sexta-feira, 29 de junho de 2018

Pepitas de John Coltrane são resgatadas em novo (e ótimo) álbum

'Both directions at once' traz sete gravações de 1963 do ícone do jazz e seu quarteto, dentre elas de dois temas inéditos


John Coltrane no estúdio de Rudy Van Gelder, em Nova Jersey: disco agora recuperado foi gravado lá Foto: Chuck Stewart / Divulgação/Arquivo
John Coltrane no estúdio de Rudy Van Gelder, em Nova Jersey: disco agora recuperado foi gravado lá - Chuck Stewart / Divulgação/Arquivo

Traduzida do inglês serendipity (que já deu título a música e álbum do pianista Mike Garson, virando uma palavra jazzy), “serendipidade” é definida no dicionário Houaiss como o dom de atrair o acontecimento de coisas felizes ou úteis, ou de descobri-las ao acaso, como por mágica, conforme ocorre frequentemente na música instrumental de improviso. 

Um desses vocábulos vanguardistas bem antenados com o espírito do nosso tempo, é perfeito para definir as circunstâncias em que foi lançado “Both directions at once”.

O álbum perdido de John Coltrane pintou em streaming nesta sexta-feira, primeiro dia sem jogo da Copa, quando meio mundo se queixava do tédio instalado sem a rotina do futebol. 

O tédio saiu de fininho, e quem é malandro passou o dia ouvindo o Coltrane inédito em sete gravações (ou em 14, com takes alternativos, na versão deluxe), das quais dois temas jamais ouvidos, outros pouco gravados e takes originais de standards.

Serendipitoso foi, sobretudo, o achado do material: destruída numa faxina nos estúdios da gravadora ABC, a fita master saiu do mapa por meio século, mas restou uma versão mono, que a primeira esposa do semideus do sax e da invenção jazzística tirou do baú, e foi restaurada pela Impulse! Records, selo do músico ao longo de toda a carreira.

Gravado nos estúdios Rudy Van Gelder (que forjou o som dos principais selos de jazz e registrou as passagens mais prestigiosas do gênero), numa única sessão em 6 março de 1963, em astral de jam session, o disco traz o quarteto clássico, tinindo em meio à atividade diária no circuito de shows ao vivo: Coltrane, McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (baixo) e Elvin Jones (bateria), este então recém-saído da prisão por posse de drogas pesadas.

“É ORIGINAL, NÃO?”

A pérola que chega via rede, em CD e em vinil, é um instantâneo estendido de um artista visionário imprensado entre a preferência dos fãs e críticos por seus primeiros trabalhos, ligados à tradição; e o fabuloso impulso místico-político que, em meio ao auge da luta pelos direitos civis, o levaria ao sétimo-céu de “A love supreme” (1965) — maior momento de criação espiritual (no melhor sentido da palavra) da história do jazz.

“É original, não?”, ouve-se o técnico de som perguntar na abertura da primeira faixa — à época, e ainda hoje, sem título — e “nomeá-la” com o número 11383. O tema de oito notas, rápido, curto, obsessivo, no sax soprano, se repete em máxima tensão para o desenvolvimento num fluxo entre o líquido e o quebrado, sem concessões para respirar. Até que o piano entre em cena e traga alguma calma pontilhada, desaguando num inesperado solo de baixo só no arco, em registro bem grave, soando a motor engasgado tentando dar partida, na hesitante ironia de Jim Garrison. O fecho retoma o tema, acelerado e oitavado, antes de voltar ao registro natural.

Estrategicamente, a segunda faixa traz a doçura de “Nature boy”, canção consagrada de Nat King Cole. De volta ao tenor, seu irmão de sangue, Coltrane instrumentaliza os versos (“There was a boy/a very strange enchanted boy...”) como que sussurrados, entre alternâncias improvisacionais, construindo-se a melodia conhecida em meio aos estilhaços interpostos por comentários em escalas endiabradas. Um sonho de três minutos que funciona mais como uma vinheta evocativa do clássico do que como versão do mesmo.

Em seguida vem mais uma original numerada (“Untitled original 11386”), na qual o saxofonista retoma o soprano com um tema modal, daqueles radicais, carregados de orientalismos e excentricidades.

John Coltrane em 1963 - Charles Stewart / Arquivo
Coltrane vai às alturas dos registros máximos, em êxtases espirituais que vão se esvaindo num contratempo errático dos pratos e bordas de Elvin Jones, e são acalmados por acordes cadenciados do piano, voltando sutilmente ao tema e depois abrindo para McCoy Tyner fazer um longo solo, o tema reaparecendo reiteradamente, atípico, como leitmotiv.
Na alternância entre turbilhão e estrutura, “Vilia”, da opereta “The merry widow”, de Franz Lehár, abre a sequência do meio com um desenho bem tradicional, embora a bateria arrebente a expectativa de calmaria com variações explosivas ao longo de toda a faixa. “Impressions”, que se tornaria popularíssima nos anos seguintes, aqui, em seu primeiro registro, funciona, a seguir, com um intermezzo seco, a formação agora em trio, sem o piano, bem free, abarcando aquela aura de criação coletiva que distende o humor da audição. Uma introdução sob medida para “Slow blues”: essa já se pode curtir com um charuto e um álcool forte, talvez um chapéu Panamá, em casa, fingindo estar num clube, só ou em companhia, com uma certa vontade de dançar em giros suaves, dedos estalados. Cadência bem marcadinha no baixo blueseiro e nos pratos, com tempo de sobra: é a faixa mais longa, de oito minutos.

HARMONIA EM GANGORRA

O disco 1 fecha com “One up one down” (só gravada em bootleg, de uma apresentação ao vivo), o tema mais intrigante, a harmonia em gangorra, como sugere o título, e embalada por acordes de contornos etéreos, para quem gosta de dissonâncias extremas. Daquelas obras em que conceito e expressão musical se alinham, impressionistas, num mote respondido pelos camaradas de banda, cada qual com seu jeitão.

Depois, para quem está na versão deluxe, uma série de mais sete faixas, só de takes alternativos, cheios de circunstâncias felizes ao acaso, serendipitosamente, como deve ser quando o jazz bate alto no palácio da alma.

Cotação: Ótimo

Arnaldo Bloch, O Globo