O Estado de São Paulo
Confundido com o irmão, o servente de pedreiro Mauro Rodrigues Muniz
sobreviveu a uma tentativa de linchamento. O episódio ocorreu em Araraquara
(SP). Durante as agressões, familiares de Mauro gritavam que estavam confundindo
os irmãos, mas o espancamento continuou. O rapaz quase foi morto. Recentemente,
a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi linchada no litoral de São Paulo após
boato de que seria uma sequestradora de crianças para rituais de magia negra.
O
crime bárbaro do Guarujá pautou o noticiário e foi o ponto de partida para uma
discussão que deve ser feita na sociedade e no jornalismo: a responsabilidade da
informação. A boataria começou num pretenso site jornalístico e desencadeou uma
onda de justiçamento, que provocou a morte de uma inocente.
A brutalidade, por rotineira, já não produz o mesmo impacto que causaria no
passado. Ela ocupa, talvez, o tempo de uma conversa de bar. É tremendo,
sobretudo para os familiares das vítimas, mas é assim. Estamos, todos, perplexos
e atemorizados. O Brasil está ficando esquisito. Violência sempre existiu. A
decantada cordialidade brasileira dissimulou, frequentemente, o lado sombrio do
nosso cotidiano. Mas agora é diferente.
Não se põe o Sol sem que imagens brutais
alimentem a edição dos telejornais da noite. Linchamentos começam a fazer parte
da rotina informativa. Para onde vamos? Como é que chegamos a isso? As perguntas
estão subjacentes em inúmeras cartas, e-mails e comentários nas redes sociais.
Todos sentem que a coisa está malparada e não vai acabar bem.
Recentemente, Carlos Augusto Montenegro, presidente do Ibope, deu sugestiva
entrevista à jornalista Sonia Racy, editora da coluna Direto da Fonte, do jornal
O Estado de S. Paulo. Ao tratar da eleição deste ano,
Montenegro foi fundo. Vale a pena reproduzir suas declarações: "Estou aqui há 42
anos e acho que esta é a eleição mais difícil da história do Ibope.
A impressão
que me dá é de que realmente o Brasil precisa fazer uma reforma política, mas
fazer mesmo. Sinto que as pessoas estão nauseadas, enfadadas, não sei o termo,
estão enojadas. A princípio, pela leitura das pesquisas hoje, quem é o grande
ganhador da eleição? Ninguém. Está cada vez maior a fatia de branco, nulo,
indeciso. O desânimo é com tudo, é com a política, é a confusão.
A página do
mensalão foi uma página diferente, o pessoal achava que a impunidade era total
e, de repente, alguma coisa aconteceu. Na hora em que você está acabando de
virar a página, vem uma confusão maior ainda com o caso Petrobrás. (...) Você vê
Polícia Federal invadindo a Petrobrás, gente sendo presa, é doleiro, é diretor,
é o ex-presidente da estatal dizendo que foi certo e a atual dizendo que foi
errado".
A decepção com a política é completa. "Se o voto fosse facultativo, quase 60%
não votariam nesta eleição. As manifestações do ano passado já foram um aviso
disso. Eu diria que qualquer um dos candidatos que vencer a eleição será uma
zebra - qualquer um, porque o desânimo, a tristeza com a política, a falta de
sonhos e de programas é imensa."
As reflexões de Montenegro explicam muita coisa e acendem uma poderosa luz
vermelha. A sociedade está exaurida. A incompetência e a impunidade são o
estopim da radicalização. Os problemas de mobilidade urbana, falta de segurança,
carências nas áreas da saúde e da educação passaram da conta. Pronunciamentos na
televisão e transferência de responsabilidade não funcionam mais.
Não adianta
falar das maravilhas do programa Mais Médicos para uma pessoa que é maltratada
no posto de saúde. É ridículo anunciar bilhões para mobilidade urbana para gente
que passa, diariamente, três ou quatro horas numa condução para chegar em casa
ou ao trabalho. O povo cansou-se. E a exaustão pode despertar forças
incontroláveis.
Um dos traços comportamentais que marcam a decomposição ética da sociedade é,
efetivamente, o desaparecimento da noção da existência de relação entre causa e
efeito. A responsabilidade, consequência direta e lógica dos atos humanos,
simplesmente desapareceu. O fim justifica os meios. Sempre. Trata-se da
consequência lógica do raciocínio construído de costas para a verdade e para a
ética. O político não tem limites na busca do poder. O burocrata avança no
dinheiro público.
Os linchamentos, assustadoramente frequentes, refletem a perigosa e radical
descrença das pessoas nas instituições democráticas. O risco do caos social não
é uma hipótese alarmista. E a possibilidade de uma solução radical e
autoritária, também não. A defesa da democracia passa, necessariamente, pelo fim
da impunidade e por respostas claras às justas demandas da sociedade.
O custo humano e social da corrupção brasileira é assustador. O dinheiro que
desaparece no ralo da delinquência é uma tremenda injustiça, um câncer que, aos
poucos, vai minando a República. As instituições perdem credibilidade numa
velocidade assustadora. Pagamos impostos extorsivos e recebemos serviços
públicos de péssima qualidade. A economia range não por falta de vigor e de
empreendedorismo. Ela está algemada por uma infraestrutura que não funciona e,
por isso, os produtos não chegam ao destino.
Os políticos e governantes precisam acordar. Os justiçamentos, terríveis, são
o primeiro passo de comunidades que começam a virar as costas para as estruturas
do Estado. A "justiça" direta é terrível. É preciso dar uma resposta efetiva aos
legítimos apelos da sociedade, e não um discurso marqueteiro. A crise que está
aí é brava.
O isolamento mental de Maria Antonieta, em 1789, acabou na queda da Bastilha.
A História é boa conselheira. Os políticos precisam sair um pouquinho da Ilha da
Fantasia e sentir a temperatura do Brasil real. Os brasileiros merecem
respeito.