Em uma década, o SUS gastou R$ 486 milhões com internações para tratar as complicações do aborto, sendo 75% deles provocados. De 2008 a 2017, 2,1 milhões de mulheres foram internadas.
No intervalo, embora o número de internações tenha caído 7%, as despesas hospitalares subiram 12% em razão da gravidade dos casos. Em quase um terço deles, houve sérias complicações após o aborto, como hemorragias e infecções. Ao menos 4.455 mulheres morreram de 2000 a 2016.
O levantamento inédito obtido pela Folha consta de relatório do Ministério da Saúde que deve subsidiar o STF (Supremo Tribunal Federal) em ação que pede a descriminalização do aborto até 12ª semana de gestação.
A ministra Rosa Weber, relatora da ação, marcou para 3 e 6 de agosto audiência pública sobre o processo. Serão 44 expositores, entre grupos ligados a igrejas, ONGs, universidades, sociedades médicas e o próprio ministério.
A ação, da ONG Anis-Instituto de Bioética e do PSOL, argumenta que a proibição viola direitos fundamentais previstos na Constituição, como o direito à dignidade, à cidadania e à vida. Isso porque milhares de mulheres colocam suas vidas em risco ao buscar a interrupção ilegal da gravidez.
Já os grupos contrários à descriminalização argumentam que a vida é inviolável em qualquer estágio. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em nota, diz defender a “integralidade, inviolabilidade e dignidade da vida humana, desde a concepção até a morte natural”.
Lenise Garcia, professora da UnB e presidente do Movimento Brasil sem Aborto, afirma que muitas vezes a interrupção da gravidez não é uma opção da mulher, mas ela o faz por imposição masculina e por falta de apoio.
“O que ela quer é ajuda, compreensão. A solução tem que estar na base, com mais educação e apoio da família”, diz ela, outra expositora no STF.
Em nota, o Ministério da Saúde informa que não se posicionará sobre a descriminalização, mas que subsidiará o debate com dados de saúde pública. Porém, em texto enviado ao STF, alega que está vez mais difícil diminuir as mortes por aborto se não “houver renovação da política pública que considere reduzir restrições à interrupção da gestação.”
“A ilegalidade [do aborto] não impede sua prática, no entanto, afeta drasticamente o acesso a um procedimento seguro, impondo maior risco de complicações e de morte materna evitável.”
Estima-se que de 950 mil a 1,2 milhão de abortos sejam feitos por ano no Brasil, onde há permissão legal apenas nos casos de estupro, de risco para a vida da mulher e de anencefalia do feto —por decisão do próprio Supremo, de 2012.
Rosa Weber já se manifestou a favor da descriminalização até o terceiro mês de gestação em julgamento da 1ª Turma do STF em 2016, assim como os ministros Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.
Se, por um lado, o uso do misoprostol —pílula abortiva, em grande parte, comprada no mercado paralelo— tornou o aborto uma prática menos arriscada, levando à queda do número de internações, por outro, mulheres de menor nível socioeconômico tendem a fazer uso errado ou tardio do remédio, o que torna a prática arriscada.
Associado a isso, elas demoram em procurar o hospital e, quando o fazem, não relatam a prática do aborto ao médico, atrasando intervenções que poderiam reduzir as complicações e evitar a morte.
“Elas sangram, adoecem, mas resistem em procurar socorro”, diz a antropóloga Debora Diniz, professora da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora da Anis.
E por que a demora? “Pelo medo de os profissionais de saúde as denunciarem, pelo medo do estigma do aborto. Não é o aborto que as mata, mas os efeitos da criminalização”, diz ela, que será uma das expositoras na audiência.
As complicações por aborto consomem mais recursos de saúde —como medicamentos caros, bolsas de sangue, centro cirúrgico e leito de UTI.
Por ano, são mais de 15 mil mulheres internadas por pelo menos quatro dias, das quais 5.000 com complicações graves. Nesses casos, o custo hospitalar é 317% maior em relação aos que não complicaram.
Em média, 262 mulheres morrem anualmente por essas complicações. “São mortes quase 100% evitáveis, que só ocorrem por falta de acesso a um procedimento seguro, com assistência. Acontecem no auge da vida produtiva dessa mulher que, em geral, deixa órfãos outros filhos” diz o médico Rodolfo Pacagnella, da comissão de mortalidade materna da Febrasgo (federação das sociedades de ginecologia e obstetrícia).
O número de mortes, contudo, é subestimado. Estudo da Fiocruz que avaliou 770 mortes maternas por aborto registradas de 2006 a 2015 aponta que ele pode ser 31% maior.
Foram identificados 195 casos de óbito cujos registros citavam o aborto no histórico, mas que não o tinham como causa principal da morte.
Segundo Greice Menezes, médica epidemiologista e professora da UFBA (Universidade Federal da Bahia), muitas vezes, os registros oficiais atestam que a mulher morreu de sepse (infecção generalizada) ou peritonite (inflamação no tecido do abdômen), sem citar que essas complicações estavam relacionadas a um aborto anterior.
Cláudia Collucci e Flávia Faria, Folha de São Paulo