“A festa dos deuses”, pintura de Jan van Bijlert. Defensores da paródia da Santa Ceia, na abertura das Olimpíadas de Paris 2024 na França, dizem que foi esta obra a real inspiração da encenação. Outros não estão convencidos.| Foto: Domínio Público
A cerimônia de abertura das Olimpíadas em Paris, na sexta (26), tinha tudo para ser uma celebração completa da cultura da França. Mas cenas de fundo ideológico, com provocações ao cristianismo, realçaram hipocrisia no evento que prometia celebrar toda a diversidade humana em raças, nações e credos.
O evento começou bem, com uma interessante interpolação entre vídeos gravados e momentos ao vivo, incluindo o inovador desfile de delegações de cada país em barcos no rio Sena. O humorista Jamel Debbouze, visto internacionalmente em filmes como “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (2001) e o jogador de futebol Zinedine Zidane foram os primeiros a portar a chama olímpica.
A tocha passou de Zidane para crianças, e das crianças para uma figura misteriosa com máscara de esgrima que passeou pelos telhados de Paris, uma referência ao parkour, visitando pontos memoráveis como os museus Louvre e D’Orsay, fazendo vários acenos ao teatro, a marcas da moda que carregam a cultura francesa como Louis Vuitton, e acompanhado de cenas engraçadas como o furto da Mona Lisa pelos minions — criados pelo estúdio de animação francês Mac Guff, comprado em 2011 pelo americano Illumination.
Pelo caminho da figura misteriosa, o som de interpretações musicais que misturavam o clássico e o contemporâneo. Uma canção do musical Les Misérables foi misturada a heavy metal. Músicas da cantora Aya Nakamura (nascida no Mali e naturalizada francesa), sucesso do Spotify, foram acompanhadas pelo coral e a banda da Guarda Republicana.
No repertório, escolhido e parcialmente composto pelo diretor musical Victor Le Masne, que fez referência à restauração da Catedral de Notre-Dame de Paris (incendiada em 2019), também foi possível ouvir autores clássicos como Claude Debussy, Georges Bizet (“Carmen”), Maurice Ravel, Frédéric Chopin e Jacques Offenbach.
Maior parte das provocações vieram do feminismo pró-aborto
É de Offenbach “Galop infernal” da opereta “Orfeu nos Infernos”, uma das músicas mais associadas aos cabarés franceses e à dança cancan, surgida em meados do século XIX, em que as mulheres chutam suas saias no ar expondo as pernas. Na primeira parte da cerimônia a cantora Lady Gaga reproduziu um sucesso da música de cabarés como o Moulin Rouge. Dezenas de bailarinas dançaram ao som de Offenbach.
Segundo o SportTV, os próprios organizadores da cerimônia disseram que a dança cancan é “antipatriarcal, feminista e anticlerical”.
A cerimônia teve dez segmentos baseados no lema da Revolução Francesa: Liberté, Égalité, Fraternité. Mas foi além, com a adição de seções como “sororidade” — do latim soror, “irmã”, palavra preferida por feministas que pensam que o frater (“irmão”) na raiz de fraternidade exclui o gênero feminino.
Nesta seção, dez mulheres francesas foram homenageadas, da pioneira dos direitos das mulheres e abolicionista Olympe de Gouges (morta na guilhotina pelos revolucionários) às proponentes da legalização do aborto Simone Veil, Gisèle Halimi e Simone de Beauvoir.
Veil, que foi advogada, parlamentar francesa, presidente do Parlamento Europeu e ministra da Saúde, foi uma das figuras mais proeminentes na legalização do aborto na França. A lei do aborto promulgada em 1975 é conhecida como “Lei Veil”. A peça legislativa permitia matar o feto até o limite de 10 semanas. Foi o início de um processo que culminou em março de 2024, quando a França declarou o aborto uma “liberdade garantida” em sua Constituição. O limite foi aumentado para 14 semanas, período no qual a ciência tem reconhecido que o feto é capaz de sentir dor.
Gisèle Halimi foi também advogada e, junto com a ativista e filósofa Simone de Beauvoir e seu marido, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (que foi defensor de Stálin), fundou uma associação pró-aborto chamada “Choisier” (“Escolher”). Halimi tornou-se proeminente como advogada de defesa de uma mulher que foi estuprada, ajudando a influenciar a opinião pública.
Simone de Beauvoir, uma unanimidade na esquerda, foi coautora do “Manifesto das 343”, de 1971, em que 343 mulheres confessaram publicamente ter feito abortos ilegais, desafiando as autoridades a puni-las. Com o marido e outros nomes da intelectualidade francesa como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida, de Beauvoir assinou em 1977 uma petição pela eliminação da idade mínima de consentimento para sexo na França, 15 anos. Críticos até hoje veem na petição uma defesa da pedofilia.
Diretor artístico da cerimônia de abertura nega intenção de parodiar a Santa Ceia
Foi no meio da cerimônia, na seção “Festividade”, que aconteceu a provocação mais chamativa. Em uma ponte, uma dúzia de artistas, incluindo drag queens e outros membros da comunidade LGBT, usaram uma passarela para desfiles que fez as vezes de mesa para uma representação de um banquete de homenagem ao deus Dionísio ou Baco — um bacanal, portanto.
A disposição dos participantes em apenas um lado da mesa, com uma figura feminina com halo na cabeça, ao centro, parecia ser uma paródia da pintura A Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Em vez de comes e bebes, foi apresentado à mesa, em uma bandeja gigante, o músico Philippe Katerine, quase nu e pintado de azul para representar Dionísio.
Também tem o nome Dionísio o primeiro bispo de Paris, canonizado, que teria caminhado pela cidade após decapitado carregando a própria cabeça, pronunciando um último sermão antes de morrer. Alguns críticos viram na cena anterior de Maria Antonieta decapitada, na janela do prédio em que a própria figura histórica foi presa, cantando a canção de heavy metal, outra possível provocação.
Muitos espectadores imediatamente interpretaram a cena dionisíaca como uma ridicularização da Santa Ceia bíblica. No dia seguinte, a Conferência dos Bispos da França, sem deixar de apontar generosamente que a cerimônia teve “momentos maravilhosos de beleza”, criticaram-na por ter incluído “cenas de escárnio e zombaria do cristianismo, que deploramos profundamente”.
Para os bispos, “cristãos de todos os continentes foram feridos pelo excesso e pela provocação de certas cenas”. O arcebispo parisiense Laurent Ulrich, contudo, ficou em silêncio. Nas redes sociais, críticos apontaram incoerência do Comitê Olímpico Internacional, que tem regras rígidas contra as manifestações religiosas dos atletas, mas teria permitido a provocação de cunho religioso, e perguntaram por que os idealizadores não tiveram coragem de fazer algo similar contra o islã.
“Poderia ter sido projetada pelo departamento de propaganda do Estado Islâmico”, afirmou sobre a cerimônia o psiquiatra e ensaísta conservador britânico Theodore Dalrymple. “É difícil que o declínio cultural possa ir além disso”, disse o escritor.
Desculpas e explicações
No dia da cerimônia, a conta oficial das Olimpíadas no X disse que “a interpretação do deus grego Dionísio nos conscientiza para o absurdo da violência entre seres humanos”.
Thomas Jolly, diretor artístico da cerimônia, disse que sua intenção era celebrar a diversidade, a inclusão e a tolerância. “eu quero que esta cerimônia inclua a todos”, disse. “Precisamos todos celebrar essa diversidade”. Ele completou, quase reconhecendo a acusação de paródia da Santa Ceia, que a França não tem leis antiblasfêmia e que os franceses são livres para não cultuar religiões.
As declarações sobre o que inspirou o bacanal foram contraditórias. “Thomas Jolly se inspirou na famosa pintura de Leonardo da Vinci para criar a peça”, disseram produtores da cerimônia ao site TheWrap, no domingo. “Ele não é o primeiro artista a referenciar a mundialmente famosa obra de arte. De Andy Warhol aos Simpsons, muitos fizeram antes”.
No sábado, Michaël Aloïsio, porta-voz do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos Paris 2024, afirmou à rádio estatal Franceinfo que “estamos firmes em nossa decisão de ultrapassar limites”. A porta-voz dos jogos olímpicos, Anne Descamps, disse à agência Reuters no domingo que “claramente nunca houve uma intenção de mostrar desrespeito a algum grupo religioso”. Ela afirmou que o evento quis celebrar a tolerância a comunidades: “acreditamos que essa meta foi atingida. Se as pessoas se sentiram ofendidas, pedimos sinceras desculpas”.
No mesmo dia, Jolly disse à emissora francesa BFMTV que “queria ser bastante teatral” e contradisse os produtores. Afirmou que a pintura renascentista “não foi minha inspiração e isso deveria ser bem óbvio”, descrevendo Dionísio como deus do vinho, um importante produto francês, e pai de Sequana, deusa do rio Sena. “A ideia foi mostrar uma grande celebração pagã, ligada aos deuses do Olimpo, e assim das Olimpíadas”.
Não veio de Jolly, mas de comentaristas como Walther Schoonenberg, historiador da arte holandês, uma sugestão de que a real inspiração para a seção da cerimônia foi a pintura “A festa dos deuses”, do artista holandês Jan van Bijlert, terminada entre 1635 e 1640. É improvável que essa explicação convença os ofendidos: o artigo da Wikipédia em inglês dizia até o começo da redação desta reportagem que a pintura de van Bijlert “foi inspirada diretamente na Última Ceia de Leonardo da Vinci e na época já era muito controversa”. O trecho foi deletado pelos editores da enciclopédia na segunda às 16:32, horário de Brasília.
A justificativa dos editores da Wikipédia é que a afirmação não era amparada pela referência fornecida. O próprio Schoonenberg, contudo, admitiu no X que a obra de seu conterrâneo foi inspirada no quadro de Leonardo.
Barbara Butch, a D.J. que ocupou a posição central na peça com um halo prateado na cabeça, confirmou a paródia. Segundo o editor de política do jornal The Post Millenial, Thomas Stevenson, Butch postou no Instagram que ela representou um “Jesus olímpico” e parecia atribuir a ideia a Jolly, a quem ela chamou na mesma postagem (story) de "presidente do mundo". Butch também postou uma manchete da NBC News que dizia que a performance lembrava a Santa Ceia e irritou conservadores, sem questionar a comparação. Finalmente, uma captura de tela de outro post, repostado por uma das pessoas que fizeram o halo, mostra Butch comparando diretamente a montagem da cerimônia com a pintura de Leonardo da Vinci. Assim como Jolly, ela passou a dizer depois que não havia relação entre a performance e a pintura. Defensores da D.J. dizem que ela estava só brincando antes.
Eli Vieira, Gazeta do Povo