sexta-feira, 20 de agosto de 2021

‘Não é possível estabilizar o Afeganistão’, afirma Heni Ozi Cukier

Deputado esclarece o cenário político do país asiático e explica os desdobramentos da tomada de poder pelo Talibã


Heni Ozi Cukier é deputado estadual
Heni Ozi Cukier é deputado estadual | Foto: Divulgação/Novo

O grupo terrorista Talibã voltou a assumir o controle da capital do Afeganistão, Cabul, em meio à retirada das tropas norte-americanas. Desde os ataques de 11 de setembro de 2001, perpetrados pela organização fundamentalista Al-Qaeda, os Estados Unidos ocuparam o país asiático com o objetivo de caçar seu algoz, Osama bin Laden, e conter o surgimento de células terroristas que pudessem ameaçar a maior potência do mundo.

Depois de duas décadas, o Afeganistão continua a ser palco de conflitos; e não há, segundo o cientista político e deputado estadual Heni Ozi Cukier (Novo-SP), perspectivas de melhora. “O Talibã tem sinalizado que pode ser mais liberal, mas parece mais um movimento de fachada, com o intuito de parecer mais amigável, legítimo perante a comunidade internacional”, observa. “A ideia é evitar a resistência de outros países em relação ao novo governo.”

Em entrevista concedida a Oeste, o parlamentar esclarece o cenário político do Afeganistão e explica os desdobramentos da tomada de poder pelo Talibã.

— Por que o Afeganistão é palco constante de guerras?

Em virtude da posição estratégica do país. A região em que o Afeganistão está localizado é um ponto de conexão entre impérios; faz fronteira com o antigo império russo, o império persa, a Índia e a China. O Afeganistão conversa com o mundo indiano, chinês, russo e iraniano. Por isso, o país tem importância geopolítica gigantesca.

— O que é o Talibã?

É uma organização revolucionária, religiosa, que nasceu para lutar contra a ocupação dos soviéticos no Afeganistão, entre 1979 e 1989. O Talibã é fundado por jovens que abandonaram as escolas religiosas, as madrassas, financiadas parcialmente pela Arábia Saudita, para se juntar na luta contra os soviéticos. Esse grupo de guerrilheiros fundamentalistas foi criado para retomar o controle do Afeganistão.

— Como os muçulmanos, em geral, avaliam os talibãs?

É difícil obter uma única resposta. Em alguns momentos, parte da população do Paquistão foi contra o Talibã; em outros momentos, a favor. Atualmente, o Paquistão financia o Talibã, considera-o amigável. A Índia, por sua vez, detesta esse grupo. O Irã não suportava os talibãs, agora gosta mais. O Hamas também aprova o Talibã. Então, a resposta depende muito das pessoas que vão ser indagadas sobre o assunto.

— Historicamente, as mulheres sempre sofreram durante os períodos em que o Talibã esteve à frente do Afeganistão. Se a tradição continuar, o que as afegãs podem esperar de um novo governo comandado pelos fundamentalistas?

As mulheres afegãs não devem ter perspectiva alguma. O Talibã tem sinalizado que pode ser mais liberal, mas parece mais um movimento de fachada, com o intuito de parecer mais amigável, legítimo perante a comunidade internacional, de modo a evitar a resistência de outros países em relação ao novo governo. O Talibã baseia-se em uma ideologia fundamentalista islâmica, governou o Afeganistão seguindo essa ideia. Por isso, a volta do Talibã ao poder não é nada promissor para as mulheres. Os direitos humanos dos afegãos, em geral, não podem ser garantidos, assim como os de cidadãos de muitos países da África, Ásia, América Latina e Oriente Médio, que são grandes violadores desses direitos.

— Cerca de 84% do ópio produzido no mundo é oriundo do Afeganistão. Em 2018, o Talibã levantou US$ 400 milhões apenas com o tráfico de drogas. Como estabilizar uma região, tendo em vista esse cenário?

Não dá para estabilizar o Afeganistão. Os Estados Unidos gastaram US$ 2,2 trilhões e ficaram durante vinte anos no país asiático; chegaram a ter 100 mil soldados norte-americanos no território afegão, sem contar os civis e os oficiais governamentais. Mesmo assim, não conseguiram estabilizar a região. Esse projeto de trazer ordem ao Afeganistão e fazê-lo funcionar, com todos os recursos e a energia despendidos no país durante todo esse tempo, não obteve resultados; então, sabemos que é impossível estabilizá-lo. O que pode ser feita é uma gestão de potenciais conflitos, mas não há solução definitiva. Não é possível diminuir o tráfico de drogas, e a cultura do Afeganistão não será mudada. É possível, apenas, fazer um monitoramento, com o objetivo de evitar que a situação fique pior, tendo em vista que todos os países vizinhos são instáveis [o Afeganistão faz fronteira com a China, Irã, Paquistão, Tajiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão].

“Era insustentável os norte-americanos continuarem no Afeganistão, porque é um projeto que não teria fim, seria eterno”

— Quando os Estados Unidos deixaram o Iraque, surgiu o Estado Islâmico; quando deixaram o Afeganistão, o Talibã ascendeu ao poder. O problema é a ocupação norte-americana desses países ou a saída deles?

Há um grande dilema nessa discussão, que exemplifica as dificuldades da política internacional: se os Estados Unidos ficarem no Afeganistão, ruim; se saírem, também. É uma escolha difícil, por isso, não existe certo ou errado nessa questão. Todas as decisões acarretam grandes perdas, e os Estados Unidos precisam gerenciar qual delas causa menos danos. Depois de vinte anos no Afeganistão, não me parece que faz sentido continuar no país, porque foi gasta uma energia que não levou a lugar algum. Não é possível reconstruir uma nação no estágio em que o Afeganistão se encontra.

Se o Talibã não der abrigo a grupos terroristas que planejam ataques internacionais, a situação não será tão ruim quanto foi no Iraque e na Síria. O problema do Estado Islâmico, por exemplo, é que a organização tinha o projeto de atacar o Ocidente, ser expansionista, controlar territórios.

Para avaliar os efeitos concretos da saída dos Estados Unidos do Afeganistão, é preciso verificar as ações do Talibã daqui em diante. No entanto, eu diria o seguinte: era insustentável os norte-americanos continuarem no Afeganistão, porque é um projeto que não teria fim, seria eterno; teriam de ficar no país asiático para sempre.

— O que foi estabelecido no acordo dos Estados Unidos com o Talibã, ainda sob a gestão do ex-presidente Donald Trump, para que as forças militares norte-americanas deixassem o Afeganistão?

Há quatro pontos nesse acordo: (1) cessar-fogo entre o Talibã e os Estados Unidos; (2) o Talibã sentar-se à mesa para negociar com o governo do Afeganistão, com objetivo de construir administração mútua e promover convivência pacífica; (3) os norte-americanos se retirarem do país asiático; e (4) o Talibã promete não abrigar grupos terroristas nem participar de ataques contra os Estados Unidos. A parte principal, a quarta, é mais ingênua e mais difícil de ser cumprida. Não há mecanismo algum para tentar “amarrar” o Talibã nesse compromisso; há, apenas, a palavra dos talibãs, e isso me soa bastante utópico. Se os Estados Unidos não aceitaram o acordo nuclear com o Irã por não considerar os governantes iranianos confiáveis, por que firmaram acordo com o Talibã? No caso do Irã, há vários mecanismos de verificação, por mais falhos que sejam, mas com os talibãs não existe nada.

— O que faz a China apoiar, abertamente, os talibãs?

Trata-se de um passo previsível, tendo em vista a postura que a China apresenta ao mundo. É uma decisão temerosa, preocupante, mas não surpreendente. A China é um regime totalitário; por isso, reconhecer o Talibã é um movimento político para proteger seus interesses e exercer influência sobre o grupo fundamentalista, de modo a evitar que Afeganistão seja um abrigo para os muçulmanos uigures, que são alvo de genocídio na China.

— A geopolítica brasileira pode ser afetada pela mudança de governo no Afeganistão?

Não, o Brasil está bem longe dessa história; nada muda para os brasileiros. A única coisa que eu diria que serve, ou que pode chamar atenção da população, é como as organizações fundamentalistas tomam o poder rapidamente, reorganizam-se e causam estrago ao redor do mundo. Isso serve de alerta ao Brasil, para que fique vigilante, de maneira que não tenhamos a presença de organizações terroristas internacionais em nosso território. No entanto, não vejo risco imediato de esse tipo de situação acontecer no Brasil, mas sabemos que existe a operação de grupos terrorista no país — não que estejam operando ataques, mas possuem suporte logístico. A história ocorrida no Afeganistão pode mostrar o quanto essa ameaça é perigosa e presente, fazendo-nos discutir o assunto com a devida seriedade.

Leia também: “A tragédia do Afeganistão envergonha o Ocidente”, artigo de Tim Black, da Spiked, publicado na Edição 73 da Revista Oeste

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Edilson Salgueiro, Revista Oeste