domingo, 24 de outubro de 2021

Fronteira entre EUA e México tem recorde de famílias do Brasil detidas

Brasileiros que chegaram com parentes nos últimos 12 meses representam 75,5% do total de detidos; Crise migratória se agrava por causa da pandemia do vírus chinês e da posse de Joe Biden


Migrantes são detidos na fronteira entre o México e os EUA; número dos que tentam entrar de forma ilegal em território americano bate recorde  Foto: REUTERS/Jason Garza

número de famílias que tentaram entrar ilegalmente nos EUA bateu recorde nos últimos 12 meses – ano fiscal que vai de outubro de 2020 a setembro de 2021 –, com 483.846 chegando às fronteiras americanas. Muitos imigrantes tentam entrar sozinhos nos EUA, mas a maioria o faz com suas famílias, e o Departamento de Alfândega e Proteção de Fronteira (CBP, na sigla em inglês) computa os dados separadamente. 

Dos 56.881 brasileiros detidos na fronteira com o México, número que é um recorde histórico, oito vezes maior do que o relatado no ano anterior, a maioria viajava com sua família — 43.867 ou 75,5% — e outros 12.898 tentaram completar a rota sozinhos. O restante eram menores de idade e crianças desacompanhadas, segundo os dados do CBP.

“O que antes era quase que uma migração exclusivamente mexicana mudou, em 2019, com a quantidade de pessoas de HondurasEl Salvador e Guatemala. Pobreza e violência foram os principais motivadores. Outra grande diferença foi a estratégia de viajar em família, que aumenta os números totais”, diz Gabrielle Oliveira, professora da Faculdade de Educação de Harvard. 

Viajar em família, segundo a professora, aumenta, em teoria, a chance de permanecer nos EUA. “Pesquisas qualitativas mostram, por exemplo, um distrito escolar onde a quantidade de crianças brasileiras chegando em escolas triplicou. Então tem mais unidades familiares chegando do que adultos sozinhos”, explica.

crise migratória nos EUA vem batendo recordes por conta de três fatores: pandemia do vírus chinês, dificuldade econômica nos países de origem e a posse do presidente Joe Biden , que prometeu adotar uma abordagem mais humana, mas continua adotando políticas de seu antecessor, Donald Trump, como a deportação em massa.

Neste ano fiscal, os EUA já registraram a chegada de 1,9 milhão de migrantes. No mesmo período do ano passado, foram 646 mil. Em 2019, 859 mil. Entre os migrantes, estavam as brasileiras Maria e Roberta - que pediram para ter os nomes reais preservados. O sonho de uma vida melhor, R$ 30 mil gastos na travessia e destinos diferentes separam a história delas. Maria foi deportada para o Haiti com a filha e o marido haitiano. Roberta passou três meses presa antes de chegar a Massachusetts.

Depois dos mexicanos, o segundo maior grupo de migrantes barrados - 367 mil pessoas - inclui haitianos, venezuelanos, cubanos e brasileiros. De acordo com a alfândega americana, no ano fiscal de 2021, 58.059 brasileiros foram detidos, mais do que a soma dos três anos anteriores, quando 45 mil tentaram cruzar a fronteira.

Viagem planejada por coiotes

Quando Roberta, de 33 anos, decidiu deixar o Espírito Santo, sua ideia era levar o filho de 7 anos junto, mas ao conseguir a viagem em cima da hora, resolveu deixá-lo com a mãe dela. Quando chegou aos EUA, ela foi presa com outros imigrantes e ficou 97 dias até poder encontrar os parentes que vivem em Massachussets. “Se eu estivesse com ele (filho), não ficaria nem 7 dias presa, mas fiquei com medo da vida com ele aqui porque não é uma vida fácil. Eu fico com saudade, choro, mas tem gente que pensa que é tudo fácil. Não é, tem que trabalhar muito”, conta.

Com cidadania italiana, Roberta acreditou que chegaria nos EUA pela fronteira com o México e conseguiria ficar por lá. Conseguiu o roteiro com um coiote (pessoas que cobram para fazer a travessia) ainda no Espírito Santo e pagou R$ 30 mil porque “era um antigo conhecido da família”. 

A brasileira saiu em maio de sua terra natal, mas só chegou a Massachusetts há dois meses. Depois de um voo para o México, iniciou a travessia com mais cinco pessoas até a fronteira com os EUA. “Caminhei pouco, passei por um deserto, andei cerca de 30 minutos, sendo 15 pela areia, passei por cima da ponte e caminhei mais um pouco sabendo que a qualquer momento a gente podia ser pego. A travessia foi tranquila, até o momento em que fomos pegos”.

Brasileira que ficou 97 dias presa antes de poder ficar nos EUA leva consigo o terço que tinha no País  Foto: Arquivo Pessoal

Quando foi detida, Roberta teve o passaporte apreendido, foi revistada e passou por um interrogatório. Depois, foi levada a uma cela. “Fiquei dois dias nessa cela com pouca gente, depois começou a movimentação de tirar de uma cela e colocar em outra. No quarto dia nos levaram para uma tenda, a gente ganhou uns tal de burritos lá, umas frutas. Ali havia um colchão para cada pessoa e era feito um sorteio para ver quem ia tomar banho”, lembra a brasileira.

Depois de alguns dias, ela foi colocada em um ônibus e acreditou que seria libertada. “Ninguém fala o que vai acontecer, não adiantava nem perguntar. Fomos algemadas, mãos, pés e cintura, uma presa na outra. Depois de 15 minutos chegamos onde estava um avião aí a gente pensava que ia para um lugar melhor. Então chegamos em um presídio, recebemos um lanche, fizemos exames e fui para uma nova cela, com um monte de normas, pessoas ruins. Quando dava 4 horas da manhã, eles gritavam ‘café da manhã’ e a gente tinha que descer e pegar ou perdia a refeição. O banheiro era um quadradão com 6 chuveiros muito quentes porque não tinha controle de temperatura, minha cabeça ficava cheia de machucado”.

Roberta conseguiu contato com a família oito dias depois de chegar nos EUA. Na prisão podia fazer ligações de 15 minutos e conseguia conversar com a mãe e o filho. Ela diz que enquanto estava presa dividiu cela com cubanas, venezuelanas e haitianas, com quem conversava um pouco, mas que passou por crises de choro e precisou tomar antidepressivo. “Dá uma agonia, você pensa que nunca mais vai sair de lá, é uma pressão psicológica.”

Em uma manhã, a brasileira foi chamada, fez o teste da covid-19 e foi enviada para um abrigo de uma igreja. “‘Aqui vocês estão livres’, foi o que disseram então liguei para o meu tio, que comprou uma passagem e fui embora”, conta, lembrando do terço que levou consigo desde o Brasil. Agora, Roberta espera as audiências para tentar obter os documentos necessários para ficar nos EUA.

Deportação e vaquinha virtual 

Maria pegou um voo de São Paulo para o México com a filha de 1 ano e uma amiga colombiana no dia 15 de setembro. Chegando na capital, comprou passagem para uma cidade de fronteira com os EUA e encontrou o marido, o haitiano Carlos. De lá, os três seguiram em direção ao Texas, como relataram ao Estadão no começo deste mês.

Carlos havia deixado a capital paulista no dia 5 de julho, pegou um voo até Campo Grande, de lá seguiu andando e em barcos para a Bolívia, Peru, Colômbia e Panamá. “Ele passou três dias caminhando pela mata (selva de Darién) sem alimentação, apenas o que levava na mochila. Ele viu várias pessoas morrendo porque tem que subir montanhas, enfrentar correntezas e muitos não conseguem. Ele chegou com a perna toda machucada, até me mandou a foto da perna inchada”, conta Maria.

Haitiano que vivia com a mulher brasileira em São Paulo tentou entrar nos EUA, mas foi deportado com a família; durante a travessia, ele machucou as pernas na selva colombiana Foto: Arquivo Pessoal

No México, a família contratou um coiote. “Ele (coiote) tinha que pagar os policiais e negociar a nossa saída do país. Em todos os países que meu marido chegava antes disso era preciso pagar taxas a policiais”, explica a brasileira.

“Cheguei e atravessamos a fronteira. Nos entregamos e ficamos quatro dias no Texas, dormindo num lençol no chão. Havia muita gente de todo lugar, mais de cinco mil pessoas. Todo mundo fazia barracas. A gente apostou tudo que tinha nesse objetivo, vimos vários amigos conseguindo”.

A família foi deportada ao Haiti, onde está há quase um mês. A filha do casal, de 1 ano de idade,  não come direito desde que deixou o Brasil e começou a tomar remédios caseiros preparados pela família de Carlos. 

Os três tentam voltar ao País e agora contam com uma vaquinha virtual criada pela madrinha de Maria. “O dinheiro que a gente tinha guardado, mais ou menos R$ 30 mil, a gente gastou. Não sabemos como vai fazer para voltar ao Brasil, não temos nem onde morar, como deixamos a ocupação que vivíamos para trás, não temos moradia. Devo voltar para a casa dos meus pais até me organizar”, diz Maria.

Fernanda Simas, O Estado de S.Paulo