segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

"Ela: quem manda e continuará mandando é Cristina Kirchner", por Vilma Gryzinski

Quem não gostaria que a esperança vencesse a experiência na Argentina?
Quem não gostaria que Alberto Fernández se revelasse uma surpresa, um presidente peronista que criasse mesmo o prometido paraíso sobre a terra, ou pelo menos garantisse um churrasco eterno para todos?
Que renegociasse a dívida, controlasse os gastos públicos e produzisse um verdadeiro milagre argentino-keynesiano, sem arruinar o país, sem jogá-lo mais fundo ainda na condição de pária internacional, sem quebrar os cofres e sair cantando vitória?
Que os gestos de conciliação, como os vistos na missa compartilhada ontem com Mauricio Macri, fossem a marca de um governo disposto a romper o mesmo ciclo de sempre?
A resposta talvez se resuma a duas palavras: Cristina Kirchner.
A ex-presidente, suficientemente astuta para se colocar na falsamente humilde condição de vice, quer sangue.
A vingança longamente planejada e que agora começa a ser docemente fruída foi anunciada por ela mesma.
“Perguntas vão ter que responder vocês”, disse, desafiadora, aos juízes que a enquadraram num dos tantos e tão escandalosos casos de corrupção que dispensam apresentações (esse especificamente é sobre direcionamento de verbas públicas para um empreiteiro amigo, imaginem só que surpresa).
Como uma versão feminina cármica de Fidel Castro, enrolou-se no poncho de vingadora desmascarada e anunciou: “A história me absolverá”.
Durante três horas, ela falou o que lhe deu na cabeça.
É o que continuará a fazer durante os próximos quatro anos.
Vale repetir, uma frase Jorge Fernández Díaz, refinado analista do La Nación, que dispensa tradução por causa da força que tem no original em espanhol: “La jefa es la que puso los votos y es la presidenta”.
Javier Calvo, diretor de redação do Perfil, usou de uma metáfora para falar a mesma coisa: “Se ele é o dono da caneta presidencial, ela tem a tinta”..
Calvo acredita numa convivência entre criadora e criatura tanto por interesse mútuo quanto por exigência lógica.
“Custa crer seriamente que com os problemas excruciantes que tem a Argentina, Alberto e Cristina apostem de alguma maneira contra si mesmos: seja por convicção ou necessidade, têm chances de sobreviver se se entenderem, não se romperem.”

ESCOLA HARRY POTTER

Se a lógica fosse o fator predominante, obviamente não estaríamos falando da Argentina.
Onde o o caso do embaixador do México, filmado afanando um livro na maravilhosa Ateneo, é o único assunto que compete com o novo governo e os prognósticos de ruptura entre os Dois Fernández – o sobrenome de solteira de Cristina, que sempre o usou, segundo a tradição herdada da Espanha, até ser mais conveniente assumir o Kirchner do marido.
O sorriso incontrolável debaixo do bigodão, compreensível para um político de bastidores como Alberto Fernández, que nunca, jamais, poderia sonha com a presidência, até ser ungido pelo dedazo de Cristina, não obscurece a realidade: o caminho para a Casa Rosada será feito, todos os dias, sobre cacos de vidro.
A “rachadinha” pactuada para a formação do novo governo, com cada uma das 248 correntes peronistas levando um ou mais ministérios e os cristinistas aceitando modestamente apenas o que mais interessa, já começa com uma forte garantia de fracasso.
Apesar da imagem de simpática juventude e de capacidade acadêmica, o novo ministro da Economia, Martín Guzmán, vive numa espécie de realidade paralela.
O outro nome disso é o programa de Reestruturação de Dívida da Universidade de Columbia, que ele dirigia como discípulo de Joseph Stiglitz.
Nem o Nobel de Economia e os serviços prestados em países da Europa Orienta pós-comunista salvam Stiglitz das duas características que passaram a defini-lo: é o teórico “preferido” de Cristina Kirchner e do papa Francisco.
Os fernandistas – de Alberto – plantaram que o novo presidente inclinou-se, no último instante, pelas ideias de Guzmán, preterindo o candidato dado como certo, Guillermo Nielsen.
A principal ideia de Guzmán é que ele é heterodoxo. Propõe que a Argentina não pague o principal ou os juros da dívida até 2022, não peça mais empréstimos ao FMI, não faça o default e reative rapidamente a economia.
Isso será feito “colocando dinheiro no bolso do povo”. Tradução: aumento da bolsa família, das aposentadorias básicas, do salário mínimo.
Como fazer isso num país, mais uma vez, falido?
Talvez Harry Potter tenha a resposta e Hogwarts tenha virado uma nova escola de economia,. Ou Stiglitz. Ou o papa.
Só não perguntem a Cristina Kirchner.
Ela está ocupada com assuntos mais importantes, como vingança, revanche, destruição dos inimigos.
Já transmitiu o dia-a-dia, ou o toma lá dá cá, para o filho Máximo Kirchner, mas não ficou alheia na hora de colocar um fiel colaborador, Carlos Zannini, como procurador do Tesouro.
Alberto Fernández disse que foi ideia dele e uma forma de compensação a Zannini “pelos 107 dias que passou detido injustamente”.
Zannini foi acusado de garantir a impunidade dos agentes iranianos responsabilizados pelo atentado contra a AMIA, a associação judaica atingida por um carro-bomba em 1994 – o caso que paira sobre a Argentina há um quarto de século.
“Eu sou um inocente que foi preso”, disse ele quando a justiça decretou sua libertação.
Onde foi mesmo que já ouvimos isso?
Ah, e adivinhem quem não foi à missa da conciliação onde Macri e Fernández se abraçaram, na basílica de Nossa Senhora de Lujan.

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