sexta-feira, 1 de outubro de 2021

"Show de infâmias", por Sílvio Navarro

 

O empresário Luciano Hang e o senador Omar Aziz, durante sessão da CPI da Covid | Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado


A CPI da Pandemia ultrapassa os limites do ridículo na sessão em que ouviu Luciano Hang e mostra ao país que deve ser urgentemente encerrada


Passava das 10 horas de quarta-feira, 29, quando o empresário Luciano Hang, proprietário da rede de lojas Havan, chegou ao Senado para um dos mais esperados depoimentos da CPI da Pandemia. Vestindo um terno verde bandeira, com gravata e um lenço amarelo ouro no paletó, carregava algemas, compradas na véspera para gravar um vídeo em que provocava os xerifes da covid no Brasil. Acabou barrado no detector de metais e seguiu com largas passadas para prestar seu depoimento ao comissariado de Renan Calheiros, Omar Aziz e companhia. Começava ali uma sessão que entrará para a história como um dos mais infames momentos do Parlamento — e que talvez ajude a explicar por que o Congresso é tão ruim.

Respeitável público, vai começar mais um espetáculo!

10 horas — Propaganda gratuita

Tão logo lhe foi dada a palavra para suas considerações iniciais, Luciano Hang sacou da manga uma cartada genial: pediu que fosse exibido um vídeo curto sobre a história de sua empresa, mas cujo conteúdo os senadores não imaginavam que se tratava de publicidade explícita da marca. A CPI promoveu a Havan em rede nacional e o circo pegou fogo. Houve alvoroço, e o relator, Renan Calheiros (MDB-AL), só conseguiu falar meia hora depois. Diante dele, sentou-se Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho mais velho do presidente, seu desafeto declarado, que já o xingou de “vagabundo” ao vivo na TV Senado.

11 horas — Suas Excelências

Hang irritou os congressistas logo nas primeiras falas por chamá-los pelo nome, dispensando a soberba forma de tratamento que lhes enche os olhos: Vossa Excelência. Os petistas Rogério Carvalho (SE) e Humberto Costa (PE) não suportaram ver o empresário tratar o presidente da comissão de inquérito simplesmente por… Omar.

— Omar, não! É senador! — esbravejou Carvalho.

— Vossa Excelência! — gritou Humberto Costa.

Marcos Rogério (DEM-RO), de longe uma das poucas vozes sensatas naquele picadeiro, aplacou os ânimos em tom de ironia:

— É melhor chamá-los de Excelência. Isso incomoda muito…

12 horas — Dá-lhe campainha!

Foi por volta do meio-dia que a CPI mais uma vez quase terminou em cenas de pugilato. Muito exaltado, com as mãos trêmulas envergando o microfone, Rogério Carvalho cobrou a expulsão do advogado de Hang e reclamou que o depoente o provocava com gestos para manter a calma.

— O senador precisa de uma água — cutucou Flávio Bolsonaro.

Não é exagero afirmar que uma das coisas que tiraram Omar Aziz (PSD-AM) do sério foi o figurino do dono da Havan, contra quem fez questão de usar o rótulo da moda cunhado pela imprensa tradicional: “negacionista”.

— Esse patriotismo é da boca para fora; o senhor se vestia com outras roupas! Depois, como o senhor preencheu o seu ego, passou a se vestir de verde e amarelo — afirmou, enquanto exibia fotos antigas de Hang trajando uma tradicional camisa xadrez.

Mais uma vez, coube a Marcos Rogério perguntar o óbvio: “Afinal, o que a roupa do depoente tem a ver com a covid?”

— Com o ego inflado, ele passou a defender o tratamento precoce! — respondeu Aziz.

Ninguém entendeu nada.

Hang colocou um ponto final no assunto:

— Tem gente que gosta de vermelho, não? Eu não uso nem cueca vermelha. É uma opção.

13 horas — CPI do Fim do Mundo

Para levar o empresário à CPI, o chamado G7 chefiado por Renan, que tem a maioria dos votos, argumentou que investiga a suspeita de financiamento de fake news durante a pandemia. Preparou uma verdadeira videoteca, exibida com intervalos para apontar supostos crimes cometidos em lives nas redes sociais. Acusou o depoente de comprar medicamentos (cujos nomes passaram a ser proibidos pela patrulha da covid) para tratamento precoce. No limite da ética, exibiu o atestado de óbito da mãe de Hang, alegando que teria sido propositalmente adulterado para camuflar o contágio pelo coronavírus — o que ele nega veementemente e afirma ter sido um erro (depois corrigido) do plantonista da Prevent Senior. Como a rede de hospitais está na linha de tiro da comissão, até que esse poderia ter sido o foco dos principais questionamentos. Mas não.

A dupla Aziz e Renan teve tempo para usar suas picardias e tentar avançar sobre as finanças da Havan. O primeiro queria saber se a empresa, que tem mais de três décadas, fez operações de crédito com bancos públicos (BNDES, Banco do Brasil e Caixa), o que foi prontamente respondido pelo empresário. Ele confirmou que tomou financiamentos e disse, inclusive, ser cliente dos bancos. A Havan desembolsa R$ 100 milhões por mês só com o pagamento de salários dos 22 mil empregados.

 

Já Renan Calheiros estava interessado em negócios com um tipo de moeda que o tradutor de libras da TV Senado teve dificuldades para decifrar (veja se consegue entender no vídeo abaixo).

— Nem sei o que é isso — respondeu Hang.

Virou piada nas redes sociais.

14 horas — Exército de robôs bolsonaristas

Em dia inspirado, o senador Rogério Carvalho interrompeu o questionário do relator para fazer um comunicado urgente à nação. Segundo ele, a Polícia Legislativa deveria ser acionada, porque sua conta no Twitter e a de outros integrantes da CPI estavam sendo bombardeadas em massa pelo “gabinete do ódio” bolsonarista.

— Claramente, houve um ataque sistemático de robôs às nossas redes, xingando, ofendendo e agredindo senadores da República! Uma ação orquestrada!

Nem Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que substituía Aziz naquele momento, levou o colega a sério e determinou:

— Prossiga, Renan.

15 horas — Lista de chegada

Uma das estratégias mais manjadas em qualquer CPI é escalar um assessor para chegar o mais cedo possível à sala da sessão para garantir um lugar privilegiado na fila de inscritos. Quando a planilha é disponibilizada, o funcionário avisa o parlamentar pelo WhatsApp, que imediatamente segue até o local para registrar sua assinatura. Foi isso que o G7 fez na quarta-feira, numa jogada para que aliados do governo e até amigos de Hang, como o catarinense Jorginho Mello (PL), ficassem para o final. O cálculo é simples: dominar o “horário nobre” da sessão significa exposição intensa em emissoras de televisão e sites, e quem fica no rodapé da lista ainda corre o risco de não fazer suas perguntas por causa do início da Ordem do Dia — o regimento interno determina a suspensão das atividades para que os senadores votem no plenário.

Ao longo de sete horas, as notas taquigráficas da sessão registraram 15 vezes a expressão “tumulto no recinto”

A obsessão em seguir essa cartilha foi tamanha que Randolfe chegou a anunciar que não daria tempo para que todos fizessem suas perguntas duas horas antes do encerramento do depoimento, enquanto consultava o relógio insistentemente.

16 horas — Recreio e resenha

Como é praxe, depois da artilharia contra os convocados, o G7 tradicionalmente deixa a sessão mais cedo — Aziz e Randolfe se revezam para apagar a luz. Na antessala da CPI são servidos sanduíches com frios, frutas, suco, café e água, mas há também reuniões paralelas com quitutes regionais e almoço delivery. Em ambiente privado, são feitas as avaliações de desempenho e combinados discursos para as entrevistas no apelidado “cercadinho” para as coletivas de imprensa — às vezes feitas em conjunto. No cerrar das cortinas, os senadores que não integram o grupo usam os minutos restantes sem holofotes nem manchetes à espreita.

17 horas — Extras

Ao longo de sete horas, as notas taquigráficas da sessão registraram 15 vezes a expressão “tumulto no recinto”, usada pelos datilógrafos não só para descrever o clima de balbúrdia, como por não conseguir captar todas as falas simultâneas. O termo “campainha”, uma espécie de alarme quando já não há controle, aparece dez vezes — e “interrupção do som”, 14.

Foi um show de horrores. Mais difícil é pensar que essa CPI pode permanecer em cartaz até novembro.

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Revista Oeste