terça-feira, 31 de julho de 2018

"Como reencontrar o caminho do gol", por Fernão Lara Mesquita

É o que se viu na Copa do Mundo. Gol, hoje, só de bola parada em jogadas ensaiadas à exaustão. Ou, então, em função de velocidade. De contra-ataque, de lançamentos longos e precisos, de rapidez de saída de bola. De frente, furando retrancas de gigantes, é praticamente impossível. A raça humana evoluiu. O biotipo é outro. O campo ficou pequeno, atravancado de tão ocupado. Tapeação, então, nem pensar. Acabou o espaço tanto pro amadorismo quanto pra malandrice.
Na competição econômica é a mesma coisa e há muito mais tempo que no futebol. A velocidade de resposta à mudança é a condição para a sobrevivência no jogo global.
Os Estados Unidos viraram o que são porque durante um século inteiro só eles tinham essa agilidade num mundo inteiramente engessado pela burocracia e pelo imobilismo que sempre sustentaram todo esquema de privilégio. É verdade, eles começaram do zero. Não tinham uma realeza pra revogar. Nenhum rei inglês com sua corte foi ser imperador por lá. A chave pro esquema deles funcionar foi garantir a fidedignidade da representação. Levou mais de 2 mil anos pra inventar. Primeiro, trocar o rei pelo voto da maioria, à grega. Depois, quando a democracia deixou de caber numa praça, eleger representantes para governar, à romana. Então, fazer o governo controlar o governo com três poderes independentes. E, finalmente, armar a mão dos representados para submeter de fato a ação dos representantes à vontade deles e picar o todo em pedacinhos para poder ir consertando cada parte no seu tempo e na sua velocidade sem ter de parar tudo a cada passo.
Mudaram o poder de dono e lá se foram, com recall, referendo e iniciativa, livres para corrigir todo erro que se apresentasse como erro, fazer eleições especiais para trocar uma peça aqui, eliminar uma lei defeituosa ali, instalar um novo mecanismo sempre que sentissem que era necessário, enquanto o resto do mundo de democracia tinha só o som, seguia atravancado de eleição marcada em eleição marcada, perseverando em erros petrificados na constitucionalização de privilégios, tropeçando a cada passo em juízes ladrões e políticos surdos todo-poderosos.
Velocidade de mudança! Capacidade de se adaptar, como sociedade, a uma realidade cada vez mais mutante, respeitando as diferenças entre as suas partes. Livres o bastante para estimular a criatividade a ponto de produzir ciência, mas armados da condição de se adaptar às consequências da produção de ciência. Mandando e não sendo mandados.
Hoje a China está levando uma vantagem momentânea porque os ditadores – agora à frente de esquemas de capitalismo de Estado – têm mais velocidade de mudança que a democracia. Mas é uma vantagem relativa. Rápido demais pra ser seguro. Eles mesmos, no fim da linha, convertem o que ganham em títulos do Tesouro ianque porque sabem que o presidente americano é o único do mundo que não pode fazer o que quiser na hora que quiser. Porque sabem melhor que ninguém que segurança jurídica, o único antídoto contra a súbita liquefação de toda e qualquer riqueza conquistada, é as “majestades”, os “guias geniais de povos”, os “the guy”, as “excelências” e os “meritíssimos” da hora estarem estritamente “under God and under the law”. Ou vale o fato e não a “narrativa” e a lei é igual pra todo mundo, ou não dá pra ter controle de nada.
Todo o aparato da democracia, aliás, não é senão uma ferramenta evoluída para facilitar a mudança. A gente elege representantes, tem um Legislativo, um Judiciário e um Executivo funcionando dentro de regras de todos conhecidas para poder ir mudando as coisas na medida da necessidade sem ter nem de entregar a direção do nosso destino para um déspota todo-poderoso nem de fazer uma guerra entre os interesses contrariados a cada vez que for preciso reajustar as coisas. Se fosse pra tudo ficar sempre igual não precisava de nada disso. Era o que acontecia no sistema feudal, em que uma minoria que tinha tudo era sustentada por uma maioria que não tinha nada e, como só ela mandava, ninguém queria mudar nada.
No Brasil tudo está errado porque a representação do país real no país oficial está falsificada. Semana passada este jornal mediu. Temos 25% do Congresso Nacional constituído por funcionários públicos. Eles são 11,5 milhões de pessoas ou 5,5% da população, mas a sua representação é cinco vezes maior que a sua dimensão real. E o fato de os outros 75% de congressistas não serem funcionários públicos com carteira assinada antes de se eleger não quer dizer que deixarão de apoiar os interesses deles depois. Primeiro, porque são convertidos em funcionários públicos para efeito de desfrute de todos os privilégios que se autoatribuem assim que são eleitos. Segundo, por medo da retaliação implacável dos que já estavam lá antes deles de que é alvo todo mundo que ousa fazê-lo. Mas principalmente porque estão livres de qualquer consequência se traírem o seu eleitor, que tem todos os direitos sobre o seu representante cassados assim que deposita o voto na urna.
Que descrição mais perfeita poderia ser feita de uma ditadura?
Nós vivemos tempo demais e confortavelmente demais dentro dessa mentira. Nossas escolas foram destruídas. A consciência crítica da nação não foi apenas “aparelhada”. Darwin deu quatro, cinco, dez voltas no relógio. Uma raça foi apurada dentro dela. Sobrou muito pouco mais que os ratos e as baratas.
Só a vivência da virtude cria virtude. Só a possibilidade de vitória da virtude engendra a virtude. No sistema que temos isso é impossível. E não há pacote de reformas que conserte isso de uma vez. Nós somos muitos brasis. Fomos todos humilhados e ofendidos, mas fomos afetados de forma diferente pela ação dessa força desviante tão persistente. Cada Brasil tem as suas carências e as suas prioridades. E só cada um deles sabe por onde começar. Nós precisamos é mudar o jeito de fazer. Parar de sermos mandados e passarmos a mandar. E, então, ir refazendo tudo, pedaço por pedaço, na velocidade que cada Brasil avaliar como possível.
JORNALISTA
O Estado de São Paulo