Um menino afegão usa uma faixa na cabeça com a bandeira do Talibã enquanto a nação celebra o 102º Dia da Independência em Kandahar, Afeganistão, em 19 de agosto de 2021| Foto: EFE/EPA/STRINGER
É a terceira coluna seguida sobre o Afeganistão aqui em nosso espaço. Não se trata de falta de criatividade ou que não existam outras questões interessantes pelo mundo, apenas a óbvia necessidade. É o tipo de crise internacional que não ocorre sempre, muito menos nessa magnitude. Além disso, os eventos estão correntes, longe de serem resolvidos ou encerrados. Sendo assim, retornamos ao epicentro da crise atual para explicar uma característica do Talibã que é frequentemente ignorada em análises, até mesmo por integrantes do governo dos EUA.
A frase “a vitória do Talibã é benéfica para movimentos terroristas islâmicos” é em parte verdadeira, em parte falsa. A parte verdadeira é o impacto midiático da tomada de Kabul pelas forças do Talibã. As imagens chocantes, a bandeira branca com a shahada escrita em preto tremulando pelo país, a ideia de que os EUA saíram numa espécie de retirada vexaminosa, tudo isso encorajou outros grupos, mesmo que minimamente similares. Notas de congratulação foram emitidas por diversos grupos, com o mais conhecido deles sendo o Hamas.
O tom era muitas vezes de “energia renovada”, como na nota do grupo extremista sírio Tahrir al-Sham. Mesmo organizações que participam da política institucional expressaram tais congratulações, como o Partido Islâmico Malaio, partido ligado à Irmandade Muçulmana e com representação no parlamento malaio. O Talibã é um grupo extremista, violento e que, por diversas vezes, usou a perfídia para atingir seus objetivos. Outros grupos extremistas e violentos, como o Tahrir al-Sham, celebraram a vitória do Talibã. Logo, o Afeganistão, controlado pelo Talibã, vai ajudar o terrorismo internacional?
Jihad global
Não. Ao menos, não necessariamente. O Talibã não é um grupo cuja prioridade é uma “jihad global”, ao contrário da al-Qaeda ou do Daesh, também chamado de Estado Islâmico. O Talibã é um grupo fundamentalmente afegão. Seu nome significa “estudantes” no idioma pashtun. No caso, estudantes do movimento sunita Deobandi, originado na Índia e que, segundo especialistas, ganhou contornos fundamentalistas após a Segunda Guerra Mundial e a partição indiana. Especialmente com a influência do Wahabismo saudita, a interpretação mais radical que existe no sunismo.
Junto com essa escola de interpretação da jurisprudência islâmica, o Talibã inclui um conjunto de condutas chamado de pashtunwali, algo como “código de conduta” dos pashtuns. Os pashtuns (ou pastós, no português de Portugal) são um povo de origem do planalto iraniano, falantes de um idioma do tronco persa. Os cerca de quinze milhões de pashtuns correspondem a metade da população afegã e, muitas vezes, os termos eram utilizados como sinônimos até o início do século XX. O país com a maior população pashtun, entretanto, é o Paquistão, com cerca de 40 milhões de pessoas, o que corresponde a cerca de 16% da população nacional.
O atual primeiro-ministro do Paquistão, a ex-lenda do críquete Imran Khan, é de origem pashtun. O ponto aqui é: o Talibã é um grupo cuja gênese, ideologia e propósitos estão enraizados no Afeganistão. Ele é radicalmente afegão. Transformar o Afeganistão num emirado governado pela sua interpretação da jurisprudência islâmica e com a vida cotidiana regida pelo “código de conduta” tradicional. A rejeição da modernidade, de “comportamentos nocivos” e até de algumas questões tecnológicas. O pashtunwali, inclusive, precede o Islã.
Os rivais do Talibã na guerra civil do Afegnistão dos anos 1990, a Aliança do Norte, era formada principalmente por lideranças tadjiques. Liderados por Ahmad Shah Massoud, o Leão de Panjshir, um pensador importantíssimo para a compreensão do Afeganistão, eles rejeitavam tanto o fundamentalismo do Talibã quanto a imposição do tradicionalismo pashtun. Massoud defendia um modelo federal para o Afeganistão, em que os diferentes grupos poderiam ter autonomia sobre seus costumes. Um dos principais líderes na guerra contra os soviéticos, Massoud foi assassinado pelo Talibã em uma emboscada, dois dias antes do Onze de setembro de 2001.
Alguns meses antes, em abril, ele falou perante o Parlamento Europeu e foi explícito em avisar que movimentos islamistas estavam planejando um atentado terrorista de grandes proporções. Muito provavelmente, era o que viria a ocorrer em Nova Iorque. E, hoje, a principal frente de resistência aos Talibãs é a organizada por Ahmad Massoud, filho do líder assassinado. Também um tadjique, no mesmo vale de Panjshir, e também com apoio de lideranças tadjiques, que compreendem um quarto da população afegã. Dois deles são Amrullah Saleh, ex-vice-presidente, e o general Bismillah Khan Mohammadi.
Ameaça
O retorno do Talibã no Afeganistão é uma ameaça muito mais regional, podendo causar instabilidade em suas fronteiras, tanto devido ao fluxo de refugiados quanto aos elos étnicos transfronteiriços. “Oras, mas o Talibã abrigava a al-Qaeda até 2001” o leitor pode pensar. Perfeito. E recebia vinte milhões de dólares anuais pelo “aluguel”, vindo de financiadores como o próprio Osama bin-Laden e outros milionários sauditas. Era uma fonte de dinheiro que o grupo pode voltar a ter, mas por questões materiais, não por uma ideologia de terrorismo global.
Outro exemplo disso é que o Talibã e o Daesh são rivais, realizando ataques um contra o outro. Nesse caso, as maiores vítimas eram outros muçulmanos, os xiitas, considerados alvos por ambos os grupos. Fora dos limites regionais, o fortalecimento do terrorismo internacional via Talibã se dará pela via mais torpe e difícil de ser controlada. Não será o uso do território ou a criação de um “comando central do terror” em Kabul, mas pela inspiração e motivação de extremistas espalhados pelo mundo, que vivem em outros países e consomem esse tipo de propaganda.
Ainda assim, para compreender o Talibã além de estereótipos ou de generalizações simplistas, é importante ter em mente a raiz afegã do grupo. Colocá-lo num balaio de “terrorismo islâmico internacional” leva à conclusões erradas. E conclusões erradas cobram um preço. Sem mencionar o erro absurdo que seria classificar o Talibã como “grupo árabe”. O Talibã representa riscos para parte considerável dos afegãos, para os vizinhos e para outros países, sim, mas, para que esses riscos possam ser contidos e corretamente mitigados, é primeiro necessário saber quais são esses riscos.
Filipe Figueiredo, Gazeta do Povo