Desde a aposentadoria do hoje senador Romário (Podemos-RJ) dos gramados, em 2008, um aspecto surpreendente de sua trajetória começou a ser noticiado: dívidas contraídas ao longo de sua bem-sucedida carreira. No ano seguinte à sua despedida do futebol, por exemplo, uma cobertura no edifício Golden Green, na orla da Barra da Tijuca, foi leiloada por R$ 8 milhões para que o valor fosse revertido a um vizinho, prejudicado pelo vazamento de uma obra feita no apartamento de Romário. Aquele débito era apenas a ponta de um iceberg.
Um levantamento feito este ano na Procuradoria da Fazenda Nacional apontou dívidas de R$ 36,7 milhões do ex-jogador com a União, pessoas físicas e jurídicas. Três perguntas surgiram naturalmente a partir desta constatação: qual a origem deste passivo? Por que um ex-atleta de sucesso e salários altíssimos não quitava estes pagamentos? Como ele driblou as autoridades durante tanto tempo? A história que vamos contar a seguir nasce desses questionamentos.
Desde fevereiro, O GLOBO vem fazendo uma série de reportagens sobre o patrimônio do senador Romário. A apuração envolveu os diversos elementos possíveis: conversa com fontes, coleta e análise de documentos, pesquisa, entrevistas e também uma dose de sorte. Em dezembro do ano passado, uma nota publicada pelo colunista do GLOBO Ancelmo Gois revelava que dois apartamentos de Romário tinham ido a leilão por determinação judicial. Uma consulta ao processo elucidou o motivo: dívidas relacionadas ao extinto Café do Gol, mistura de bar, restaurante e bingo que Romário manteve na Barra entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000. Aprofundando a pesquisa, descobrimos que os imóveis, apesar de pertencerem ao senador, ficaram durante anos registrados em nome da construtora que os havia vendido. Por que Romário não havia formalizado a transferência? Surgiam ali os primeiros indícios de ocultação de patrimônio para evitar o pagamento a credores.
Aqui a história se divide em duas pontas que chegam à mesma personagem: Zoraidi de Souza Faria, irmã do senador. Uma fonte deu a dica: “Procurem a casa na Barra da Tijuca que o Romário comprou da Adriana”. Era uma referência à advogada Adriana Sorrentino, ex-mulher do ex-jogador Edmundo. Uma pesquisa em cartório mostrou que a casa, avaliada em R$ 6,4 milhões, ainda estava no nome dela. Por telefone, Adriana confirmou que vendera o imóvel a Romário. Um vizinho disse ainda que o senador já fizera festas ali.
Uma obra sem autorização estava em andamento, o que gerou um processo administrativo dentro da prefeitura. Ao consultar os documentos deste procedimento, uma nova evidência: as cotas de IPTU da casa estavam sendo pagas por Zoraidi.
Na outra ponta da história, uma foto publicada na coluna “Retratos da Vida”, do jornal 'Extra', mostrou Romário saindo de uma boate na Zona Sul em um Porsche (foto acima). A placa estava borrada, mas a imagem original, consultada no arquivo do jornal, trazia a informação necessária para identificar em nome de quem o veículo estava registrado. A proprietária no papel era a mesma Zoraidi, que a partir deste momento se tornou peça fundamental da investigação.
Em janeiro, os papéis reunidos pela reportagem já ocupavam uma caixa inteira de papelão na Redação. A apuração tinha avançado, e era o momento de estabelecer um prazo para que a história fosse publicada. Todo o material foi checado, dúvidas foram sanadas, e uma nova pesquisa em cartórios trouxe outras informações relevantes. Romário tinha uma procuração que permitia a ele movimentar uma conta em nome de Zoraidi no Banco do Brasil – justamente a conta de onde saíram os recursos para pagar o IPTU da casa comprada na Barra. Uma simples busca no Google Maps resolveu o resto do enigma: a agência ficava no Congresso Nacional, em Brasília, onde Romário bate ponto desde 2011, enquanto Zoraidi vive em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio.
A primeira reportagem foi publicada em 25 de fevereiro. Uma foto aérea, feita com drone, da casa da Barra rendeu a imagem publicada com destaque na primeira página daquela edição de domingo do GLOBO. Os desdobramentos foram naturais. Uma outra fonte procurou os repórteres com informações sobre uma lancha na Marina da Glória – e fotos em redes sociais indicavam que o senador poderia ser de fato dono de um barco. A Capitania dos Portos informou que a lancha estava em nome, mais uma vez, de Zoraidi.
Com a ajuda de uma nova fonte, conseguimos fotos da embarcação.
Tamanha movimentação financeira da irmã de Romário chamou a atenção das autoridades.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) foi alertado sobre a suspeita de ocultação de patrimônio, o que gerou uma reportagem publicada em 13 de maio. Um mês depois, O GLOBO voltou ao caso, desta vez para detalhar um relatório do Coaf. A análise encontrou indícios de lavagem de dinheiro de Romário, já que a conta em nome de Zoraidi no Banco do Brasil é usada apenas por ele, para bancar suas próprias despesas. Outros documentos obtidos pelo jornal revelaram que o patrimônio da irmã do senador cresceu 1.800% em dois anos, um aumento incompatível com os rendimentos dela. Em 2014, os bens de Zoraidi somavam R$ 650 mil. Agora, são mais de R$ 12 milhões. Vale lembrar: nos últimos anos, a irmã de Romário já se apresentou como 'estudante', 'do lar' e 'vendedora' em diferentes certidões. Seus rendimentos nos últimos três anos jamais passaram de R$ 4 mil por mês.
Em todas as ocasiões em que publicou reportagens a respeito desse caso, O GLOBO procurou o senador Romário para que ele se manifestasse. Em fevereiro, ele afirmou que a reportagem estava confundindo a empresa Romario Sports Marketing, da qual é sócio, com a pessoa física Romário de Souza Faria. O senador negou ser dono da casa no condomínio da Barra e, sobre o uso do carro em nome da irmã, afirmou que o veículo havia sido "emprestado" por ela. Apesar de procurado, Romário não se manifestou sobre as reportagens seguintes.
O GLOBO sustenta as informações publicadas e continua apurando detalhes sobre o patrimônio do senador.
Marco Grillo e Thiago Prado, O Globo