sexta-feira, 20 de agosto de 2021

"Israel e a vida pós-coronavírus", por Gabriel de Arruda Castro

 


O experimento israelense dá uma amostra de como deve ser o mundo quando a pandemia finalmente deixar de ser uma ameaça


Émeio da tarde em Mea Shearim, um dos bairros de maioria haredi (ultra-ortodoxa) em Jerusalém. As calçadas estão tomadas por crianças que acabaram de sair da escola local (e, como os haredis têm em média sete filhos, há meninos por toda parte). Nas lojas da Rua Malkei, a artéria comercial do bairro, famílias inteiras entram e saem a todo momento. A indumentária inclui chapéu para os homens e uma espécie de lenço na cabeça para a maior parte das mulheres. Mas a máscara não faz parte do figurino.

Não muito longe dali, na pequena Igreja Católica que oferece missas em hebraico na capital israelense, uma única taça de vinho é compartilhada entre os fiéis na hora da comunhão (a auxiliar do padre passa rapidamente um guardanapo na borda da taça entre uma pessoa e outra). Do outro lado da cidade, horas depois, em uma celebração de Shabbat (o sábado, dia sagrado para os judeus) em uma família de judeus etíopes, a cena se repete: como diz a tradição, a refeição é iniciada com o repartir de um mesmo pedaço de pão, que passa de mão em mão, e de uma taça de vinho da qual todos os convidados bebem. Ninguém usa máscara.

Também não há máscaras no bar moderno na orla de Tel Aviv, a principal cidade litorânea de Israel, no que parece ser uma festa de aniversário animada por música pop em hebraico. A poucos metros dali, as praias e o calçadão estão lotados, em um verão em que raramente a temperatura fica abaixo dos 30 graus durante o dia.

Estive em Israel por duas semanas, de 1º a 14 de agosto, com uma organização sem fins lucrativos com base nos Estados Unidos. Foi uma oportunidade de vislumbrar como será a vida depois da pandemia. Na superfície, tudo em Israel parece normal. Mas também é verdade que as autoridades israelenses não querem baixar a guarda e ainda enfrentam incertezas sobre as medidas de contenção do vírus.

O experimento israelense dá uma amostra de como deve ser o mundo quando a pandemia finalmente deixar de ser uma ameaça: ajustes constantes nas políticas estatais. Avanços e recuos. Para os turistas, testes, muitos testes (ao todo, fiz quatro em solo israelense). Sim, é preciso tomar a vacina para entrar. Não, a CoronaVac não é aceita. Não, passageiros vindos do Brasil ainda não são autorizados a visitar Israel (a não ser que passem duas semanas em um dos países fora da “lista negra” israelense, como os Estados Unidos).

Na primeira semana de março, 44% da população já havia sido completamente vacinada

Também precisei fazer um teste de covid 72 horas antes do embarque, ainda em solo americano. Chegando lá, mais três testes — dois do tipo PCR, para determinar a presença do vírus, e um exame de sangue, para confirmar que a vacina de fato criou anticorpos. Só então estávamos finalmente livres. Ou quase todos: no grupo de 12 pessoas em que estava, uma não passou pelo teste de anticorpos e precisou ficar sete dias confinada num hotel. Ah, sim, para deixar o país também é necessário fazer outro teste. Quem tem o vírus precisa de outra quarentena e não pode embarcar.

Mas essas são as normas para turistas. Uma caminhada pelas ruas de Tel Aviv ou Jerusalém basta para notar que, para quem mora em Israel, a pandemia parece ter ficado para trás. E faz sentido: no agregado, a vacina está disponível para todos há meses, e a taxa de mortes é similar à do Canadá e melhor do que a da Alemanha, Áustria, Suíça e Holanda.

A taxa de vacinação em Israel acelerou rapidamente no começo deste ano, graças à capacidade de mobilização do governo e da sociedade israelenses. Isso deixou o país em primeiro lugar no ranking de imunizações. Na primeira semana de março, 44% da população já havia sido completamente vacinada.

O povo de Israel aprendeu faz tempo que, para sobreviver como nação livre, precisa ser capaz de esforços coletivos com agilidade, planejamento — e uma dose de sacrifício. Todos os jovens precisam se alistar nas Forças Armadas, inclusive as mulheres. As ameaças constantes de mísseis enviados pelos palestinos, em Gaza, ou pelo Hezbollah, na fronteira com o Líbano, também ensinaram os israelenses a tomar a iniciativa. O governo precisa ser eficiente, a sociedade civil precisa ser proativa e a população precisa confiar no governo. Se um desses elementos falhar, a existência do país está em risco. E isso não é um exagero.

São 9 milhões de pessoas espremidas sobretudo em uma pequena faixa de terra entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo. Tel Aviv, a segunda maior cidade israelense, está a apenas 60 quilômetros da Faixa de Gaza, controlada pelo grupo terrorista Hamas. Das montanhas do Deserto da Judeia, na região central do país, é possível ver, de um lado, Jerusalém, e do outro, a Jordânia — país com o qual Israel já guerreou no passado. A distância é de apenas 40 quilômetros. Ainda mais perto fica a cidade de Ramallah, sede da Autoridade Palestina. Na fronteira norte, vilarejos israelenses ficam a 1 quilômetro da área controlada pelo Hezbollah no Líbano.

Forjados por essa ameaça constante e pela necessidade de que cada casa seja uma unidade de defesa, os israelenses parecem ter aplicado a lição no combate ao coronavírus — sem, entretanto, abrir mão de suas rotinas.

E existem razões para crer que a população de Israel tem características peculiares. De acordo com um índice desenvolvido pelo pesquisador holandês Geert Hofstede, que dedicou sua carreira a estudar as diferenças socioculturais entre os países, o povo israelense é pouco individualista quando comparado aos demais países desenvolvidos. Nesse critério, em uma escala de 1 a 100, a nota de Israel é de 54, contra 91 nos Estados Unidos, 89 no Reino Unido, 76 na Itália, 71 na França e 69 na Noruega. Neste critério, os israelenses se aproximam mais dos japoneses (46 pontos na mesma escala).

O Brasil é ainda menos individualista que Israel: a pontuação 38, na mesma escala. Mas aqui entra uma segunda variável. Israel tem uma das performances mais baixas entre todos os países no critério “distância do poder”. A nota de Israel é de 13, em uma escala de 0 a 100 (contra 31 na Noruega, 40 nos Estados Unidos, 68 na França e 69 no Brasil). Isso significa que os israelenses têm aversão a líderes autoritários e prezam pela igualdade. “Com uma visão igualitária, os israelenses acreditam na independência, nos direitos iguais, em líderes acessíveis e em uma gestão que medeia e dá poder”, resume o relatório de Hofstede.

Alto coletivismo e alta dependência do Estado (caso do Brasil) formam uma combinação perigosa. Alto coletivismo e alta independência (caso de Israel) são os traços de um povo altivo e que não se apoia no governo para fazer aquilo que pode por conta própria. A combinação entre o baixo individualismo e a distância do poder ajuda a explicar, portanto, a singularidade de Israel e sua sociedade, que, embora confie nos governantes, prefere ser autossuficiente. Parece ser essa a combinação que permitiu aos israelenses largar na frente na retomada da vida normal, apesar dos percalços no caminho.

É preciso acrescentar, entretanto, que nem tudo saiu como o previsto

As coisas pareciam muito bem encaminhadas em junho. O número de casos despencava, o de mortes diárias chegou a zero e o governo anunciava a reabertura geral das fronteiras para julho. Mas a variante Delta fez a curva de contágios voltar a crescer e levou o governo israelense a colocar o pé no freio nos planos de reabertura e a adiar o ingresso de turistas — exceto em grupos com autorização especial do governo. E, de certa forma, o meu grupo teve sorte. Preocupado com a elevação no número de novos casos de covid, o governo endureceu as regras. A partir de agora, quem entra em Israel precisa passar por uma quarentena de sete dias obrigatória para todos os visitantes, sem exceção (uma comitiva de parlamentares americanos que deveria ter visitado o país nesta semana acabou cancelando a viagem por causa das novas regras).

Sem turistas, será difícil que a vida volte completamente ao normal em Jerusalém. As lojas que permanecem abertas exibem cartões-postais já amarelados, um ano e meio depois que as fronteiras globais se fecharam e o fluxo de turistas cessou. O turismo é parte importante da economia local, e as muitas lojas fechadas no Quarteirão Cristão de Jerusalém atestam que a pandemia continua tendo efeitos visíveis também em Israel. O país recebeu 4,5 milhões de turistas em 2019. É metade da população fixa do país. Com o adiamento da abertura das fronteiras, muitos israelenses terão dificuldade em retomar a rotina.

É provável, entretanto, que as crianças de Mea Sharim continuarão indo à escola livremente, que a missa continuará sendo feita nos moldes costumeiros e que as tradições do Shabbat continuarão sendo seguidas à risca. Para um povo que resistiu a quase 2 mil anos de exílio, sobreviveu ao Holocausto e já lutou nove guerras nos últimos 80 anos, a covid-19 parece um obstáculo menor.

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Revista Oeste