Criada em uma cidade com guarnição soviética, fascinada pela Califórnia e convencida do poder da liberdade e da força de seus argumentos, Angela Merkel percorreu uma trajetória notável para se tornar uma estadista.
É esse percurso que o jornalista Stefan Kornelius relata na biografia autorizada da chanceler, revelando a pessoa por trás da personalidade política e trazendo à tona detalhes sobre sua vida pessoal e profissional.
Para explicar a natureza de seu poder e seu papel de influência na comunidade europeia, o autor examina o pano de fundo por trás da vida de Merkel - que, em duas décadas, conquistou a posição de liderança entre os governantes do mundo.
Abaixo, leia um trecho do livro.
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No oitavo ano de sua chancelaria, Angela Merkel alcançou o auge de seu poder. Mais uma vez. Já é o segundo mandato que ela encabeça a maior e mais rica economia do continente europeu. Ela lidera seu Partido sem encontrar resistências e quase sem contestações.
Presidia um gabinete de ministros amplamente leais e dóceis. Domesticou seu segundo parceiro de coalizão e assim, ao menos, conseguiu controlar o efeito externo arrasador de seu governo. Castiga a oposição com desconsideração. Na sociedade, goza de grande reconhecimento - nenhum chanceler antes dela pôde contar no sétimo ano de seu governo com um ibope positivo tão alto. O país não vai nada mal, economicamente - usando os Estados vizinhos como critério de comparação. Problemas internos verdadeiramente preocupantes não atormentam a Alemanha.
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Jornalista Stefan Kornelius examina pano de fundo por trás da vida da chanceler para explicar seu papel de influência |
No oitavo ano de sua chancelaria, Angela Merkel alcançou poder e influência também no mundo em geral. Agora, ela pertence a um grupo pequeno de chefes de governos que contam com uma gestão tão prolongada. Na União Europeia, é a última de sua geração - com exceção do eterno primeiro-ministro de Luxemburgo e o primeiro-ministro de Malta, ninguém conta com mais anos no governo do que ela. O presidente da Comissão Europeia iniciou seu cargo um ano antes de Merkel - mas somente com sua ajuda. Ela trabalha ao lado do segundo presidente estadunidense de sua gestão e já encontrou os dois predecessores deles. Em relação ao presidente russo, esboça uma espécie de corrida entre a lebre e o ouriço dos contos de Grimm, para ver quem ficará por mais tempo - nenhum dos grandes líderes internacionais do mundo tem acompanhado Merkel com mais intensidade e rivalizado com ela com mais teimosia como Vladimir Putin. Na China, Merkel vivenciou pela primeira vez uma mudança de direção. Ela esperou ansiosamente pelo encontro com a nova liderança do país porque queria comparar os novos poderosos com seus predecessores que lhe eram familiares.
Merkel deu sua contribuição para um processo de paz no Oriente Médio. Ela cultiva uma relação intensiva e ocasionalmente até mesmo emocional com Israel, um fato que se deve, naturalmente, à história alemã, mas também a um vínculo pessoal que ela se permite apenas raramente em outros casos de sua relação com o mundo. Agora, também ela foi atropelada pelo forte impacto dos eventos no mundo árabe. Com tensão cética, Merkel observa o Oriente Médio e as sociedades agitadas, que queriam se libertar e no final ficaram apenas paradas diante dos portões das mesquitas. Merkel entende bastante de liberdade - ela pode contar sua própria história de liberdade. Contudo, faz dela um uso controlado porque detesta qualquer expressão patética. No fundo, para ela, a liberdade é um assunto muito individual: sentir o prazer da expressão não reprimida, experimentar limites, descobrir, entender e conquistar âmbitos novos - é isso que caracteriza o ímpeto de liberdade muito pessoal dessa mulher que, ao longo de 35 anos, teve que esconder suas ambições e seus dons. Ao que parece, sua fome ainda não foi saciada.
É por isso que Angela Merkel alcançou, no oitavo ano de sua chancelaria, o auge do poder.
Mais uma vez - porque este zênite de possibilidades já lhe foi atribuído várias vezes: depois de ganhar sua primeira eleição como chanceler e de atuar algumas semanas no cargo, depois da coalizão com o SPD, depois da crise financeira de 2008. Repetidamente, Merkel tinha chegado, supostamente, ao auge de sua carreira - porém, ela não acredita na ascensão linear. Para ela, a política é um jogo de somas de zero - um acúmulo de parcelas positivas e negativas, uma constante série de sucesso e fracasso.
E aqui começa o problema: sucesso e fracasso são avaliados não só segundo a estabilidade de uma coalizão, a satisfação dos eleitores ou a frequência de visitas internacionais. Estas são categorias equivocadas. As categorias corretas são: eventos. Perguntado por um jornalista sobre o que desestabilizaria um governo, o primeiro-ministro britânico Harold Macmillan respondeu: "Eventos, meu caro, eventos". Assim, também Angela Merkel participa de um fardo histórico, de um evento, que é o único que decidirá sobre o sucesso ou fracasso de seu mandato como chanceler: a crise.
Não foi ela quem procurou a crise, foi a crise que a encontrou. A crise é uma espécie de figura mitológica amedrontadora, em parte uma Hidra de múltiplas cabeças, em parte Cérbero, o cão do inferno. Inicialmente, apareceu na forma da crise financeira, depois passou pela mutação para uma avançada crise econômica mundial, e finalmente se transformou na crise do Euro. Por trás de tudo isso vislumbram-se vários problemas que podem causar enormes danos: uma crise de dívidas, um problema de crescimento e de concorrência, e no fim uma catástrofe monetária mundial. Esta última ocorreria se o Euro entrasse em colapso sob o peso dos problemas, se a Europa se desfarelasse em suas antigas zonas de moedas nacionais. Não é de todo inimaginável que a Europa possa sofrer um colapso de economias nacionais e fi-nanceiras que possa arrastar consigo, para o abismo, todo o sistema monetário com seus bancos, empresas e pequenos poupadores. Os cenários inspiram medo: os poupadores sacam dos bancos, ramos inteiros da economia ficam insolventes e desmoronam, há uma queda brusca da exportação, altos índices de desemprego, tensões sociais, ascensão de partidos extremistas - e o desmoronamento político da Europa. Tais cenários fazem sentir o peso histórico da crise. Aqui atuam forças que podem causar uma vasta destruição.
Essa crise destruidora foi imposta a Angela Merkel, e sua tarefa política consiste em evitar a destruição. Merkel não governa num momento feliz da história, como foi privilégio, por exemplo, de Helmut Kohl. Ele aproveitou a sorte daquele momento e a dinâmica positiva da revolução libertadora europeia e, com instinto seguro, conduziu o país à reunificação, e a Europa, a um novo florescimento. Não, Merkel comanda uma batalha de defesa, de combate à ruína. Ela não pode prometer paisagens floridas - apenas pode lutar contra a desertificação da Europa.
Portanto, o tema da chancelaria de Merkel é a crise. Konrad Adenauer enraizou a República Federal da Alemanha no Oeste Europeu e impôs um modelo político que gerou um equilíbrio social e uma economia de mercado. Willy Brandt deu os primeiros passos rumo à distensão com o Leste Europeu. E Helmut Kohl entrou na história como o chanceler da unificação.
Merkel recebeu agora seu motivo histórico - isto a fortalece. Ou seja, podemos dizer: por enquanto, a crise lhe cai bem. Sem a crise, sua chancelaria teria muito menos importância.
Com ela, tem a chance de entrar na fileira dos grandes líderes mundiais. Suas decisões determinam os destinos da Alemanha, mas também de toda a Europa. Isto lhe confere importância e poder e, justamente por isto, Merkel está chegando - mais uma vez - ao zênite de sua atuação.
O aumento de seu poder faz-se sentir menos em Berlim do que na esfera da política europeia - em Bruxelas, nas reuniões de cúpula com o presidente francês, na visita em Atenas. Na Europa, Angela Merkel é uma figura sobressaliente e se tornou uma política solitária. Percebe-se uma fixação em sua pessoa, como se dependesse somente dela o continente resolver seus problemas ou não. Esse aumento de poder pode ser observado na frequência dos visitantes em Berlim, na atenção que ela recebe em Washington ou Beijing, nas distorções e demonizações que está sofrendo.
Nos quatro anos de crise, Merkel avançou para a posição de heroína nas revistas políticas. "O mistério Angela Merkel", "A líder perdida", "Dona Europa", "Mãe Sem Coragem", "Attention, it's Angela" - não existe lugar-comum ou clichê que não tivesse sido aplicado a ela. Às vezes, Angela Merkel consegue rir disso, por exemplo, da manchete na revista britânica The Economist: uma charge mostra o navio "Economia Mundial" descendo para o fundo do mar e já longe da superfície. Na ponte de comando, uma voz pergunta, implorando: "Por favor, Senhora Merkel, será que poderíamos agora ligar os motores?".
No entanto, o humor seco é a exceção. A regra é: Merkel com bigode de Hitler; Merkel com os seios desnudos, amamentando os gêmeos poloneses Kaczyski; Merkel com ombros dos quais pinga sangue; Merkel como domina sadomasoquista e um primeiro-ministro espanhol suplicando debaixo de suas botas. O lance mais baixo foi o da revista britânica esquerdista New Statesman, que retratou a chanceler com rosto de terminator e olhos de robô, e que declarou Merkel, em sua história - ao lado das comparações com Hitler que já eram de se esperar -, um perigo maior para a estabilidade do mundo do que o norte-coreano Kim Jong Un ou o presidente iraniano Ahmadinejad. Merkel foi comparada a um jovem baderneiro ou a Nero acompanhando a queda da Roma incendiada e tocando viola.
O jornal francês conservador Le Figaro apresentou uma alternativa para a França: passar para o lado do Norte, com sua dominação germânica, ou se tornar "parte dos países periféricos que os pangermanistas chamam pejorativamente de PIGS" (alusão ao inglêspig, "porco"). Pangermanistas - o termo se referiu provavelmente aos alemães e seus vassalos. O economista socialista Daniel Cohen chamou a Alemanha de "a China da Europa". E o escritor espanhol Javier Cercas ficou preocupado com a possibilidade de que o sul da Europa poderia declarar Merkel a vilã de turno. "As condições econômicas que ela nos impõe são impossíveis de cumprir e provocam sentimentos de raiva e de humilhação, comparáveis àqueles provocados na Alemanha pela ordem econômica ditada pelas nações vencedoras da Primeira Guerra Mundial."
Uma repetição de Versalhes - apenas, desta vez, com os papéis invertidos? A Alemanha sempre tem subestimado o quanto os vizinhos percebem a força econômica do país e o poder político de Merkel como opressores. O malabarista financeiro estadunidense George Soros, declarado adversário critico da lógica alemã do resgate do Euro, alertou Merkel dizendo que a Alemanha, "sendo um poder imperial, não é amada ou admirada pelo restante da Europa. Ela encontrará ódio e resistência, por ser percebida como um poder opressor". Este foi um dos alertas menos dramáticos. Muito mais perigosa foi a ressurreição de velhas teorias de conspiração: após a reunificação, a Alemanha teria defendido o Euro tão enfaticamente porque queria dominar o continente com os meios da política financeira. O que fracassou por duas vezes no caminho militar deveria agora dar certo no "caminho frio", com a ajuda do Euro e do Cent - o imperialismo teutônico, ummasterplan genial.
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