sábado, 16 de junho de 2018

"À sombra da crônica imortal", por Miriam Leitão

O caso brasileiro é psicológico. É isso que ensinou o mestre Nelson
Rodrigues em 1958. Pode uma crônica atravessar todos os tempos 
e chegar intacta ao seu sexagésimo aniversário? Se for escrita por 
Nelson Rodrigues, pode. A Copa da Suécia ia começar
e o país oscilava entre o pessimismo e a esperança, quando ele se pôs
a escrever sobre o nosso sentimento misto diante da seleção.
O Brasil tinha medo. “Pudor de acreditar em si mesmo", explicou.
 A derrota que carregávamos na alma havia sido grande demais,
oito anos depois o país ainda sangrava pelo que acontecera 
naquele jogo de 1950 no Maracanã 
contra o Uruguai de Obdulio. “Foi uma humilhação nacional que
 nada, absolutamente nada, pode curar”. A dor que então
carregávamos era de um pequeno escore que parecia imenso.
Hoje já sabemos o relativo da dor do maracanaço imposto pelo
 Uruguai sobre a certeza nacional da vitória, na primeira Copa
em terras brasileiras. O que é um 2x1 no Maracanã, diante de
 um país que hoje carrega na alma a cicatriz do 7x1 alemão? O
genial Nelson, o que nos diria nesse momento em que vamos
para a Rússia ver a bola rolar?
“O tempo passou em vão sobre a derrota”, escreveu ele, como
se fosse hoje.
O eterno de algumas crônicas eu entendi lendo Nelson
Rodrigues. Na minha juventude era autor desprezado pela
esquerda onde me instalei. Ele é de direita, diziam, torcendo
 o nariz. Mas ficar à sombra dos seus  textos imortais
 é a única atitude sensata. Ele é capaz de descrever um
jogo apagado da memória de todos, uma pequena partida
banal, e inserir a reflexão que muda o olhar do leitor. Só 
mesmo naquela polarização estranha dos anos 1970 é
 que se podia resumi-lo a uma opinião política eventual e
flutuante. No específico ano de 1970, então, o fosso político
 que carregávamos no corpo  era tão profundo que a proposta
 da esquerda era não torcer pelo time, como
se fosse possível ignorar o que se passaria no México. No
 primeiro jogo da primeira fase, o escrete já entrou com pinta 
de tricampeão sobre a Tchecoslováquia. O país que hoje já 
não existe havia sido por duas vezes 
vice-campeão. Depois, foi contra a Inglaterra, a então campeã,
 da qual nos vingamos por 1966. No Brasil, a polêmica prévia 
fora entre os apaixonados por Saldanha, que escalou o time,
 mas cujas ideias desagradavam o regime, 
e o preciso e zangado técnico Zagalo.

Escrevo esse texto enquanto espio de outro olho o jogo desta
 manhã de  sábado. E não é que a Islândia acaba de fazer um 
gol na grande Argentina  de Messi? Depois, consegue 
defender um pênalti batido por Messi. O futebol e suas 
surpresas, eis aí a magia do esporte.
Mas me adianto no tempo em saltos, quando estava no
sentimento que carregávamos naquela disputa de 1958
que seria o primeiro título. Nelson Rodrigues avisava que
perderíamos se não superássemos o que ele 
definiu de “complexo de vira lata”. O termo pespegou em
nós tão eterno quanto a crônica e até hoje ainda duvidamos.
Mais do que isso, oscilamos como pêndulo entre a confiança
 excessiva e o ceticismo mais agudo, ou, como ele escreveu,
 “entre o pessimismo mais 
obtuso e a esperança mais frenética”. Agora, a dúvida é
acreditar ou não na seleção que foi para a Rússia. Temos
muitos motivos, a começar do técnico Tite. “Mas o que nos
trava é o seguinte: — o pânico uma nova e irremediável
 desilusão. E guardamos para nós mesmos qualquer
esperança”.
O nosso complexo é duplo, na verdade. Ora, carregamos a
humilhação da derrota traumática, como a dos dois pesadelos,
 ora a soberba do pentacampeonato. Nos esquecemos de
como lutamos nas derrotas e como foi difícil cada vitória. Ora
 pensamos que ser o melhor do mundo é nosso 
destino; ora olhamos para as feridas imortais e trememos
diante de qualquer adversário.
Naquela crônica premonitória, Nelson Rodrigues disse que
seríamos derrotados se mantivéssemos o sentimento prévio
 da derrota. Mas se o Brasil 
superasse o trauma do Maracanã, o complexo que havia ficado,
seria o campeão. “Sou de um patriotismo inatual e agressivo”,
escreveu. “Temos 
dons de excesso”, previu. E aquela seleção de 1958 de Pelé,
Garrincha, Gilmar, Vavá, Nilton Santos, Bellini, Didi, Zagalo, 
quem haverá de esquecer? Mesmo quem não havia nascido 
se lembra dela. Contudo duvidávamos
porque havia sido enorme o silêncio do Maracanã em 1950. 
Agora são dois, os traumas. 

“Eu vos digo:
 – o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, 
nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si 
mesmo”, escreveu o mestre Nelson.

O Globo