz e Focus Energia estão ganhando força no mundo dos negócios. “A maior diferença (após fazer um IPO) é a visibilidade. Você é incluído na pauta de uma agenda econômica mais ampla”, diz Sérgio Zimerman, fundador da rede de petshops Petz, que levantou R$ 3 bilhões em seu IPO, em setembro do ano passado.

“Empresas que tinham planos de crescer em três anos cresceram em um.”

Rodrigo Guedes, líder de Oferta de Mercado de Ações da KPMG

Para Rodrigo Guedes, líder de Oferta de Mercados e Ações da KPGM no Brasil, além da transformação na economia decorrente do juro baixo - que alavancou a ida de empresas à Bolsa e as apostas de investidores pessoas físicas em ações -, a digitalização acelerada da sociedade durante a pandemia também fez com que mais companhias chegassem à B3.

“Empresas que tinham planos de crescer em três anos cresceram em um ano. São empresas de e-commerce ou de tecnologia, por exemplo. Aí elas acessaram a Bolsa ou porque atingiram o porte que necessitavam para isso ou porque precisavam de recursos para continuar crescendo rapidamente”, diz.

Esse é o caso, por exemplo, dos e-commerce Enjoei e Mobly, que ainda nem dão lucro, mas já levantaram milhões abrindo o capital. As duas empresas ainda estão em uma fase em que focam seus esforços na expansão, não no lucro - o que é novidade na Bolsa brasileira.

A nova leva de companhias na B3 é tão grande que não se restringe a um movimento de startups ou do setor de tecnologia. Companhias consolidadas, como Petz e Rede D’Or, regionais, como o Grupo Mateus, e novatas de infraestrutura, como Focus Energia e Sequoia Log, também fizeram seu IPO nos últimos meses.

Em fevereiro, Focus levantou R$ 772,6 milhões com IPOCAUÊ DINIZ


Algumas empresas, no entanto, têm optado por abrir o capital fora do Brasil. A Afya, uma health tech (startups da área de saúde) nacional, escolheu a bolsa americana Nasdaq para lançar suas ações em 2019. O motivo foi a falta de empresas comparáveis na B3 para usar como benchmark, diz o presidente executivo da companhia, Virgílio Gibbon. Outras companhias seguiram esse mesmo caminho e fizeram IPO lá fora com o argumento de que o mercado e os investidores são mais maduros  - mas os custos também são.

O gestor Rodrigo Galindo, sócio da Novus Capital, avalia que, por aqui, esse “boom” de aberturas de capital é saudável para a economia, pois permite que grande parte do investimento público que havia antes no País seja substituído pelo privado. Segundo ele, 70% do valor que será emitido em ações neste ano deve ir para o caixa das empresas, o que significa que até R$ 84 bilhões podem ser transformados em investimento privado.

Segundo Guedes, a demanda para abrir capital é tanta que muitas companhias hoje na fila para fazer a oferta de ações ainda neste ano não devem conseguir. “Tem quase 40 empresas esperando. São oito de tecnologia, seis indústrias, sete de infraestrutura e logística. Várias vão acabar segurando porque entenderão que os investidores não vão conseguir prestar atenção em todas ao mesmo tempo.”

Se algumas vão adiar seus planos por conta da saturação do mercado, outras simplesmente não conseguirão se estruturar a tempo. Esse, aliás, é um alerta que o consultor faz para as empresas que estão tentando correr para fazer IPO: “Querer pular uns dois degraus (da preparação para a abertura de capital), tudo bem. Mas não dá para pular a escada inteira. Se você cair, vai se machucar”.

Mineira Afya optou por abrir capital na Nasdaq, nos Estados UnidosDIVULGAÇÃO/NASDAQ

REALIDADE NO PÓS-IPO

Guedes diz que, entre um terço e um quarto das empresas que chegaram à B3 recentemente acabaram fazendo a preparação de forma atropelada. O resultado disso são problemas delicados nos seis primeiros meses após o IPO, principalmente no cumprimento de prazos da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), na relação com investidores e na divulgação das informações financeiras. Tudo isso pode interferir não só no preço da ação da companhia, mas também na qualidade e no tipo do investidor que olha essa empresa.

Além de complexa, a transição de uma companhia de capital fechado para aberto envolve uma série de custos, que durante a operação pode variar de 2,5% a 5,6% do valor captado. Após o IPO, surgem novos gastos. A maior parte costuma ser feita para dar uma estrutura robusta à empresa - criar equipes de Relações com Investidores, Recursos Humanos, Auditoria e Conselho de Administração, diz Kieran McManus, sócio da consultoria e auditoria PwC Brasil. Também é preciso se adequar às normas da CVM, fazer relatórios para o mercado e aperfeiçoar a transparência. Tudo isso custa caro.

Segundo McManus, costuma haver um choque cultural nas companhias, com a nova realidade de volatilidade das ações e de maior exposição na mídia, por exemplo. “Ver terceiros falando da empresa, do desempenho financeiro e sendo comparada a outras companhias é algo que mexe com os empresários”, afirma.

Confira como alguns empreendedores e seus negócios vêm lidando com essa transformação.


Como investir em um IPO

Investir em uma novata na Bolsa não é algo simples. O escasso volume de informações públicas sobre a companhia - quando se compara com os dados disponíveis de uma empresa listada há anos - dificulta a análise das ações. O processo é tão complexo que até gestoras costumam ser cautelosas. Por outro lado, se você aposta na companhia correta, os ganhos podem ser volumosos.

A Novus Capital, por exemplo, costuma esperar um ano após o IPO para decidir se vai investir ou não em uma empresa. É o tempo necessário para ver como a ação evolui. Ainda assim, durante o processo em que uma companhia está se preparando para a abertura de capital, os gestores da Novus se reúnem com os bancos que estão organizando a oferta de ações para entender o modelo de negócio da companhia e analisam as informações contábeis.

“Estudamos o IPO mesmo não entrando na empresa. Adotamos essa postura cautelosa porque muita coisa muda durante o IPO. Pode haver uma dinâmica do empresário para tentar maximizar o valor (da ação)”, diz Rodrigo Galindo, sócio e gestor da Novus.

Investir em startups tem um risco grande. Mas, se você acertar qual empresa será um sucesso, terá uma multiplicação de valor muito grande.”

 Rodrigo Galindo, sócio e gestor da Novus Capital

Para o investidor que gosta de arriscar mais, no entanto, há algumas dicas que podem ajudá-lo a decidir entrar ou não em um IPO. O gestor de renda variável da Az Quest, Welliam Wang, aconselha que o investidor não apenas analise o prospecto da oferta de ações, como também cheque as informações do documento.

No caso de um IPO de uma empresa da área de saúde, por exemplo, muitos dados apresentados no prospecto podem ter sido fornecidos pela Agência Nacional de Saúde (ANS). É possível conferi-los no site da ANS e buscar mais informações ali. Ler entrevistas com as pessoas-chave da companhia, como o fundador, também podem ser úteis. Se houver empresas concorrentes ou fornecedoras da candidata ao IPO listadas na Bolsa, também pode ser interessante estudar a situação e a evolução dessas companhias.

Para investir em startups que chegaram à Bolsa recentemente, como a Mobly, é recomendável estudar companhias com projetos semelhantes em outros paísesCAUÊ DINIZ


Se a intenção for investir em uma startup que está abrindo o capital, vale a pena avaliar companhias no exterior que têm projetos semelhantes: o desempenho delas e se todas as alavancas do crescimento que elas têm em seu país de origem podem ser copiadas no mercado brasileiro, diz Galindo.

“Não estávamos acostumados a ver essas empresas (startups) na Bolsa aqui. Tendemos a ser cuidadosos com elas também. Vamos ver alguns grandes sucessos, mas muitas vão decepcionar. Tem um risco grande nesse investimento. Por isso, não é bom investir muito do seu patrimônio nelas. Mas, se você acertar qual vai ser um super sucesso, terá uma multiplicação de valor muito grande”, acrescenta o gestor.


O FRACASSO DE UM NEGÓCIO DEU ORIGEM À BILIONÁRIA LOCAWEB


A cultura dos fundadores da Locaweb, empresa de hospedagem de sites, era a do “faça você mesmo”. Até Claudio Gora e Gilberto Mautner perceberem que não conseguiriam desenvolver tudo dentro de casa na velocidade necessária. Com um aporte milionário do fundo de private equity Silver Lake, em 2011, os dois decidiram mudar a estratégia e caçar soluções que pudessem impulsionar o crescimento da empresa. Compraram seis companhias e avançaram no mercado.

No ano passado, eles foram além e abriram o capital na Bolsa paulista, a B3. Captaram R$ 1,18 bilhão, sendo parte para dar saída ao fundo e R$ 575 milhões para o caixa da empresa. De lá para cá, fizeram dez aquisições. “Entendemos que havia um ecossistema grande que poderia ajudar muito na expansão da companhia”, diz Mautner.

Para Mautner e Gora, IPO abriu portas para a Locaweb, mas o trabalho quadruplicouWERTHER SANTANA/ESTADÃO

Ele e Gora já vislumbravam o crescimento do e-commerce, mas não imaginavam que seria numa velocidade tão rápida. Com a pandemia, eles viram a necessidade de ampliar os investimentos e, em fevereiro deste ano, fizeram um follow on (oferta subsequente de ações) de R$ 2,35 bilhões. “Isso nos colocou em outro patamar. O relacionamento com o mercado ficou mais estreito e aumentamos a proximidade com os fundos de investimentos”, diz Mautner.

Hoje, a empresa vale mais de R$ 15 bilhões na bolsa de valores – quando abriu o capital, valia R$ 1,8 bilhão. Só neste ano, as ações da empresa subiram 38,77%. “O IPO abriu portas para a empresa, que passou a ser vista por outras companhias. Mas o volume de trabalho quadruplicou”, diz Gora.

Ele conta que, em 2012, os dois sócios decidiram profissionalizar a empresa e foram para o Conselho de Administração. Mas procuram ter um papel bem ativo, sobretudo para manter a cultura de receptividade dos investidores. Gora e Mautner fazem parte do comitê de Fusões e Aquisições da empresa e estão atentos às oportunidades de negócios que surgem no mercado.

A Locaweb surgiu em 1997. Na época, Gora trabalhava na confecção do pai e queria novos desafios. Seu primo Mautner morava em Palo Alto, nos Estados Unidos, e trabalhava numa consultoria. “Um dia ele me chamou para montar um negócio de internet. Decidimos criar um portal de B2B (business-to-business, ou seja, de empresa para empresa) para a área da moda.” A ideia era unir todos os envolvidos do setor numa única plataforma.

A questão é que em 1997 essa era uma ideia muito avançada. Depois de aberto o negócio, a empresa não tinha clientes. “Pensamos em desistir, mas meu pai nos motivou a mudar o rumo da empresa e aí criamos a Locaweb em 1998, como locadora de web”, diz Gora. Em 2000, a empresa viveu um boom de crescimento e, com ele, vieram as dificuldades de lidar com as dores dessa expansão. “Naquele ano, multiplicamos a base por 10. As empresas acordaram para a necessidade de ter um site.” Nessa época, a estrutura da companhia saltou de 6 funcionários para 100. Hoje são 2,5 mil empregados.


EDUCAÇÃO MÉDICA


DE ARGIRITA, EM MINAS GERAIS, PARA WALL STREET, AFYA CRESCEU POR MEIO DE AQUISIÇÕES

Foi atendendo os rincões do Brasil e vendo as deficiências no atendimento médico de cidades pequenas, que o casal Nicolau e Rosangela Esteves deu origem ao grupo Afya Educacional na década de 90 – hoje o maior grupo de educação médica do País. Nascido na cidade mineira de Argirita, de 2,7 mil habitantes, ele tinha o sonho de levar o ensino médico para cidades pequenas e, assim, criar vínculos dos profissionais na região. O negócio deu tão certo que chegou a Wall Street.

Em 2019, a empresa criada pela Família Esteves abriu capital na bolsa de valores americana Nasdaq e captou US$ 300 milhões – cerca de R$ 1,5 bilhão pela cotação de 23 de junho. “Não planejei nem pensei nisso. Mas no dia 1.º de julho a empresa estava estampada na Times Square”, diz Esteves. O caminho até Nova York foi trilhado por meio de fusões e aquisições.

A primeira compra foi a da Faculdade de Medicina de Barbacena, que faliu e o casal decidiu assumir. “Num determinado momento, já tínhamos 5 escolas de medicina e aí tive meus 15 minutos de fama. Todos vieram até mim querendo comprar a empresa”, diz Esteves. Ele optou pelo fundo Crescera, que na época pertencia ao hoje ministro da Economia, Paulo Guedes. Não era a melhor oferta, mas tinha o melhor projeto, diz.

Depois do IPO, empresa fez sete aquisições, diz EstevesDIVULGAÇÃO

Em 2019, a empresa de Esteves se uniu à Medcel, empresa líder em cursos preparatórios para residência médica, especializações e atualizações. No mesmo ano, houve a abertura de capital, que colocou a empresa sob os holofotes do mercado financeiro. “O que mudou na empresa é que agora não mando em mais nada. Não consigo nem comprar um computador sem ter de passar por uma série de departamentos”, brinca o médico, de 68 anos, que hoje é presidente do Conselho de Administração da Afya.

Ele afirma que, do ponto de vista de aquisições, o IPO ajudou bastante. Depois da abertura de capitais nos Estados Unidos, a empresa  – que vale US$ 2,5 bilhões – fez sete aquisições. No total, desde a década de 90, o grupo já comprou 23 ativos no mercado. E o apetite continua forte. O objetivo agora é fortalecer a área de serviços digitais, como telemedicina, o que seria facilmente replicada em outros países, diz o presidente executivo da companhia, Virgílio Gibbon, revelando o interesse pelo mercado externo. Hoje 80% da empresa está no negócio de educação e 20% em serviços.

Com as aquisições e o crescimento dos negócios, o faturamento da empresa, que em 2016 era de R$ 148 milhões, saltou para cerca de R$ 1,2 bilhão em 2020 – quase 80% desse crescimento é decorrente da incorporação de novos negócios. “Com a abertura de capital, estamos mais próximos do mercado financeiro, falamos semanalmente com empresas no Japão, na China e na Coreia e temos mais acesso ao mercado de capitais”, diz Gibbon.

Em abril deste ano, a Afya recebeu um aporte de US$ 150 milhões do Softbank, sendo que o valor será aplicado em aquisições, tecnologia e produtos. Todas essas transações mudaram o perfil da companhia com origem no interior de Minas. Novas equipes foram contratadas, profissionais treinados e departamentos criados para dar conta do volume de informações exigidas pelos órgãos reguladores e pelas regras de compliance. Em 2017, a companhia tinha mil funcionários. Hoje são mais de 8 mil.

APÓS REUNIÃO DE 15 MINUTOS, FUNDADOR DECIDIU ABRIR O CAPITAL DA FOCUS ENERGIA

Quando a pandemia chegou ao Brasil, em março de 2020, a Focus Energia estava com um megaprojeto de energia solar para construir. Mas, com a deterioração do ambiente econômico e o aumento das incertezas, o mercado de crédito secou e o investimento teve de ser paralisado. “Naquele momento, pensamos em vender o projeto”, diz o fundador da empresa, Alan Zelazo. Foi aí que os planos para a companhia, criada em 2016, tiveram uma reviravolta.

Em vez de vender o empreendimento, um banco sugeriu que a empresa fizesse uma oferta pública de ações (IPO, na sigla em inglês). “Em 15 minutos de uma sexta-feira batemos o martelo e na segunda estava num escritório de advocacia para dar andamento aos trâmites legais”, diz Zelazo. A previsão era que o IPO fosse realizado em dezembro, mas acabou se concretizando apenas em fevereiro deste ano.

Zelazo deixou um grande banco de investimentos para montar um butique de comercialização de energiaFELIPE RAU/ESTADÃO

A Focus captou R$ 773 milhões e retomou os planos de construção do projeto Futura, no norte da Bahia. Na primeira fase, prevista para ser concluída em 2022, serão investidos R$ 2,3 bilhões para construir um parque com capacidade de 761 megawatts/pico (MW). Na segunda fase, de 781 MW, o projeto exigirá mais R$ 2 bilhões de investimentos.

A Focus nasceu como uma butique de comercialização de energia, depois que Zelazo decidiu deixar um grande branco de investimentos no País. Com experiência de 15 anos no mercado, ele começou negociando algo em torno de 0,5 MW. Em pouco tempo, a empresa já tinha expandindo as operações para varejo e serviços, o que não estava nos planos iniciais do empresário.

Dois anos depois, ele resolveu diversificar os negócios e entrar na geração de energia. Comprou duas centrais geradoras hidrelétricas (CGHs) e passou a olhar outros negócios na área, como as usinas solares. Zelazo conta que o IPO tem ajudado nesse processo e criou mais oportunidades para a empresa crescer e desenvolver novos projetos.

“Desde a abertura de capital, passamos a ser convidados por bancos para aquisições de projetos greenfield (novos) ou brownfield (já construídos). Entramos no radar”, diz o fundador da companhia. Ele destaca que a operação exigiu mais investimentos na estrutura interna e nas pessoas que trabalham na Focus. Novos profissionais tiveram de ser contratados para dar conta do volume de trabalho gerado pelo IPO. Isso envolve também a melhoria das medidas de governança, um ponto importante para as empresas que lançam ações na Bolsa.

Hoje, o valor das ações da Focus está ligeiramente abaixo do preço da época do IPO: R$ 17,35, ante R$ 17,96. Mas só neste mês já subiu 19%. A empresa vale R$ 1,5 bilhão, pela cotação do dia 25 de junho.


FOCO NO CRESCIMENTO


ABRIR O CAPITAL ERA A META DA MOBLY DESDE A FUNDAÇÃO

“Quando a gente lançou a Mobly (em 2011), já pensávamos que um dia íamos fazer um IPO”, diz o cofundador e presidente do e-commerce de móveis, Victor Noda, que alcançou a meta dez anos depois. Segundo ele, porém, o plano não era muito detalhado. “A gente não sabia se ia fazer uma fusão antes, por exemplo. Mas o foco era sempre olhar para dentro para evoluir.”

A companhia começou quando Noda e seus hoje sócios - Marcelo Marques e Mário Fernandes - voltaram do MBA nos Estados Unidos. Todos queriam empreender e saíram buscando uma oportunidade. “Acho que isso está na veia. Meu pai era empreendedor. O pai do Marcelo também. Mas o ponto principal em empreender para nós é a sensação de criar um legado, de construir algo que tenha impacto na vida das pessoas. Tem também a questão da liberdade, de trabalhar 100% alinhado com o que você acredita.”

Inspirados pelo modelo de sucesso da varejista de móveis americana Wayfair, o trio criou a Mobly. Nenhum dos sócios tinha experiência na área moveleira, mas eles procuraram um segmento em que suas habilidades pudessem ser úteis. Com experiência em consultoria, Noda e Marques aproveitaram suas capacidades de gestão e de solucionar problemas e chamaram Fernandes, que tinha trabalhado com logística na Ambev, para compor a equipe de fundadores.

Noda: ‘O principal em empreender é a sensação de criar um legado’DIVULGAÇÃO

Com o plano de negócios na mão, os três conseguiram de cara um aporte da Rocket Internet para começar a empresa, que hoje vale R$ 1,8 bilhão no mercado. Os recursos da companhia alemã que investe em startups permitiram que a Mobly estreasse fazendo barulho, e os investimentos pesados em marketing alavancaram as vendas da empresa rapidamente.

Durante seus dez anos de vida, a Mobly enfrentou um período de maior dificuldade em 2015, quando, em meio à crise brasileira, precisou enxugar os custos para sobreviver. Agora, porém, após levantar R$ 811,6 milhões com sua chegada à Bolsa, acelerar voltou a ser a estratégia.

“O IPO foi completar um ciclo da empresa. Ele mostra não só que criamos um negócio que tem valor percebido pelo mercado, mas é também um patrimônio real. É um marco muito grande porque mostra que a companhia tem maturidade, porte, faturamento e controles internos. Agora, capitalizada, ela parte para uma nova fase ainda maior de crescimento.”

Entre os projetos para essa nova etapa da Mobly estão aportes em tecnologia, investimentos em marketing do e-commerce, expansão da rede de lojas físicas, ampliação da malha logística e abertura de novos centros de distribuição para reduzir os prazos de entrega.

Assim como ocorre com grande parte das startups, começar a dar lucro para os acionistas não está entre as prioridades da empresa, por enquanto. “A Mobly é uma empresa de alto crescimento. Ano passado, com a pandemia, crescemos 60%. Nosso foco é acelerar o faturamento. Claro que ter lucro é algo que a gente busca, mas isso vem como consequência do crescimento da nossa empresa.”

Após divulgar que o prejuízo cresceu no primeiro trimestre, a Mobly viu o preço de seus papéis recuarem. Noda, porém, afirma que rapidamente aprendeu a não olhar o preço das ações todo dia. “Se não, você fica maluco. Temos de fazer nosso plano e focar no longo prazo.”


DE BLOG À CAPITAL ABERTO


NA ENJOEI, MAIS RESPONSABILIDADE APÓS CHEGAR À B3

Abrir o capital do Enjoei nunca foi um sonho de Ana Luiza McLaren, fundadora do e-commerce. Fazer um IPO foi uma possibilidade que acabou surgindo para a companhia ter “grande acesso a capital com bom valor”, diz a empresária. “Víamos muita gente querendo investir na gente. A taxa de juros estava baixa e tinha muita liquidez na Bolsa. Aí pensamos que fazer uma captação maior era melhor do que continuar com um processo de diluição (da participação acionária) que não dá acesso a tanto capital. O IPO era uma forma de se capitalizar e expandir a empresa.”

O Enjoei chegou à Bolsa em novembro do ano passado - 11 anos após a criação do blog de venda e compra de roupas usadas -, com uma captação de R$ 1,13 bilhão. Foi um momento emblemático, diz Ana Luiza, mas também de aumento de responsabilidade. “Agora temos um compromisso de sermos bem-sucedidos com um volume muito maior de pessoas.”

Surgido como blog, o Enjoei virou empresa em 2012, com seus criadores - a publicitária Ana Luiza e o designer Tiê Lima - passando a dedicar seu tempo integralmente ao projeto. Antes, o casal trabalhou para outros e-commerces, e o Enjoei era tocado no tempo livre de Ana Luiza. “Tinha muita gente querendo comprar e vender. A demanda era muito reprimida. Quando chegava do trabalho, tinha 700 itens para aprovar ou reprovar. A ideia ali era fazer tudo bem feito, não era escalar.”

Para Ana Luiza, trabalhar em empresas de terceiros trazia o risco de não poder administrar a carreira no futuroWERTHER SANTANA/ESTADÃO

Apesar de gostar das empresas pelas quais passou, Ana Luiza sempre teve a sensação de que era arriscado trabalhar para terceiros. “As pessoas acham que empreender traz muitos riscos, mas eu olhava para as pessoas que trabalhavam comigo nessas outras empresas e a mais velha tinha uns 56 anos. Isso é um risco. Eu pensava: ‘Não posso deixar que minha vida seja administrada por um mercado que só vai me ter até uma certa idade’.”

Ainda em 2012, o Enjoei começou a chamar a atenção de grandes investidores. O primeiro foi o fundo brasileiro Monashees, seguido pelo Bessemer, pela Dynamo e até pelo grupo Globo. Com os aportes recebidos, a empresa conseguiu acelerar seu crescimento.

Hoje, a companhia vale R$ 2 bilhões no mercado e, no primeiro semestre deste ano, teve uma receita líquida de R$ 24,2 milhões. O lucro, no entanto, parece estar longe: no mesmo período, registrou prejuízo de R$ 31,8 milhões. “Se quiséssemos operar gerando resultado hoje, poderíamos. Mas teríamos de investir menos e crescer menos. Entendemos que estamos em uma situação boa para buscar mercado. É uma decisão estratégica”, diz Ana Luiza.

O resultado da empresa no começo do ano, porém, decepcionou o mercado, fazendo com que as ações recuassem. Ana Luiza afirma prestar atenção aos movimentos da Bolsa, mas também diz já ter aprendido como o mercado funciona. "Às vezes é um investidor institucional vendendo, aí tem mais impacto. Poderíamos ficar nervosos, mas isso é contraproducente. Tem de ter serenidade para executar o plano de negócios.”

O plano, por enquanto, prevê levar novas marcas para dentro da plataforma de compra e venda, melhorar a logística e ampliar um serviço em que o valor vendido no site vira crédito para a compra em algumas marcas. Tudo deve ser feito com o dinheiro levantado no IPO.


CONHECIMENTO ACADÊMICO E PRÁTICO


PETZ, UMA TRAJETÓRIA DE ALTOS E BAIXOS

Quando questionado sobre o momento mais marcante de sua carreira, Sergio Zimerman responde que o de maior felicidade foi o da abertura de capital de sua rede de pet shops Petz, em setembro do ano passado. O de maior aprendizado, no entanto, foi o da falência de sua rede de atacados, que chegou a empregar 600 funcionários, mas quebrou no início de 2002.

Os dois momentos estão profundamente relacionados. Após a falência, Zimerman decidiu estudar tudo o que poderia ter feito diferente. Fez faculdade de administração, pós-graduação e cursos de extensão. Juntou o conhecimento da academia e o prático - antes do atacado, ele também teve  uma empresa de animação de festas infantis -, e o resultado foi a Petz, que levantou R$ 3 bilhões ao se listar na Bolsa.

“O IPO foi o ápice de carreira até o momento. Destacaria ele por ser o momento de maior felicidade. É a coroação de uma trajetória que não foi linear, teve seus altos e baixos. Mas o momento de maior aprendizado foi a falência.”

‘Em três meses de destruição, tem mais aprendizado do que em dez de construção’, diz ZimermanTIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Zimerman teve sua primeira experiência como empreendedor aos 18 anos, ao abrir uma empresa com a namorada, que era animadora de festas infantis. Começou como Palhaço Salsicha, mas logo já tinha um buffet para festas e passou a se dedicar à gestão do negócio.

Desistiu da empreitada para se concentrar na compra e venda de bebidas - que havia começado com o buffet. O projeto se tornou uma mercearia de bairro, que, crescendo, virou atacadista. Zimerman se endividou para expandir a rede de atacado e pagou um custo alto em juros; também reduziu o preço das mercadorias para conseguir vender mais, mas perdeu margem. A conta não fechava, e a companhia quebrou.

“Em três meses de destruição, tem mais aprendizado do que em dez anos de construção. Falir é uma carga emocional gigante, mas um momento muito rico de aprendizado. Isso me deu combustível para fazer coisas boas, como estudar e aprender a criar uma distância do negócio. O que fracassa é o negócio, não é você.”

Após essa experiência, Zimerman decidiu que buscaria mais uma oportunidade para empreender. Se não encontrasse, procuraria um emprego com carteira assinada. “Eu realmente gosto de empreender. Acabei fazendo mais uma tentativa e aí foi bem. Quando vi que tinha dado certo, abri a segunda loja, depois a terceira, e aí foi.”

Hoje, a Petz (criada após um cunhado sugerir que Zimerman apostasse no setor pet) tem 143 unidades. Parte dessa expansão foi acelerada pelo fundo americano Warburg Pincus, que chegou a ter 55% da companhia, mas, após o IPO, se desfez de sua participação.

“Quando o fundo fez o aporte, já traçou a rota para sair do negócio em um prazo de oito anos. O IPO era uma das possibilidades para ele sair”, conta Zimerman.

Agora, após a conclusão bem-sucedida da abertura de capital, a estratégia é continuar a expansão das lojas físicas (neste mês, foi aberta a primeira unidade no Norte, única região em que a empresa ainda não estava), ampliar a rede de hospitais veterinários e investir em tecnologia.

Segundo Zimerman, pouca coisa mudou após o IPO, dado que a companhia veio aprimorando sua governança nos últimos sete anos, desde a chegada do Pincus. “A maior diferença é na visibilidade. Tem muito mais convites para eventos e falar com a imprensa. A gente sempre teve visibilidade, porque as pessoas gostam do mundo pet. Mas ser listado abre um pouco o leque de assuntos, e você começa a falar inclusive sobre IPO, desempenho. Você é incluído na pauta de uma agenda econômica mais ampla.”

Luciana Dyniewicz e Renée Pereira, O Estado de São Paulo