domingo, 15 de abril de 2018

Gravado por João Gilberto, Geraldo Pereira ainda é pouco lembrado

SC - Geraldo Pereira canta em cena de 'O rei do samba', filme sobre Sinhô restaurado pelo MIS Foto: Divulgação
SC - Geraldo Pereira canta em cena de 'O rei do samba', filme sobre Sinhô restaurado pelo MIS - Divulgação
Helena Aragão e João Máximo, O Globo

De Ary Barroso a João Gilberto, de Cartola aos jovens bambas da Mangueira, do maestro Guerra-Peixe a Zeca Pagodinho, têm se multiplicado ao longo dos anos os admiradores da obra de Geraldo Pereira, cujo centenário de nascimento se celebra no próximo dia 23.
Boêmio, Geraldo viveu intimamente a malandragem do Rio dos anos 1940 e 50, morreu aos 37 anos e deixou uma obra que não envelhece. Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Elza Soares e Monarco estão entre os artistas em atividade que gravaram sambas seus. Bethânia e Zeca, juntos, fazem o mesmo no show que ainda vão trazer para a cidade.

O compositor de “Falsa baiana”, “Bolinha de papel” e outras joias da música carioca é presença permanente no repertório da nova geração que hoje se empenha em manter viva a chama do samba. Mas, apesar de ser o criador (ou, pelo menos, o mais legítimo representante) de um estilo conhecido como “samba sincopado”, suas músicas hoje são mais lembradas que seu nome. Menos numerosas do que poderiam ser, as homenagens pelo centenário pipocam em programas de rádio (a Batuta, do Instituto Moreira Salles), documentários e shows, além de um disco que a Velha Guarda da Mangueira prepara.

Nascido em Juiz de Fora (MG) em 23 de abril de 1918, Geraldo Theodoro Pereira se mudou para o Rio aos 12 anos. Foi morar no morro de Santo Antônio, como era chamada uma das subidas da Rua Visconde de Niterói para a Mangueira. Ali, o irmão mais velho, Manuel Araújo, o Mané, era dono de vários barracos.

— Meu avô, o Mané, logo botou ele para entregar quentinhas — conta o professor de História Valmir Araújo, sobrinho-neto de Geraldo. — Percebeu que ele começou a demorar a voltar, porque parava na casa do Alfredo Português (padrasto de Nelson Sargento) para ouvir música. Lá, aprendeu a tocar violão. O Mané não queria o Geraldo envolvido com música, mas não deu muito certo.

Crescido, Geraldo participou de rodas de calango que reuniam o povo que veio de Minas, como ele. Tantinho da Mangueira, hoje com 72 anos, lembra das histórias:

— Meu pai também veio de Minas, meus tios tocavam sanfona, então eles se juntavam e cantavam calangos. Geraldo e meu pai foram muito amigos, se aproximaram pela música e porque eram bons de briga.

Também em Mangueira, ele conheceu Cartola e Carlos Cachaça, tornou-se compositor da Unidos de Mangueira (nenhuma relação com a grande escola) e desde cedo alimentou o sonho que poucos sambistas do morro realizariam: cantar no rádio e gravar discos. Assim, aos 20 anos, Geraldo deixou a Mangueira e foi tentar a sorte em outros bairros, até chegar à Lapa.


SC - Geraldo Pereira canta em cena de 'O rei do samba', filme sobre Sinhô restaurado pelo MIS - Divulgação

Lá, conviveu com muitos malandros célebres do seu tempo. Brigão, era capaz de resolver no tapa problemas com desafetos eventuais, como Madame Satã, personagem tão conhecido pela valentia como pelas performances em que cantava e dançava vestido de mulher.

Nunca foi bem esclarecida a briga entre os dois. Geraldo teria provocado Satã, e um soco deste teria dado fim à briga. Mas, diferentemente do que diz a lenda, não foi o que lhe tirou a vida. O sambista já estava doente, e uma hemorragia intestinal o levou a se internar, uma semana depois da disputa, no Hospital dos Servidores. Morreu no dia 8 de maio de 1955. O enterro foi pago por seu mais constante intérprete, Cyro Monteiro.

— É tanta lenda sobre os últimos momentos que batizamos um capítulo de “As mortes e o mito” — explica o jornalista e músico Pedro Paulo Malta, que produz os programas sobre Geraldo para a Rádio Batuta com o pesquisador Rodrigo Alzuguir.

— Acho que a fama de malandro e de brigão de Geraldo acabou prejudicando um pouco a imagem dele — lamenta Valmir.

HOMENAGENS DESVENDAM VIDA E OBRA

Nascido no dia em que se comemoram o aniversário de Pixinguinha, o dia do choro e, de quebra, o de São Jorge, Geraldo Pereira não chega a ter uma quantidade de homenagens de impressionar. Por outro lado, elas têm o mérito de ajudar a montar o quebra-cabeças sobre vida e obra do compositor. A Rádio Batuta, do IMS, vai dedicar 10 programas à curta e intensa trajetória do sambista, a partir da próxima quinta-feira. Rodrigo Alzuguir pretende ainda gravar um CD com sucessos e “lados B” de Geraldo, nos moldes que fez com a obra de Wilson Baptista em 2011.

— Consegui ter acesso a uma pasta de documentos e partituras do Francisco Duarte, que escreveu a biografia (“Um certo Geraldo Pereira”, lançado pela Funarte). Foi importante porque, diferentemente do Wilson, há pouca coisa sobre ele na imprensa da época — diz Alzuguir, que ouviu para o programa do IMS bambas como Nelson Sargento e Zé Cruz.

A Velha Guarda da Mangueira também homenageia o sambista que, por um tempo, foi ilustre morador do morro: enquanto prepara disco só com samba sincopado de Geraldo, com produção de Paulão 7 Cordas, os veteranos cantores dão uma palinha deste repertório em plena festa de 90 anos da escola, no dia 28, na quadra verde e rosa.

Sobrinho-neto do compositor, o professor de História Valmir Araújo organiza uma roda com o grupo Samba na Fonte, com convidados como Tantinho da Mangueira e Nina Rosa, no próximo dia 24, no bar Vaca Atolada, na Lapa — a ideia é gravar ali mais números musicais para o documentário “Geraldo Pereira, o mestre do sincopado”, dirigido por Alexandre Palma.

É também com um documentário inédito que a Funarte celebra o compositor, disponível no site da instituição no dia 19.


Geraldo Pereira canta em cena de 'O rei do samba', filme sobre Sinhô restaurado pelo MIS - Divulgação

O QUE É QUE ESSE SINCOPADO TEM?

Nada do que se sabe sobre Geraldo Pereira explica seu estilo, tão afeito ao que se convencionou chamar de “samba sincopado”. Tecnicamente, é um samba em que a inversão entre os tempos fortes e fracos resulta numa variação rítmica e melódica — a síncope. Na prática, essa quebra no ritmo lhe confere pulsação que, apesar de irregular (ou talvez por isso mesmo), é contagiante.

Mas há tentativas de explicação. Elas começam pelo modo de Geraldo fazer e cantar samba. É o que confirma a tese de que todo samba pode se tornar sincopado pela bossa do cantor. Como ocorre com João Gilberto, confesso admirador de Geraldo Pereira.

Tentativa menos considerada atribui à falha no indicador de Geraldo (falange perdida num acidente) a impossibilidade de usar o dedo em certos acordes. Estaria nesta falha o seu “violão gago”, como o nomeou o cantor Roberto Paiva. Contra tal explicação está o fato de ele raramente usar violão para se acompanhar.

O próprio Geraldo, que gravou sambas de outros compositores, transformou em sincopado sambas que originalmente não obedeciam a esse formato. O lado de intérprete do compositor é, aliás, pouco conhecido. Um inventário completo de sua obra é difícil, mas Rodrigo Alzuguir está empenhado em chegar no número certo de registros:

— Ele gravou 28 músicas como cantor. Algumas suas, algumas de outros autores. Como compositor, teve 81 músicas lançadas em gravações originais. Há casos aí que, apesar de não constarem do crédito “oficial”, foram atribuídas a ele por parceiros.

Afinal Geraldo, como Wilson Baptista, vendeu muitas de suas músicas. “Na subida do morro”, por exemplo, saiu nos nomes de Moreira da Silva e Renato Cunha, quando, segundo o próprio Moreira, tem música e letra (breques e síncopes) de Geraldo.