segunda-feira, 31 de julho de 2017

‘É preciso recompensar quem aponta corrupção’, diz professor de Direito Administrativo da FGV

Eduardo Kattah e William Castanho - O Estado de S.Paulo


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O advogado Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito Administrativo da FGV-SP Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO


O advogado Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito Administrativo da FGV-SP, é um dos responsáveis por um estudo em curso que propõe “medidas de colaboração público-privada contra a corrupção”. O objetivo é formatar um conjunto de propostas não penais que contribuam para prevenir atos ilícitos envolvendo recursos públicos. Entre as medidas estão a recompensa administrativa – por meio de privilégio nas licitações futuras para contratações públicas - a empresas que denunciarem cartéis e sobrepreços. O estudo propõe também “proteção e estímulos para que pessoas físicas ou jurídicas não envolvidos em irregularidades na administração pública que denunciarem e colaborarem efetivamente nas investigações”. Essa recompensa se daria por meio do recebimento de porcentual das indenizações ou multas que vierem a ser arrecadadas. Em entrevista ao Estado, Sundfeld critica o excesso de prisões provisórias com base no que chama de “elementos precários”, mas diz que é “uma lenda” afirmar que as delações premiadas “estão sendo todas forçadas”.
Quais medidas alternativas às soluções penais podem prevenir a corrupção?
Uma parte delas está ligada à reforma do regime de licitações e contratos, um setor em que há muito campo para desvios. Nesse trabalho tem projetos de lei, emenda constitucional, nos quais estão propostas, entre elas, de mudanças no regime das contratações e das licitações públicas para tentar influenciar na melhoria da competição e, com isso, diminuir as barreiras burocráticas na execução do contrato que geram oportunidades de corrupção e insegurança. O outro lado é um conjunto de medidas outras na esfera administrativa, mas que possa fechar barreiras da corrupção e possa facilitar a descoberta de corrupção sem ser necessariamente por meio de medidas penais ou de colaboração penal.
Há casos de práticas reiteradas de corrupção mesmo com a Lava Jato em estágio avançado. A sensação de impunidade prevalece na gestão pública?
Acho que sim. Ela diminui um pouco porque os riscos aumentaram, mas há um histórico de uma quantidade de gente que vive de fazer práticas desse tipo. Deve estar faltando mecanismos que coíbam a corrupção. É importante combater a corrupção ocorrida no processo penal, mas é preciso barrar as oportunidades para ela não ocorrer. Isso nós ainda não conseguimos mudar.
Precisa mudar a relação público-privada?
Isso. Existe muito espaço para uma relação público-privada promíscua na gestão pública. E isso não mudou. Claro que existem as intenções do governo, existe gestão na empresa estatal, uma diferente da outra, é algo que tem a ver com as pessoas que dirigem. Pode ter mudança aqui, uma hora para melhor, uma hora para pior. Isso vai variando, mas, do ponto de vista das práticas gerais de gestão e as normas que regulam isso, nós não mudamos.
O sr. se refere a uma reforma da Lei 8.666, a Lei de Licitações? O que precisa ser mudado?
Dou dois exemplos. Um na área da licitação, no processo da escolha da empresa, e outro na área da gestão do contrato. Na área da licitação, a Lei 8.666 é ainda muito impactada pela ideia de proteção de certos tipos de empresas. Exemplo: regras de proteção das empresas brasileiras. Elas estão lá nessa lei. Esse fechamento do mercado não começou agora. A história da Petrobrás é ligada ao fechamento do mercado. Em 1969, foi editado um decreto para tornar regra geral algo que as empresas brasileiras que vinham trabalhando na Petrobrás queriam garantir que continuasse, seja na Petrobrás, seja na administração geral. O que era? Não se podia contratar empresa estrangeira. Era uma proibição. E caso não houvesse empresa brasileira que atuasse naquela área, não tivesse alguém competente, se podia contratar uma empresa estrangeira, mas tinha de colocar uma brasileira no consórcio. Essas ideias repercutiram na Lei 8.666 e está lá que nos consórcios entre empresas brasileiras e estrangeiras, a brasileira vai ser a líder do consórcio. Há nessa lei ainda proteções do mercado para empresas brasileiras o que diminui a competição e para empresas que já atuam no mercado público. A regra de habilitação, para que uma empresa possa participar do processo, é focada na apresentação de atestado de desempenho anterior, em obras e serviços semelhantes. Na verdade é um mecanismo para que não haja muita contestação ao mercado dessas empresas. Então, isso precisa mudar. É preciso aumentar a competição. É preciso criar competição de verdade na licitação. Nos contratos, o problema é o excesso de discricionariedade da administração pública. O que acontece? Um fenômeno: a tal pedalada contratual. A administração pública não paga e acha que não tem obrigação de pagar, até porque a Lei 8666 prevê que o contratado só pode pedir a rescisão do contrato depois de 90 dias de atraso. Sabe lá o que é acumular 90 dias de crédito? É uma loucura. O que acontece é que esta empresa vai ser pressionada a encontrar caminhos para liberar o contrato.
As propostas se baseiam em experiências internacionais?
Uma das nossas sugestões é usar outros mecanismos já utilizados na experiência internacional ou na esfera penal para incentivar a maior reação dos agentes públicos à corrupção ou práticas estranhas que começam ver à sua volta. Temos estruturas muito poderosas, com gente ótima, mas lá dentro ocorre corrupção e ninguém descobre. Por que ninguém conseguiu barrar isso? Provavelmente porque não há incentivos suficientes. Então, um dos incentivos que se pode dar é recompensa financeira para quem der informações na esfera administrativa, e não só na área penal, para quem der informações que levem a descobrir práticas de corrupção. Isso para incentivar os gestores que não têm nada a ver com isso, mas que estão vendo as coisas. Agora por que um gestor que não está envolvido em práticas de corrupção e vê acontecer coisas estranhas vai hoje sair e procurar alguém para contar que está acontecendo algo errado? O que ele ganha com isso? O que ele pode perder? Bom, ele está lidando com máfias. Então, é preciso criar incentivos para essas pessoas irem fazer denúncias. Outra coisa que nós podemos fazer é dar vantagens para empresas que denunciam as outras em práticas de cartel. Porque um dos mecanismos essenciais dos desvios que a Lava Jato está mostrando é um acordo entre empresas.
É uma especial de delação premiada empresarial?
É. Mas com um efeito na licitação, com uma vantagem comercial.
A Lava Jato tem sido muito questionada pelos seus métodos. O Ministério Público Federal argumenta que práticas constantes ou reiteradas de corrupção justificam as prisões preventivas...
A prisão é um instrumento eficiente para desmontar esquemas em andamento, para desestruturar pessoas que estão sendo investigadas. E isso pode ser positivo para as investigações. Agora, de outro lado, essas prisões são decretadas sempre com elementos precários, indícios. E o risco é que não tem muito critério objetivo na lei para impedir arbitrariedade e excessos. É um risco enorme. Prender pessoas é algo complicadíssimo. Então, é muito complicado porque é impossível acabar com a prisão preventiva ou temporária como mecanismo para se desestruturar esquemas ou até para desestabilizar pessoas investigadas, impedir que ela se proteja contra a investigação. Por outro lado, isso está atribuído ao critério de pessoas, que tem suas visões, o que gera problemas, porque o juiz tem uma visão, o tribunal tem outra, tem um entra e sai da prisão, aplica-se a um caso e não se aplica a outro. Isso está chamando muito a atenção na Lava Jato, mas não é um problema novo no Brasil, nem no mundo.
Há uma crítica de que as prisões são usadas para forçar delação. Qual a sua opinião?
Existe uma lenda de que as delações estão sendo todas forçadas. É natural que isso se espalhe, especialmente pelas pessoas que são acusadas que procuram desqualificar. Em grande medida, é lenda. Por quê? Porque muitas das informações que surgiram nos depoimentos foram confirmadas por outros depoimentos, por outros delatores em negociação com outros procuradores, em circunstâncias diferentes, ou surgiram documentos. Agora, não é possível também sacralizar uma delação, imaginar que o delator só fala a verdade, que o procurador não tenha eventualmente algum tipo de viés. Mas a experiência acumulada mostra coisa importante: ela (delação) tem gerado fatos concretos.
O sr. em artigo recente elogiou a sentença que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por corrupção e lavagem de dinheiro. Como vê a denúncia apresentada contra o presidente Michel Temer por corrupção passiva?
Acho que não se pode dizer que o procurador fez uma denúncia sem base nenhuma. Existe uma gravação cuja a validade formal o denunciado está questionando, mas que o procurador-geral considera que é válida e cujo o conteúdo o acusado não nega. E a partir do conteúdo dessa conversa o procurador entendeu que havia elementos para suspeitar de crimes. Não se pode negar que há elementos para se suspeitar de crimes. Se ocorreram ou não ocorreram, é difícil afirmar no momento. Há elementos. A questão decisiva é saber se o procurador-geral quando tem suspeitas tão graves contra o presidente é legítimo que ele não se abstenha de denunciar. Ele achou que não era legítimo.
Há uma discussão se o presidente pode ser alvo de acusação por obstrução da Justiça. Recentemente a Polícia Federal não viu elementos para a configuração desse crime na gravação de uma conversa entre senadores peemedebistas e o ex-presidente José Sarney no qual se falou em ‘estancar a sangria’ da Lava Jato...
Há um certo exagero por se tomar qualquer crítica que se faça às operações ou qualquer tentativa de propor mudanças legais contra o que os políticos consideram exageros ou erros da Justiça como obstrução da Justiça. É claramente um exagero. Isso em si obviamente não se configura obstrução da Justiça. De qualquer modo, é um tipo de crime difícil de apurar. Não sabemos o que efetivamente atrapalha. No caso do presidente da República, se eu bem entendi qual era o raciocínio do procurador-geral no pedido de investigação, seria a suspeita de que o presidente estaria por trás de uma compra do silêncio de pessoas como Lúcio Funaro e Eduardo Cunha. Esse elemento não está claro nas gravações. Não se pode dizer que hajam elementos suficientemente fortes do mesmo tipo que levou à denúncia de corrupção.
Mas é possível combater a corrupção sem punição?
Não. Corrupção é caso de polícia e sempre será. Se não houver polícia suficiente, se não houver processo penal, o combate à corrupção fica muito difícil. Agora, isso não consegue dar conta da avalanche, é impossível. Se você tiver muito buraco que vai permitir vazar, vazar, vazar, tem uma hora que vira uma avalanche, que é a situação que nós vivemos. Então é preciso olhar para os dois lados. Me preocupo muito com o foco excessivo na repressão, porque a nossa capacidade de fazer processo, de terminar processo e de esses processos terem o efeito de desmontar quadrilhas em operação ou efeito exemplar é baixa, sempre será. Não temos recursos infinitos para gastar com processo penal, Justiça. Temos de ir ao foco: barreiras burocráticas artificiais, fechamento excessivo das licitações, muita arbitrariedade do administrador público na execução dos contratos.