sexta-feira, 15 de outubro de 2021

'O fascismo cultural fugiu do controle', por Brendan O'Neill, da Spiked

 

Bright Sheng | Foto: Montagem/Shutterstock


Os neomaoistas do século 21 estão decididos a destruir qualquer pessoa ou ideia que consideram 'problemáticas'


Imagine ter o infortúnio de passar não por uma, mas por duas revoluções culturais. Por duas vezes estar em meio a um espasmo autoritário em que jovens intolerantes com os olhos arregalados caçam pensadores “incorretos” para envergonhar e punir. Essa foi a infeliz experiência de Bright Sheng. Ele viveu a Revolução Cultural original na China de Mao Tsé-tung quando era criança, e agora, adulto, entrou na mira dos neomaoistas, que estão tumultuando as universidades americanas. Esses intolerantes da discordância estão loucos para destruir aqueles que consideram “problemáticos”, como se fossem a Guarda Vermelha da China nos anos 1960.

Sheng é professor de música na Universidade de Michigan — pianista e compositor de sucesso. Suas obras foram executadas por todos os grandes grupos de música clássica, da Filarmônica de Nova Iorque à Orquestra Nacional Sinfônica da China. Mas essas conquistas estelares não oferecem proteção contra a turba woke. O crime de Sheng, aos olhos deles? Ele mostrou aos alunos o filme Otelo, de Shakespeare (de 1965), em que Laurence Olivier notória — e, agora, repreensivelmente — fez uso do blackface para interpretar o mouro. Humilhem-no! Coloquem uma placa pendurada em seu pescoço! Ele errou e precisa aprender a lição.

A reação ao crime cultural de Sheng foi imediata e implacável. O motivo por que ele mostrou o filme para os alunos de graduação da sua disciplina de composição obviamente não era provocar nem ofender com a imagem de um dos atores mais famosos do século 20 usando maquiagem para fingir ter a pele negra. Não, ele estava ensinando a relação entre a composição musical e as obras de Shakespeare — uma proposta totalmente legítima e, sem dúvida, esclarecedora do ponto de vista educacional. Mas os irascíveis jovens de classe média alta do campus moderno tiveram uma opinião diferente. “Fiquei chocada”, declarou uma aluna ao Michigan Daily. Nossas aulas “deveriam ser um espaço seguro”, disse ela. No entanto, foi Laurence Olivier coberto de graxa de sapato que invadiu suas vidas protegidas e lhes deu pesadelos. O horror.

Depois de receber reclamações dos estudantes, David Gier, reitor da Faculdade de Música da Universidade de Michigan, escreveu uma carta basicamente expondo Sheng. “As ações do professor Sheng não estão de acordo com o compromisso da nossa escola com ações antirracistas, diversidade, igualdade e inclusão”, afirmou. Imagine ver uma multidão se formar contra um de seus professores de música mais bem-sucedidos — apenas por mostrar um filme — e efetivamente ficar do lado da multidão, em vez de defender o professor? Parece um exemplo clássico de como a tirania da mentalidade woke funciona no campus — a covardia institucional se funde com a intolerância febril de estudantes ingênuos, fazendo surgir um clima frio e asfixiado.

Bright Sheng deveria saber que no universo kafkiano do identitarismo racial não há como se defender de acusações de racismo

Uma das coisas mais impressionantes sobre a situação de Sheng é que seu pedido de desculpas acabou piorando as coisas. Ele se desculpou duas vezes: a primeira poucas horas depois de exibir Otelo, reconhecendo que o filme é “antiquado e insensível do ponto de vista racial”, e a segunda alguns dias depois, afirmando que não tem nenhum tipo de animosidade em relação a nenhum grupo racial ou étnico e que, na verdade, ele trabalhou com pessoas de diferentes raças muitas vezes ao longo da carreira. Nossa! Que erro! Sheng deveria saber que no universo kafkiano do identitarismo racial não há como se defender de acusações de racismo. Quando o dedo apontado da condenação se volta contra você, a única opção é abaixar a cabeça envergonhado, confessar sua ignorância racial e prometer “melhorar”. Qualquer outra coisa vai apenas aumentar mais a temperatura da situação.

Sheng foi atacado tanto por suas desculpas quanto por ter mostrado o filme Otelo. Como a Newsweek afirmou, de forma bastante eufemística, “a maneira como ele formulou [suas] desculpas aumentou mais a polêmica”. O que isso significa é que um bando de neomacartistas, ofendidos com a temeridade que Sheng cometeu ao se defender das insinuações de racismo, escreveu uma carta exigindo que ele fosse retirado do curso de composição. Dezoito alunos do curso de composição, 15 de pós-graduação e nove funcionários da universidade escreveram para o reitor de música exigindo que Sheng fosse removido. Segundo eles, o curso havia sido maculado pelo blackface de Laurence Olivier. Então Sheng se retirou.

Vamos falar a verdade sobre o que aconteceu. Em uma prestigiosa faculdade de música, um compositor brilhante foi perseguido em um de seus próprios cursos por mostrar aos alunos Laurence Olivier interpretando Otelo. Pense nisso. Agora, todos podemos concordar que o blackface é antiquado, e que nenhum ator sério faria isso hoje em dia. Mas estamos falando de Laurence Olivier e de Shakespeare sendo mostrados em uma situação educativa cheia de jovens adultos que deveriam apreciar a cultura em toda a sua complexidade. A humilhação pública de Sheng confirma a tacanhez e o barbarismo da cultura woke. A ideologia hipersensível e profundamente intolerante é hostil à cultura, à arte e à abertura de mentalidade que esses nobres esforços exigem.

O tratamento que Sheng recebeu traz à mente outro episódio sombrio da história moderna, no qual a Guarda Vermelha, e não a “Guarda Woke“, assumiu a tarefa de punir aqueles que mantinham ideias “obsoletas”. Sheng viveu a Revolução Cultural. Nasceu em Xangai em 1955. A Guarda Vermelha confiscou o piano de sua família por considerá-lo um luxo “burguês”. Esses guerreiros maoistas roubaram do jovem Sheng os meios de tocar música; os neomaoistas da cruzada politicamente correta dos dias de hoje roubaram dele um de seus meios de ensinar música. Em ambas as situações, ele foi punido por filisteus rudes e censuradores que se recusam a tolerar quaisquer práticas ou ideias que considerem antiquadas ou “problemáticas”.

Assustadoramente, um dos alunos da Universidade do Michigan afirmou que a renúncia de Sheng era o “mínimo” que ele podia fazer. O que mais eles querem? Mandá-lo para a reeducação? Raspar sua cabeça e fazê-lo desfilar em praça pública? Pendurar uma confissão em seu pescoço, em que ele admite ter pecado contra a nova moral?

Dizem que a cultura do cancelamento não existe. Ela existe, e tem ecos sombrios da Revolução Cultural, que foi uma guerra enlouquecida contra os “Quatro Velhos” — ideias velhas, velhas culturas, velhos costumes e velhos hábitos. Da mesma forma, a “Revolução Woke” de hoje deseja acabar com todas as coisas “obsoletas”, sejam estátuas de figuras históricas que tinham ideias diferentes das nossas, programas de comédia que façam piadas de mau gosto e não politicamente corretas, grandes obras da literatura que contenham termos racistas (incluindo obras expressamente antirracistas, como To Kill a Mockingbird, ou O Sol É para Todos) e qualquer um que se apegue à crença aparentemente antiquada de que existe um sexo biológico. Vamos punir e eliminar todos eles. Esse é o maoismo do século 21, e qualquer instituição de ensino ou cultural que abrace isso está assinando a própria sentença de morte.


Brendan O’Neill é o jornalista-chefe de política da Spiked

Revista Oeste